PICICA: "Antipáticas e atraentes, destrutivas e aconchegantes, dominadoras e
conciliadoras, desesperadamente loucas e desesperadamente apaixonadas. A
lista de qualidades das personagens femininas que Annette Insdorf
encontrou em filmes de Truffaut sugere que ele foi capaz de compreender
que o contraditório é um traço básico que elas compartilham com os
homens! (2). Antoine Doinel, personagem/alter ego do cineasta
em vários de seus filmes, vivia se questionando e perguntando para todo
mundo se as mulheres são mágicas. Insdorf acredita que a esta poderia
somar-se pelo menos mais duas perguntas: as mulheres são vulneráveis?
Elas são mais complexas do que os homens supõem? Para Insdorf,
levando-se em consideração os tipos femininos criados por Truffaut, a
resposta é sim. Ainda de acordo com Insdorf, a coexistência de diversas
personalidades numa mesma mulher é um padrão tão recorrente em Truffaut
que o “duplo” é uma presença marcante em sua obra. Por um lado, temos os
filmes onde um personagem masculino sente-se atraído por duas figuras
femininas complementares. É o caso de Thérésa/Léna em O Tiro no Pianista (Tirez sur le Pianiste, 1960), Franca/Nicole em Um Só Pecado (La Peau Douce, 1964), Linda/Clarisse (interpretadas pela mesma Julie Christie) em Fahrenheit 451 (1966), Christine/Fabienne em Beijos Proibidos (Baisers Volés, 1968), Christine/Kyoko em Domicílio Conjugal (Domicile Conjugal, 1970) e Anne/Muriel em As Duas Inglesas e o Amor
(Les Deux Anglaises et le Continent, 1971). Por outro lado, existem
também aqueles filmes em que as mulheres possuem pelo menos duas
facetas. É o caso de Catherine em Jules e Jim (Jules et Jim, 1962), Julie/Marion em A Sereia do Mississippi (La Sirene du Mississipi, 1969), Julie/Pámela em A Noite Americana (La Nuit Americaine, 1973) e Adèle/Madame Pinson em A História de Adèle H (Adèle H, 1975).
O francês François Truffaut não seria o
primeiro homem a expor suas dúvidas e fraquezas em relação às mulheres,
embora certamente esteja entre os poucos que o fez de forma tão direta.
As personagens femininas do cineasta italiano Federico Fellini são um
deleite, mas geralmente são figuras de sonho. Fellini dizia que a
maioria habitava seu passado, por outro lado ele também se declarava “um
grande mentiroso”. Em geral, as personagens femininas do espanhol Luis
Buñuel vivem numa espécie de desespero também encontrado nas personagens
femininas de Truffaut. A diferença, talvez, seja que “as mulheres de
Buñuel” são latinas… (desconsiderando aqui seus três últimos filmes, da
sua “fase francesa”). Quero dizer, são mais explícitas, mais… diretas! –
é mais simples descobrir o que elas estão sentindo.
(...)
Não tenho certeza se é razoável
classificar comportamentos a partir dessa tese antiga do determinismo
geográfico, mas isso dá o que pesar quando se procura escutar o tom de
voz do olhar das personagens femininas do sueco Ingmar Bergman. De
qualquer forma, muito ainda deveria ser dito em relação a várias
personagens femininas de Truffaut. Uma descrição de tipos humanos que
não termina nunca, sendo apenas adiada por um ponto final."
Cultura
As Deusas de François Truffaut
“As mulheres, tal como Truffaut as descreve, muitas vezes existem menos como presença (em) (a) (para) si mesmas do que como realização das visões masculinas. Primeiramente, os homens e espectadores percebem a imagem, em seguida a mulher que a encarna”
Annette Insdorf (1)
Mais complexas do que alguns homens imaginam
Antipáticas e atraentes, destrutivas e
aconchegantes, dominadoras e conciliadoras, desesperadamente loucas e
desesperadamente apaixonadas. A lista de qualidades das personagens
femininas que Annette Insdorf encontrou em filmes de Truffaut sugere que
ele foi capaz de compreender que o contraditório é um traço básico que
elas compartilham com os homens! (2). Antoine Doinel, personagem/alter ego
do cineasta em vários de seus filmes, vivia se questionando e
perguntando para todo mundo se as mulheres são mágicas. Insdorf acredita
que a esta poderia somar-se pelo menos mais duas perguntas: as mulheres
são vulneráveis? Elas são mais complexas do que os homens supõem? Para
Insdorf, levando-se em consideração os tipos femininos criados por
Truffaut, a resposta é sim. Ainda de acordo com Insdorf, a coexistência
de diversas personalidades numa mesma mulher é um padrão tão recorrente
em Truffaut que o “duplo” é uma presença marcante em sua obra. Por um
lado, temos os filmes onde um personagem masculino sente-se atraído por
duas figuras femininas complementares. É o caso de Thérésa/Léna em O Tiro no Pianista (Tirez sur le Pianiste, 1960), Franca/Nicole em Um Só Pecado (La Peau Douce, 1964), Linda/Clarisse (interpretadas pela mesma Julie Christie) em Fahrenheit 451 (1966), Christine/Fabienne em Beijos Proibidos (Baisers Volés, 1968), Christine/Kyoko em Domicílio Conjugal (Domicile Conjugal, 1970) e Anne/Muriel em As Duas Inglesas e o Amor
(Les Deux Anglaises et le Continent, 1971). Por outro lado, existem
também aqueles filmes em que as mulheres possuem pelo menos duas
facetas. É o caso de Catherine em Jules e Jim (Jules et Jim, 1962), Julie/Marion em A Sereia do Mississippi (La Sirene du Mississipi, 1969), Julie/Pámela em A Noite Americana (La Nuit Americaine, 1973) e Adèle/Madame Pinson em A História de Adèle H (Adèle H, 1975).
A obra de Truffaut gira em torno das
relações entre os adolescentes e sua deusa. Insdorf sugere que a atitude
do cineasta em relação aos personagens femininos se assemelha à dos
pivetes. Outro tema recorrente é o movimento que vai da adoração
(Bernadette em Os Pivetes, Les Mistons, 1957) ao ressentimento (Théresa e Léna em O Tiro no Pianista,
e Catherine em Jules e Jim, morrem; poderíamos incluir a mãe de Antoine
em Os Incompreendidos, já que ele desejou a morte dela), passando pelo
testemunho da morte do herói/rival (em Um Só Pecado, Fahrenheit 451, A Noiva Estava de Preto e A Sereia do Mississipi, as esposas destroem os homens, Linda sendo a menos direta), chegando ao distanciamento (Camille Bliss e Adèle H) (3).
Cinco homens diferentes equivalem a cinco maneiras distintas de perceber uma mulher, ou poderia ser a descrição de cinco maneiras diferentes dessa mulher utilizar sua visão feminina para alcançar seus objetivos
Para cada um de seus pretendentes, Julie em A Noiva Estava de Preto (La Mariée Était en Noir, 1967) e Camille em Uma Jovem Tão Bela Como Eu (Une
Belle Fille Comme Moi, 1972) apresentam cinco personalidades.
Adaptações de dois romances distintos, as duas se encaixam na obra de
Truffaut como mulheres fatais. Num sentido literal, Julie é extremamente
moral e mata por vingança, enquanto Camille é amoral e mata por prazer.
Um pouco antes, Bernadette Lafont (a atriz que interpreta Camille) foi o
fetiche de cinco garotos em Os Pivetes. Eles a seguem e chegam a
hostilizar o namorado dela até que descobrem a respeito da morte do
rapaz. No final, ao vê-la passar vestida de preto, os garotos já não
sentem prazer. Na opinião de Insdorf, A Noiva Estava de Preto
retoma esse filme onde ele parou: o que acontece com a mulher depois da
morte do homem que ela amava – com Julie, o amor frustrado se transforma
em hostilidade. Seus pretendentes são mais velhos, mas não menos
ingênuos assegura Insdorf. De fato, Insdorf acredita que em Uma Jovem Tão Bela Como Eu pode-se dizer que Bernadette se vinga dos garotos de Os Pivetes.
A culpabilidade masculina é o contexto de A Noiva Estava de Preto,
clichê da mulher que imagina ganhar o amor de um homem adaptando-se ao
modelo de mulher ideal dele, ela se insinua na vida de seus cinco
pretendentes/vítimas, encarnando os sonhos de cada um. Truffaut explicou
que através desses cinco homens poderia descrever cinco maneiras de
perceber as mulheres, mas era também um meio de descrever cinco maneiras
de uma mulher utilizar sua visão feminina para alcançar seus objetivos.
Cinco homens diferentes entre si (a única ligação é o interesse comum
pela caça, e também pela caça às mulheres), aquilo que os une é o que
assombra Truffaut: acreditar no ideal para além do imediato, no eterno
para além do efêmero, na deusa sonhada para além da mulher. E cada um
deles será punido por isso. Insdorf mapeia o perfil das vítimas de
Julie, mostrando os pontos fracos decorrentes das ilusões deles. Playboy prestes a se casar, Bliss (mesmo sobrenome de Camille, em Uma Jovem Tão Bela Como Eu)
enxerga Julie como um possível conquista. Ela aparece misteriosamente
vestida de branco. Julie é evasiva, acreditando que está apaixonada por
ele, Bliss se apaixona por ela. Solteiro e sentimental, Coral é tímido e
solitário (o que o assemelha a Charlie Kohler, segunda personalidade de
Edouard Saroyan em O Tiro no Pianista). Julie se transforma no alimento
romântico dos sonhos dele, uma mulher ideal que Coral imagina destinada
a ele. Aspirante a político, Bertrand está fechado em sua complacência e
pretensão, incapaz de enxergar mais longe do que seus interesses
mesquinhos. Ele parece satisfazer-se com o papel de mulher servil de
Julie, a mulher como um bibelô conveniente. Artista e playboy,
Fergus faz dela seu próprio molde particular de uma deusa. Fazendo-a
posar como Diana a caçadora, ele não sabe que será a caça. Em certo
momento, Fergus está atrás de Julie e pede que não se mexa, pois não
consegue dizer “eu te amo” quando ela está de frente – Julie o matará
pelas costas. Delvaux é um escroque brutal, seu ideal feminino é uma
prostituta (4).
A associação de Camille Bliss com a
morte é mais cômica que aterrorizante, é uma das personagens femininas
mais liberadas de Truffaut. Acusada de assassinato, está presa quando o
sociólogo Stanislas Previne vai entrevistá-la e se apaixona. Ao
encontrar um filme que mostra o morto se suicidando, ele descobre que
Camille não é culpada. Ela se torna cantora e certa noite Stanislas
aparece depois de um espetáculo. Clovis, o marido dela, os descobre
juntos. Camille mata o marido e consegue que Stanislas seja acusado pelo
assassinato. O marido dela só se interessa por bebida e sexo – e tem
medo da mãe. Arthur adora Camille e a coloca num pedestal, ele perdeu a
virgindade com ela e queria que os dois se suicidassem saltando da torre
da igreja – ele saltou sozinho e ela foi acusada de assassinato. Fergus
(papel interpretado pelo mesmo ator) é artista e playboy. Sam
Golden é cantor e só consegue transar ao som de carros de corrida.
Murène é advogado, escroque e obcecado por sexo. Stanislas é um
intelectual tímido, mas louco de amor. De acordo com Insdorf, essas são
as vítimas de Camille, mas também aqueles que a vitimam. No final, ela
ainda seduzirá o advogado de Stanislas. Ao contrário de Julie, nunca
vemos Camille realmente matar alguém.
“Nós temos com as mulheres a mesma
relação que tivemos com a nossa mãe”
François Truffaut (5)
Em 1969, Truffaut teceu uma série de
elogios à atriz francesa Jeanne Moreau, que para ele era portadora de
uma espécie de autoridade moral. Disse que Moreau é muito física, muito
carnal, mais que não exprime nada de sujo nas telas, porque está mais
para o amor do que para a devassidão. Quando você a conhece, explicou,
descobre nela qualidades masculinas e femininas, com a vantagem de não
possuir o lado racional deles e sem o lado vaidoso das mulheres. Jeanne
Moreau atuou nos papéis de Julie em A Noiva Estava de Preto (adaptação do romance homônimo [1940] de William Irish) e Catherine em Jules e Jim
(adaptação do romance também homônimo [1955] de Henri-Pierre Roché). Se
Catherine (imagem acima) é a encarnação do precioso objeto de arte de
dois homens, Julie é o modelo dos quadros de Fergus. Como ele, Jules e
Jim colocam aquela mulher num pedestal. Mas assinam a própria sentença
de morte ao venerar o mítico e dispensar o humano. Julie preenche o
papel que Fergus lhe atribuiu: Diana caçadora. Catherine se torna uma
deusa – por definição, insistiu Insdorf, uma destruidora de homens. A Noiva Estava de Preto
apresenta uma inversão interessante. Como bem notou Insdorf, Fergus se
apaixona por Julie porque ela o lembra de sua arte. No final, ele passa a
amar o retrato pintado porque ele lembra sua mulher amada. Ao
desenhá-la ao lado de sua cama, ele completa o processo da arte-feita
mulher e da mulher-feita arte, e se conforta com a ilusão de que
capturando seus traços ele possuirá a alma dela. Jules e Jim não terão
mais sorte em seu desejo de possuir Catherine, porque ela é mais
complexa do que uma estátua e mais misteriosa do que um modelo.
Catherine diz que ama a heroína de uma peça sueca porque ela quer ser
livre e inventa sua vida a cada instante. E essa é a meta de Catherine,
fazer de sua vida uma obra de arte fluida, improvisada, espontânea e
rica de personagens. Insdorf identifica a autodeterminação dela com a de
Julie, embora esta canalize suas forças para a vingança, enquanto
Catherine está focada na liberdade e no amor (6).
“As duas mulheres possuem força e energia admiráveis, mas são antipáticas de uma forma fundamentalmente similar: seus princípios se tornam mais do que os homens que elas amam e, em sua sede pelo absoluto, perdem a capacidade de saborear o que vivem. Nesse sentido, elas são, em última análise, tão culpadas quanto as vítimas [de Julie], por escolher a frieza do ideal em detrimento do terno calor que lhes é oferecido” (7)
Ao contrário de Julie, Catherine é
impulsiva, imprevisível e com um senso de liberdade apurado. Ainda
assim, Insdorf acha que o fato da preferência de Catherine oscilar
diariamente (um dia prefere Jules, no outro Jim) faz dela uma personagem
inconstante – como se tal comportamento não fosse previsível. Radiante e
ao mesmo tempo misteriosa, calma e apaixonada, Catherine é criadora e
destruidora, fonte e encarnação da vida e da morte. De família
aristocrata, mas gosta de trabalhos rústicos. Resistente a todas as
etiquetas, ela é amante, mãe (“vamos, crianças!”), criança mimada e
figura andrógina. Enumerando todas essas características de Catherine,
Insdorf pretendia reforçar um caráter ambíguo que afinal caracteriza a
própria vida. Talvez a primeira coisa que salta aos olhos em Jules e Jim
é que, apesar do título, Catherine é a personagem dominante. Na opinião
de Jules, ela é “a mulher”, não foi feita para apenas um homem, mas
para todos. Ele a vê como “uma força da natureza que se exprime através
de cataclismos”, “uma rainha”, “uma mulher de verdade”. Fogo e água são
as duas imagens associadas e contribuem para enfatizar o ardor e o
entusiasmo dessa personagem. Catherine volta à água quando pula no rio
Sena e toca o fogo (ela se queima) ao queimar velhas cartas de amor.
Quando está chovendo, ela quer ir para o litoral, até que a chuva a traz
de volta à Paris. A água é a morte que ela escolhe quando joga o carro
da ponte, depois é o fogo que destrói os caixões. O Vitríolo, fogo
líquido que Catherine carrega, é aquilo que na opinião de Insdorf
caracteriza melhor essa personagem.
É possível colocar uma mulher no pedestal sem ao mesmo tempo venerar o mítico em detrimento de seu lado humano?
O próprio Truffaut via Catherine como
uma deusa, e como tal ela consome vorazmente a imagem que os adoradores
lhe devolvem dela mesma, uma necessidade infinita de atenção. Enquanto
Julie nutre um sentimento a respeito de si que a impedirá de perceber a
forma como os homens a veem (como uma mulher para amar), o de Catherine
gira totalmente em função do olhar dos outros. Insdorf arrisca uma
resposta à pergunta levantada pelo filme (o que resta do ser quando não
existe mais amor para defini-lo?), talvez Catherine não permita jamais
que a solidão se instale, para que essa pergunta nunca seja feita.
Insdorf aponta como um tema frequente em Truffaut justamente a fonte da
tensão para Catherine: a colocação em perspectiva da própria identidade,
independentemente da forma como achamos que os outros nos veem.
“O que Catherine é para si mesma
permanece um mistério: seu egocentrismo, paradoxalmente, a impede de se
conhecer. A supressão de uma linha do romance por Truffaut é instrutiva.
[No livro] Catherine diz, ‘eu sou uma mãe (…), uma mãe antes de tudo’.
Mas o filme apaga esse sentimento, insistindo na personagem da amante,
mais brilhante e coerente. De fato, seu desejo de maternidade poderia
ser conectado à sua necessidade permanente de adoração. A procriação dá
ao ato de amor seu potencial absoluto. Sua relação com Jim repousa
inteiramente sobre seu desejo de ter um filho com ele. Quando ela falha,
eles se separam (…). A seguir, quando ela engravida, é com paixão que
declara a Jim que ele vive nela. E, quando acontece um aborto
espontâneo, ela o deixa. Reclamando uma liberdade que não concede aos
outros, ela manifesta uma falta de responsabilidade e de lucidez que
condicionam sua maneira de ser. Ela chega mesmo a dizer a Jim: ‘eu não
quero que me compreendam’. Incapaz de aceitar sua própria
vulnerabilidade ou de compreender a de seus amantes, ela prova mesmo que
é mais uma deusa do que uma mulher realizada. Como as divindades
mitológicas, suas emoções humanas lutam com sua natureza sobre-humana:
ela é orgulhosa, mesquinha, ciumenta e egoísta – implacavelmente
destruidora ao sentir-se insuficientemente adorada (…)” (8)
Quando vimos uma, vimos todas
“Já fui muitas vezes acusado de retratar homens fracos
e mulheres decididas, mulheres que conduzem os acontecimentos,
mas eu penso que é assim que as coisas são na vida real”
François Truffaut (9)
Com O Homem que Amava as Mulheres
(l’Homme qui Aimait les Femmes, 1977) encontramos mais um
homem-criança, embora o foco agora recaia sobre um grupo de mulheres. Na
opinião de Insdorf, somos apresentados a heroínas de uma força e
maturidade novas com Marion e Bárbara, respectivamente em O Último Metrô (Le Dernier Metro, 1980) e De Repente num Domingo (Vivement Dimanche!, 1983). Além de Uma Jovem Tão Bela Como Eu, Os Pivetes teria sua continuação também em O Tiro no Pianista.
Aqui também encontramos cinco adolescentes, mais crescidos, e suas
preocupações com as mulheres. São eles: dois gângsteres (Ernst e Momo),
Plínio, Edouard Saroyan e sua segunda personalidade, Charlie Kohler.
Para Truffaut, o verdadeiro tema do filme é o amor e as relações entre
homens e mulheres. Logo no começo, um homem comenta sobre seu casamento e
o número de virgens em Paris. Na sequência do bar, uma série de cenas
se dedica ao tema. Comentários sobre a fascinação dos homens; outro que
olha insistentemente para os seios da mulher com quem está dançando; um
baixinho acaba batendo na mulher que parecia rir dele – enquanto isso, o
corpo dela é analisado por dois adolescentes. O tema da canção é o sexo
– a música que ouviremos no rádio posteriormente fala de emoção e busca
pelo amor (10).
Noutra cena, um dos gângsteres conta
como seu pai morreu num acidente de carro porque ele olhou para uma
mulher. O comentário de Charlie (“quando vimos uma, vimos todas”) vem
depois de um monte de frases sobre como as mulheres provocam os homens
com suas maquiagens e roupas. Plínio, o dono do bar, acredita que a
“mulher é pura, delicada, frágil, a mulher é suprema, a mulher é
mágica”. Plínio gosta de Léna, e vai brigar com Charlie porque ele
transou com ela. Thérésa morre porque Edouard busca a fidelidade de um
amor idealizado e não uma experiência imperfeita. Incapaz de aceitar o
adultério altruísta de sua esposa (ela cedeu ao assédio de um empresário
que prometeu dar um impulso na carreira de Edouard) e de consolá-la,
ele exige amor absoluto – portanto, impossível. Nisso ele é como Plínio,
Adèle H e também Catherine. Como os pivetes, Insdorf sugere, Edouard
destrói aquilo que não compreende, neste caso, a mulher que ele ama.
Desse ponto de vista, conclui Insdorf, Truffaut parece estabelecer um
contexto de culpabilidade masculina sobre a qual se debruçarão suas
futuras personagens femininas.
As Mulheres de Antoine Doinel
Ida: E a forma do rosto? Antoine: Um rosto oval perfeito…
Quero dizer, um oval levemente triangular… Mas a sua pele é brilhante,
como se fosse iluminada por dentro! Ida: Escute Antoine. Queremos um relatório, não uma declaração de amor. Boa Noite.Antoine descrevendo Fabienne Tabard, em Beijos Proibidos
Em Os Incompreendidos (Les
Quatre Cents Coups, 1959), Antoine está na adolescência e certo dia
involuntariamente teve oportunidade de cometer o crime perfeito. Estava
matando aula com um amigo pelas ruas de Paris quando encontra sua mãe.
Mas ela está aos beijos com um amante. Mãe e filho fazem apenas um
contato visual. Foi o suficiente para que à noite sua mãe começasse a
tratá-lo melhor em casa (ela é muito impaciente com Antoine) e nem
sequer pergunta o que o filho estava fazendo fora da escola. Numa dessas
escapadas pela cidade, Antoine e um colega roubam a fotografia de
Mônica no saguão de um cinema. Tratava-se da sensual e inconsequente
menina/mulher de Mônica e o Desejo (Sommaren Med Monika, 1953),
uma homenagem que Truffaut prestou ao realizador do filme, o cineasta
sueco Ingmar Bergman. Neste filme ela aparece nua e chega a colocar a
mão de seu namorado em seus seios, decididamente algo que não
aconteceria na obra de Truffaut.
Em Beijos Proibidos, quando Fabienne invade seuapartamento, a primeira reação de Antoine foi se cobrir quase totalmente– e ele só estava sem camisa em seu próprio quarto.
No média-metragem Antoine e Colette (episódio de Amor aos Vinte Anos,
l’Amour à Vingt Ans, 1962), ela é o primeiro amor dele, que já está no
início da idade adulta. Antoine tenta seduzir Colette, que se mantém
distante. Esta personagem feminina é interpretada por Marie-France
Pisier, por quem o homem casado Truffaut se apaixona (11). Pisier
retornará em Beijos Proibidos novamente como Colette, o antigo primeiro amor de Antoine. Antoine e Colette
é uma história parcialmente autobiográfica, onde Truffaut fala de sua
paixão por Liliane Litvin quando ele tinha 18 anos de idade. Exatamente
como Antoine, Truffaut arrumou um quarto em frente ao de Colette – 20
anos depois, Truffaut faria a mesma coisa em A Mulher do Lado
(La Femme d’à Cote, 1981), agora com um fim trágico. Mas ele mudou
algumas coisas, especialmente o desfecho infeliz – Truffaut tentou
suicídio depois de ser ignorado por Liliane (12).
No roteiro, Liliane se tornou Colette
(embora tenha cogitado em usar o nome de Liliane num primeiro tratamento
do roteiro), mas Truffaut ainda pode ter representado Liliane nas
instruções que deu a Pisier para fazer certos gestos. Carole Le Berre
explicou que o cineasta pediu para que Jean-Pierre Léaud (mais conhecido
como Antoine Doinel) mantivesse um olhar firme e também lhe deu
instruções precisas sobre para onde olhar, experimentando com uma forma
de mostrar o início de uma obsessão erótica que seria desenvolvido a
seguir em Um só Pecado (La Peau Douce, 1964). Truffaut também experimentou com um sistema de flashbacks que seria aprofundado posteriormente em O Amor em Fuga
(l’Amour en Fuite, 1979). Convidado para o apartamento de Colette,
Antoine diz aos pais dela que ele não tem se encontrado com os seus
(originalmente Truffaut pretendia que Antoine os tivesse visitado, mas
mudou de ideia porque a conversa que o rapaz teria com os pais poderia
criar problemas entre o cineasta e os seus próprios pais). Truffaut
disse que desejava compensar Os Incompreendidos, apresentando
agora adultos simpáticos. Procedendo desta forma, Truffaut acreditava
que Antoine e Colette ficaria mais leve, e mais próximo da vida.
As mulheres são mágicas? Antoine deveria parar…
parar de fugir… tirar vantagem do presente… não mais ajustar as contas
com a mãe através de cada garota que ele encontra…
Comentário de Truffaut a respeito do
personagem Antoine Doinel, seu alter ego
O cineasta admitiu que o filme não saiu a
comédia que pretendia. Ainda que o final fosse mais irônico do que o
que Truffaut viveu com Liliane, ele próprio considerou que o humor do
filme se mistura um pouco com amargura. Na última sequência, Antoine
perdeu seu posto ao lado de Colette para um rival, restou-lhe assistir
televisão com os pais dela. “‘É a terceira vez que isso acontece
comigo’, Truffaut escreveu após terminar Jules e Jim, ‘começar um filme
que eu penso que será divertido e perceber ao longo do caminho que
apenas a tristeza o salvará’” (13). Como Catherine em Jules e Jim, Fabienne Tabard também é uma espécie de aparição para Antoine, em Beijos Proibidos. Como Jules, Jim e Fergus (este último em A Noiva Estava de Preto),
Antoine se apaixona por uma mulher porque ela corresponde às visões
românticas que encontrou na arte. Quando o encontramos pela primeira vez
nessa nova etapa de suas aventuras, ele começa a ler O Lírio do Vale
(Le Lys dans la Vallé), de Balzac – história do amor impossível entre
Félix de Vandenesse por Madame de Mortsauf, uma mulher mais velha.
Insdorf mostra que a imagem da mulher perfeita forjada por Antoine está
ligada ao romantismo/sublimação/absolutismo do século XIX (14).
Insdorf sugere que Antoine tenta
desenvolver com uma prostituta o amor ideal (portanto não consumado) de
Félix. Procura beijá-la e acariciar os cabelos dela, mas a mulher se
comporta de maneira impessoal. Quando Fabienne surge na sapataria onde
Antoine trabalha, é como se uma aparição se materializasse. Ele está
hipnotizado por essa aparição (e a câmera subjetiva nos faz compartilhar
com Antoine esse primeiro olhar). Felizmente para Antoine, desta vez
Fabienne se mostra calorosa e lúcida o suficiente para escapar da
armadilha romântica. Ao visitá-lo, e após receber uma declaração
desesperada de amor, ela explica que eles não são personagens de um
romance do século XIX, mas um homem e uma mulher num quarto, situação
que em si já é mágica. Fabienne diz para Antoine que O Lírio do Vale
é lamentável porque aquele amor não se concretiza. Então ela propõe que
eles fiquem juntos um tempo e depois não se encontrem mais. Insdorf
concorda com a conclusão de Dominique Fanne de que Fabienne despedaça o
sonho de Antoine, mas ao mesmo tempo obrigando-o a parar de olhar para a
vida e começar a vivê-la. Para Insdorf, a proposta de Fabienne era um
compromisso necessário e afetuoso entre o vulgar e o não consumado,
ainda assim constituindo um triunfo da vida sobre a ilusão.
Aparentemente, depois deste encontro com
Fabienne, Antoine foi capaz de apreciar as qualidades de sua amiga
Christine. De acordo com Insdorf, esta é uma das primeiras “mulheres
modernas” e leves no universo de Truffaut. Tudo indica que ele e ela
conseguirão seguir juntos, já que antes de tudo são amigos. Insdorf não
compreende muito bem o destino de Fabienne. Para Antoine, e, segundo
Insdorf, para Truffaut também, ela se encaixa na tradição francesa da
mulher madura conduzindo um homem jovem pelos caminhos do amor e
desaparecendo em seguida. Ao marido dela Truffaut deu uma dimensão
cômica, mas Fabienne ficou com ele. Insdorf não se conforma e acha
inexplicável que Fabienne fique com esse marido e que seu objetivo seja
apenas tratar da educação sentimental dos empregados da loja. “Num filme
que tenta combater toda uma imagem do século XIX, Fabienne Tabart é
paradoxalmente utilizada num papel próprio ao século XIX” (15).
Em Beijos Proibidos, Fabienne tranca a porta do apartamento de Antoine e,
numa alusão sexual explícita, enfia a chave dentro de uma garrafa.
Insdorf esclarece que, apenas em O Homem que Amava as Mulheres
Truffaut, joga alguma luz nessa situação através de Hélène, da loja de
lingeries. Mulher na faixa dos 40 anos, quando Bertrand a convida para
sair, ela recusa educadamente. Ela explica que prefere homens mais
jovens! Seja como for, cada uma ao seu modo, Fabienne e Hélène são
sujeitos em suas relações, não apenas objetos – no caso da primeira,
pelo menos nos casos extraconjugais. Na sequência de Beijos Proibidos,
em Domicílio Conjugal (Domicile Conjugal, 1970), encontramos
Kyoko. Incapaz de ultrapassar as banalidades, ela é “o objeto” por
excelência. Antoine está com Christine, mas esse caso com Kyoko o leva a
mais um beco sem saída (ela é superficial e ele não sabe o que quer).
Durante um encontro com ela, Antoine fica telefonando para Christine,
procurando um meio de voltar a fazer parte da vida dela. Em certo
momento ele diz que Christine é como uma irmãzinha, uma filha, uma mãe. A
resposta dela: “gostaria de ter sido sua esposa também”.
“(…) Christine é uma das raras esposas na obra de Truffaut [a não tocar na morte]. Catherine, Franca (Um só Pecado) e Linda (Fahrenheit 451) querem um marido de acordo com seus desejos, senão nada feito. Marion (A Sereia do Mississipi) tenta matar Louis por seu dinheiro, e Thérésa (O Tiro no Pianista) se suicida. Julie Koehler e Camille Bliss são profissionais do assassinato e Mathilde (A Mulher do Lado) mata aquele que ela ama antes de se suicidar” (16)
De acordo com Paul Duncan e Robert
Ingram, a decisão de Truffaut quanto a voltar a filmar uma história em
torno de Antoine Doinel não tem outra razão senão o fraco retorno
financeiro de O Quarto Verde (La Chambre Verte, 1978). O
cineasta não tinha mais planos de voltar a Doinel, duvidando da empatia
do personagem agora em idade adulta. Felizmente para Truffaut, o filme
foi um sucesso comercial (17). De acordo com Truffaut, Domicílio Conjugal
deveria ter sido o último filme com Antoine Doinel, reconhecendo a
grande oportunidade que foi poder seguir um ator (Jean-Pierre Léaud) e
um personagem dos 14 aos 30 anos de idade. O Amor em Fuga apresenta uma série de flashbacks
(dos filmes anteriores da série e outros inventados) articulados numa
estrutura que o cineasta considerava artificial. Originalmente, disse
ele, o roteiro contava a história de Antoine passando por uma crise
nervosa, num divã de analista contando episódios de sua vida e tendo seu
antigo primeiro amor (Colette) como psicanalista (ela lhe explicaria
que por razões óbvias não poderia ser sua analista) (18).
O Amor em Fuga revisita e
resume a vida passada de Antoine enquanto ele tenta levá-la mais alguns
passos adiante. Prestes a se divorciar, Antoine está agora com Sabine.
Contudo, ao reencontrar Colette (que conhecemos em Antoine e Colette)
ele já deixa Sabine esperando e tenta reconquistar o antigo primeiro
amor – Truffaut escolheu Dorothée para atuar como Sabine por considerar
que ela representava a mulher jovem contemporânea, combinando
ingenuidade com uma natureza franca e sem medo. Colette lê a
autobiografia de Antoine e, ao encontrar com Christine, as duas riem do
fato de pertencerem ao clube das “ex” de Antoine. Ele terá um encontro
marcante com o amante de sua mãe, o senhor Lucien (aquele mesmo que ele
viu pelas costas na Place Clichy quando ainda matava aula em Os Incompreendidos). Segundo Carole Le Berre, é um encontro de reconciliação póstuma com a mãe de Antoine (para cuja tumba no cemitério de Montmartre
o senhor Lucien o leva), mas também com a mãe do cineasta. Truffaut
fará uma trapaça misturando sua biografia com a de Antoine: quando o
senhor Lucien afirma que o rapaz não poderia ter ido ao enterro da mãe
porque estava no exército (embora tenha estado no exército quando tinha
mais ou menos a idade de Antoine, não seria o caso do cineasta, pois sua
mãe faleceu em 1968, ano em que realizou Beijos Proibidos).
Contemporâneo de Truffaut, o cineasta
alemão Rainer Werner Fassbinder disse certa vez que os problemas que
trazia de sua infância não eram nada se comparados aos de pessoas como o
cineasta francês. Em certo sentido, o comentário de Fassbinder é até
positivo em relação a Truffaut, já que o alemão quis dizer que não teve
problemas porque simplesmente não teve infância (19). Fassbinder também
construiu em seus filmes uma galeria de personagens femininas marcantes.
Além disso, assim como o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, o
alemão escalou sua própria mãe em vários papéis de seus filmes, atitude
que Truffaut não chegou a tomar – será que chegou a pensar nesta
hipótese? Quando Truffaut deu indicações para escrever a letra de uma
música que comissionou de Alain Souchon para O Amor em Fuga, o
cineasta escreveu: “As mulheres são mágicas? Antoine deveria parar…
parar de fugir… tirar vantagem do presente… não mais ajustar as contas
com a mãe através de cada garota que ele encontra…” (20). “As mulheres
são mágicas?” é uma pergunta muito frequente na boca de Antoine Doinel.
Em O Amor em Fuga, Antoine vê alguém terminando um
relacionamento por telefone e rasgando uma fotografia. Doinel vai até a
cabine telefônica, recolhe os pedaços da foto e passa a procurar a
mulher (em Beijos Proibidos ele trabalhou numa agência de
detetives, adquirindo certa prática no assunto). Foi assim que conheceu
Sabine, mas nunca contou a ela que o encontro deles não foi casual.
Durante a edição de O Amor em Fuga, Truffaut cortou parte da
carta que Antoine escreverá para Sabine: “Minha memória deve estar
pregando peças em mim ao me permitir lembrar apenas imagens ameaçadoras
de minha mãe. Pobre ou não, em [cada um desses momentos] ela me disse
apenas uma coisa: que o amor é a única coisa que conta”. Durante as
filmagens, Truffaut escreveu à mão no canto do roteiro a resposta de
Antoine à Sabine sobre porque ele não contou há mais tempo para ela a
respeito de seus sentimentos: “Porque… Porque por toda a minha vida eu
me acostumei a esconder minhas emoções, e a não dizer as coisas
diretamente” (21).
“Que seja erótica, esportiva ou natural, o cinema de
François Truffaut abomina a nudez”.
Anne Gillain
Salvo por alguns seios de fora aqui e
ali, Gillain acredita que os filmes de Truffaut são no mínimo bastante
pudicos – considerando a época em que foram realizados. Não que a nudez
seja obrigatória (embora algumas vezes fique essa impressão, tanto no
cinema quanto na televisão), porém Gillain acredita que os corpos
cobertos na obra de Truffaut sugerem mais do que aquilo que se esconde
por baixo das roupas. O cineasta declarou que, em sua opinião, a cena
mais erótica do cinema acontece em O Silêncio (Tystnaden,
direção Ingmar Bergman, 1963), quando ao retornar de um encontro sexual
casual – do qual o espectador não viu quase nada – a mulher volta para
seu quarto de hotel, desliza a mão sob o vestido e tira a calcinha para
lavar na pia. “Durante muito tempo”, dirá Bernard Coudray em A Mulher do Lado, “eu pensava que várias coisas extraordinárias aconteciam debaixo das saias das mulheres”. Em A Sereia do Mississipi,
ao ouvir a voz de Louis que chega de repente, Marion se levanta da cama
e se veste rapidamente para recebê-lo. Gillain acredita que a cena de O Silêncio aponta o fantasma de um mistério que não chega a se revelar (22).
Não se mostra do corpo senão aquilo que o
esconde, lingerie, sapatos, meias, etc. Do corpo mesmo, apenas alguns
detalhes: uma parte da coxa em O Último Metrô, alguns seios em O Homem que Amava as Mulheres, uma nuca em Jules e Jim, saias apertadas e um desfile de pernas de A Noite Americana e Um só Pecado.
Mas nunca nenhum nu integral. Truffaut admirava a franqueza sexual dos
livros de Henry Miller, e Roger Vadim que mostrou Brigitte Bardot em E Deus Criou a Mulher
(Et Dieu Créa la Femme, 1956) e lhe pareceu trazer uma liberdade nova
para o cinema. Gillain se refere ao pudor na obra de Truffaut como algo
que esconde uma violência e um terror. O corpo feminino dá medo, disse
ela, é por isso que seus filmes só o mostram de forma velada. Para
Gillain, O Quarto Verde levará ao limite esse percurso do
imaginário para fazer do objeto do desejo um corpo morto guardado aos
pedaços como relíquia. No outro extremo, Gillain aponta para A Mulher do Lado.
Especificamente na última cena, quando Mathilde tira sua meia calça e
se oferece para Bernard uma última vez, antes de dar um tiro na cabeça
dele e depois na própria. Enquanto acompanhamos a retirada dos corpos, a
senhora Jouve sugere um epitáfio para Bernard e Mathilde: “Nem com
você, nem sem você”. Por sua vez, no padrão da pudicícia, Marion imóvel
na cama em A Sereia do Mississipi retoma uma cena de Um só Pecado,
onde Nicole repousa de olhos fechados numa cama de hotel enquanto seu
amante levanta lentamente a saia dela e acaricia suas pernas.
Na opinião de Annette Insdorf, em O Homem queAmava as Mulheres Truffaut nos apresenta mais um dosseus personagens masculinos sexualmente imaturos.
Robert Ingram e Paul Duncan nos lembram
de que Truffaut gostava de mostrar as pernas das mulheres (23). Também à
vontade na cama, as pernas de Catherine em Jules e Jim estão
mais visíveis do que seu rosto enquanto Jim tira a bota dela. Novamente
na cama, Marion também mostra suas pernas ao espectador. Em Uma Jovem Tão Bela Como Eu, Camille literalmente mostra sua perna para nós, além de mostrá-las também na cama, como as outras. Em O Amor em Fuga,
sentada na cama de sua cabine no trem, Colete, o primeiro amor de
Antoine Doinel, mostra as coxas para nós enquanto lê a autobiografia
dele e ri dos erros. Em O Último Metrô somos apresentados a mais algumas pernas. Antes dela se matar, Truffaut nos mostra as pernas de Mathilde, também numa cama, em A Mulher do Lado. Em seu último filme, De Repente, Num Domingo,
nos mostrará as pernas da mesma Fanny Ardant, desta vez na pele de
Bárbara Becker. Mas também veremos a perna de Marie-Christine, enquanto
tenta seduzir o próprio marido após confessar que é uma adúltera.
Bertrand delira e imagina pernas de mulheres mesmo quando está olhando
para pernas de homens, em O Homem que Amava as Mulheres.
Teorizando sobre o assunto ele sugere que, “as pernas das mulheres são
compassos que percorrem o globo terrestre em todos os sentidos,
dando-lhe seu equilíbrio e sua harmonia” (24).
“A estrutura fetichista do erotismo em Truffaut nem precisa mais ser demonstrada. O instrumento sexual é o olho e não o sexo. O prazer nasce de superar o obstáculo diante dos olhos. A verdadeira nudez permanece horripilante porque revela a diferença sexual que é preciso ignorar. ‘Eu sei, mas de qualquer maneira…’ Não é tanto o corpo nu que espreita por trás dos pedaços de roupas ou dos enquadramentos que retalham a mulher, mas o sexo feminino, medusa que assusta e petrifica. O rito fetichista afasta esta ameaça, exorcizando o corpo da mãe e o caos do incesto” (25)
Gillain também se refere a um corpo
clínico para além do corpo erótico, onde a nudez também será evitada.
Passamos de um corpo sugerido, fragmentado pelos closes da câmera,
capturado a partir do exterior pelo olhar do voyeur, para a alquimia assustadora do corpo interno. Esse é o corpo que domina As Duas Inglesas e o Amor. O corpo erótico vestido, coberto por lingerie,
afasta a visão inquietante do corpo visceral, desastre úmido
incontrolável constituído de vômitos e lágrimas de sangue. De acordo com
Gillain, Truffaut queria filmar gotas de esperma no sexo de Muriel,
neste filme que se pretendia uma denúncia impiedosa do amor romântico. O
cineasta optou pelo close de uma mancha de sangue sobre o lençol branco
para assinalar a defloração da jovem.
O corpo clínico, disse Gillain, é um
corpo mutilado que apenas o culto fetichista restaura, no instante do
gozo de sua integridade. Na última cena de O Homem que Amava as Mulheres,
encontramos Bertrand imobilizado numa cama de hospital, mas, para
conseguir ver/tocar as pernas da enfermeira que se aproxima, ele se
debruça e acaba se espatifando no chão. O filme começa pelo final,
estamos no enterro de Bertrand e todas as suas mulheres desfilam diante
da cova. Narrando a cena, uma delas (Geneviève, a editora que concordou
em publicar o livro de memórias de Bertrand, para o qual ela mesma
escolheu o título: O Homem que Amava as Mulheres) explica que
ele agora está bem posicionado para ver por uma última vez aquilo que
ele mais gostava nas mulheres. Se por um lado concluímos com Gillain que
Truffaut abomina a nudez (26), resta uma sensação de que no mundo
atual, saturado com a mercantilização da nudez feminina, algumas peças
de roupa poderiam ajudar os homens a reeducar sua libido. Contudo,
Gillain aprofunda sua hipótese até chegar ao corpo masculino. No extremo
oposto de As Duas Inglesas e o Amor, Gillain coloca os filmes
da série Doinel. O corpo de Antoine está vivo e sempre em movimento, não
se deixando levar pelos desastres do corpo interno. Desconhece desmaios
como os das jovens inglesas e de Adèle H. Nós o veremos nu ou seminu
pelo menos duas vezes. Em Os Incompreendidos, quando ele ouve os
conselhos da mãe, e em Beijos Proibidos, quando nu sob os lençóis escuta
a senhora Tabard vestida com um conjunto Chanel, que lhe propõe transar
e não se encontrarem nunca mais. Duas cenas que ecoam uma de O Homem que Amava as Mulheres,
onde a mãe de Bertrand costumava andar seminua pela casa, sem se
importar com a opinião dele – ele descobriria que sua mãe tinha muitos
amantes. Mais um traço autobiográfico de Truffaut:
“A minha mãe não suportava o barulho, ou, devo dizer, para ser mais preciso, ela não me suportava. Seja como for, eu tinha que fingir que ali não estava e ficava sentado numa cadeira a ler. Não me era permitido brincar ou fazer qualquer barulho. Eu tinha que fazer com que as pessoas se esquecessem de que eu existia” (27)
Nas três cenas, o silêncio do filho
(simbolicamente, no caso da senhora Tabard) evidencia a ausência de
reciprocidade e de confiança. Gillain conclui que essas relações são
marcadas por duplicidade, distanciamento e dominação. Segundo Gillain,
poderíamos ver aí uma ferida original que os acompanhará até a idade
adulta. Ainda de acordo com Gillain, o único nu inocente e harmonioso na
obra de Truffaut encontra-se em O Garoto Selvagem (l’Enfant
Sauvage, 1970), onde o doutor Itard (papel do próprio Truffaut) não
cessa de vestir Victor. Durante todo o filme existe um contraste entre o
corpo do menino selvagem e o de Itard, coberto com cartola e fraque.
Certamente numa provocação a propósito de A Noite Americana, embora com
ressonâncias curiosas, Jean-Luc Godard se perguntou por que o personagem
do cineasta (papel do próprio Truffaut novamente) é o único que não
beija ninguém – é bom que se esclareça que os dois cineastas franceses
eram inimigos nessa época (28).
Para não concluir“(…) O objeto que sofre na obra de Truffaut é o corpo masculino. (…) Incapaz de assumir sua nudez, preso em roupas sombrias como as do protagonista de O Quarto Verde ou do burguês de Um só Pecado que odeia os esportes e morre diante das fotografias de esquiadores. A fúria das histórias contra o feminino reflete essa imagem negativa de um corpo de alguma forma desconectado, marcado por uma cisão entre psyche e soma. Assombrado por fantasmas da castração que as histórias vêm inscrever por deslocamento no corpo da mulher” (29)
“Metade dos meus filmes são românticos,
os outros tentam destruir o romance”
François Truffaut (30)
O francês François Truffaut não seria o
primeiro homem a expor suas dúvidas e fraquezas em relação às mulheres,
embora certamente esteja entre os poucos que o fez de forma tão direta.
As personagens femininas do cineasta italiano Federico Fellini são um
deleite, mas geralmente são figuras de sonho. Fellini dizia que a
maioria habitava seu passado, por outro lado ele também se declarava “um
grande mentiroso”. Em geral, as personagens femininas do espanhol Luis
Buñuel vivem numa espécie de desespero também encontrado nas personagens
femininas de Truffaut. A diferença, talvez, seja que “as mulheres de
Buñuel” são latinas… (desconsiderando aqui seus três últimos filmes, da
sua “fase francesa”). Quero dizer, são mais explícitas, mais… diretas! –
é mais simples descobrir o que elas estão sentindo.
Não tenho certeza se é razoável
classificar comportamentos a partir dessa tese antiga do determinismo
geográfico, mas isso dá o que pesar quando se procura escutar o tom de
voz do olhar das personagens femininas do sueco Ingmar Bergman. De
qualquer forma, muito ainda deveria ser dito em relação a várias
personagens femininas de Truffaut. Uma descrição de tipos humanos que
não termina nunca, sendo apenas adiada por um ponto final.
1. INSDORF, Annette. François Truffaut. Le Cinéma Est-il Magique? Paris: Éditions Ramsay, 1989. P. 150.
2. Idem, p. 135.
3. Ibidem, p. 138.
4. Ibidem, pp. 140-1.
5. GILLAIN, Anne. Le Cinéma Selon François Truffaut (1988). Citado em DUNCAN, Paul; INGRAM, Robert (Eds.). François Truffaut. A filmografia completa. Köln: Taschen, 2004. P. 4.
6. INSDORF, A. 1989. Op. Cit., pp. 145, 184.
7. Idem, p. 146.
8. Ibidem, pp. 148-9.
9. DESJARDINS, Aline. Aline Desjardins s’entretient avec François Truffaut (1988). Citado em INGRAM, Robert; DUNCAN, Paul (Eds.), 2004. P. 73.
10. INSDORF, Annette. Op. Cit., pp. 138-9.
11. NEYRAT, Cyril. François Truffaut. Paris: Cahiers du Cinéma Éditions, 2007. P. 38.
12. LE BERRE, Carole. François Truffaut at Work. London: Phaidon Press Ltd, 2005. Pp. 60-3.
13. Idem, p. 63.
14. INSDORF, A. 1989. Op. Cit., pp. 150-4.
15. Idem, p. 153.
16. Ibidem, p. 154.
17. DUNCAN, Paul; INGRAM, Robert (Eds.). François Truffaut. A filmografia completa. Köln: Taschen, 2004. P. 159, 162, 164.
18. LE BERRE, Carole. Op. Cit., pp. 256-8.
19. WATSON, Wallace Steadman. Understanding Rainer Werner Fassbinder: Film as Private and Public Art. USA: University of South Carolina Press, 1996. P. 16.
20. LE BERRE, Carole. Op. Cit., p. 258.
21. Idem.
22. GILLAIN, A. François Truffaut. In: BERGALA, Alain; DÉNIEL, Jacques; LEBOUTTE, Patrick (orgs). Une Encyclopédie du Nu au Cinéma. Éditions Yellow Now/Studio 43 – MJC/Terre Neuve Dunkerque, 1991. Pp. 381-3.
23. DUNCAN, P.; INGRAM, R. Op. Cit., pp. 62, 76, 96, 124, 168, 172, 178.
24. Idem, p. 152.
25. GILLAIN, A. 1991. Op. Cit., p. 382.
26. Idem, p. 381.
27. DESJARDINS, A. Op. Cit., p. 12.
28. NEYRAT, C. Op. Cit., pp. 62-3.
29. GILLAIN, A. Op. Cit., 1991. P. 383.
30. Idem, p. 334.
TEXTO ORIGINALMENTE PUBLICADO NA REVISTA RUA (Revista Universitária do Audiovisual) da Universidade Federal de São Carlos.
Graduado em Ciências Sociais (1989 – UFF), Mestrado e Doutorado em Comunicação e Cultura (1994 e 2002 – ECO-UFRJ). É autor de artigos para os catálogos das Mostras Filmes Libertam a Cabeça – Rainer Werner Fassbinder (CCBB-RJ, 2009), A Itália e o Cinema Brasileiro (REcine, Arquivo Nacional-RJ, 2011), REcine ri à Toa (REcine, Arquivo Nacional-RJ, 2012) e Luis Buñuel. O Fantasma da Liberdade (Fundação Clóvis Salgado-MG, 2012). Contribui para as revistas online dEsEnrEdoS e RUA (UFSCar). Para a Revista online Acesso Livre (nº1 – janeiro/junho, 2014. Pp. 62-78), contribuiu com Conexão Espaguete: Cinema e Política na Itália. Mantêm três blogs: Cinema Europeu (http://cinemaeuropeu.blogspot.com.br/), Cinema Italiano (http://cinemaitalianorao.blogspot.com.br/) e Corpo e Sociedade (http://corpoesociedade.blogspot.com.br/).
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