agosto 25, 2015

Mandamentos Cínicos - "Não se envergonharás". Escrito por Rafael Trindade (RAZÃO INADEQUADA)

PICICA: "Os Cínicos nos ensinam a verdadeira vida. Através da alteração da moeda vigente eles transformam a vida comum em verdadeira vida filosófica. Como fazer isso sem chutar a bunda de Platão? O filósofo definiu a verdade como aletheia, mas os Cínicos levam a afirmação platônica ao extremo e a fazem seu tiro idealista sair pela culatra." 

 
Os Cínicos nos ensinam a verdadeira vida. Através da alteração da moeda vigente eles transformam a vida comum em verdadeira vida filosófica. Como fazer isso sem chutar a bunda de Platão? O filósofo definiu a verdade como aletheia, mas os Cínicos levam a afirmação platônica ao extremo e a fazem seu tiro idealista sair pela culatra.


A filosofia idealista definia a verdadeira vida como uma vida não dissimulada. Ou seja, vive de tal modo que não precise dissimular aos outros quem tu és. Seja correto, não cometa nenhuma ação repreensível, que te cause vergonha perante teu próximo. Sêneca aconselhava mandar cartas aos teus amigos contando tuas atitudes de forma que eles possam ser juízes de teus atos. Epicteto aconselhava imaginar que os próprios deuses estavam acompanhando seus passos (mera semelhança com religiões atuais não é mera coincidência).


Chegamos assim facilmente ao cristianismo onde os devotos vivem sendo perseguidos pela sombra enorme de Deus que os jogará em um lago de fogo em face do mínimo desvio das leis divinas. “Não dissimularás” lentamente se torna, “siga a Lei”!


Os Cínicos ouviram Platão dizer: “a verdadeira vida é não dissimulada“, e deram uma grande gargalhada, eles provavelmente responderam: “ouço o que digo, ó sábio Platão, mas não o vejo praticar“. A verdadeira vida só pode ser não dissimulada do começo ao fim. Por isso os Cínicos levam a afirmação ao extremo e fazem o filósofo das ideias passar vergonha.

A vida do cínico é não dissimulada, no sentido de que ela é realmente, materialmente, fisicamente pública” – Foucault, A Coragem da Verdade, p. 223


Escultura de Hércules
Escultura de Hércules

Diógenes comia na rua, dormia na rua, se masturbava na rua. Enfim, Diógenes morava no meio do olhar dos outros. Viver a vida não dissimulada é vivê-la aos olhos de todos, de modo imediato, direto. Nada a esconder. O olhar não seria mais a mediação do viver correto, ele passa a ser o resultado de uma vida que se conduz corretamente e por isso não liga para os olhares alheios. Os cínicos padecem, encenam, ensinam e denunciam sempre em visibilidade absoluta.


Uma vida não dissimulada é aquela que não se preocupa com os olhares alheios nem teme ser envergonhada perante os outros. A verdadeira vida não dissimulada é aquela que esquece o significado da vergonha. Ora, não se deve dissimular a natureza, ela é boa! Se a natureza pôs em nós bunda, seios, pelos, pênis, por que se envergonhar? Se peidamos e mijamos, ora, então peidemos e mijemos no idealismo! Tudo acompanhado de um riso dos que coram com tais atos. Adeus às regras de pudor tradicionais, a natureza humana é tão natureza quanto qualquer outra, e a natureza não deve temer sua própria expressão.


O pensamento tradicional colocava uma vida não dissimulada como pretexto para impor regras e condutas. “Para não te envergonhardes, faça assim“, Diógenes responde com uma careta e dança nu, ele não se envergonha de ser um cão.


A não dissimulação, longe de ser a retomada e a aceitação dessas regras de pudor tradicionais que fazem que as pessoas se envergonham de fazer o mal diante das outras, deve ser a exposição da naturalidade do ser humano ante o olhar de todos” – Foucault, A Coragem da Verdade, p. 224



Escrito por Rafael Trindade

Artesão de mim, habito a superfície da pele, atento para o que entra e sai.

Fonte: RAZÃO INADEQUADA

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