PICICA: "Se em “Casa Grande”
(2014), de Fellipe Barbosa a voz dissonante gritando as diferenças
sociais e os temores era a classe dominante, em “Que Horas Ela Volta?”
de Anna Muylaert o lugar de onde se fala é o da classe dominada. O filme
é cheio de atravessamentos, as questões sociais é a linha que costura a
trama e faz uma radiografia dos muros invisíveis construídos pelas
classes instituídas, silenciosamente. E ainda mergulha de cabeça na
questão das políticas públicas de inclusão social."
Que Horas Ela Volta?
Que Horas Ela Volta? (Drama); Elenco: Regina Casé, Michel Joelsas, Camila Márdila, Karine Teles; Direção: Anna Muylaert; Brasil, 2015. 112 Min.
Se em “Casa Grande”
(2014), de Fellipe Barbosa a voz dissonante gritando as diferenças
sociais e os temores era a classe dominante, em “Que Horas Ela Volta?”
de Anna Muylaert o lugar de onde se fala é o da classe dominada. O filme
é cheio de atravessamentos, as questões sociais é a linha que costura a
trama e faz uma radiografia dos muros invisíveis construídos pelas
classes instituídas, silenciosamente. E ainda mergulha de cabeça na
questão das políticas públicas de inclusão social.
O enredo faz uma ligação cultural entre
São Paulo e Pernambuco. Uma babá pernambucana, Val (Regina Casé) que
trabalha para uma família abastada de São Paulo, cria o filho de seus
patrões, Fabinho (Michel Joelsas) mas não pode criar a sua própria
filha, Jéssica (Camila Mádila), que vive em Recife com familiares, a
troco de um contribuição mensal que Val os envia. Até que um dia
Jéssica decide fazer vestibular para arquitetura na FAU (Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da USP) e precisa de um lugar para ficar em São
Paulo enquanto faz as provas de seleção do concurso. Liga para a mãe, a
quem não vê há dez anos, e pede para se hospedar na casa dela. Val mora
na casa dos patrões e, é ai que a história se desenrola com uma sutileza
de situações do cotidiano que pede para o roteiro ser aplaudido de pé: o
sorvete da geladeira, o quarto de hóspedes, o uso da piscina, o lugar
de fazer as refeições e o polimento dos discursos hipócritas.
O longa dirigido e roteirizado por Anna
Muylaert faz um passeio pelas diferenças/distâncias e muros pautado pela
trilha sonora: o forró e a Bossa Nova; pela planta da casa: o quarto de
empregada e o quarto de hóspedes; pelas expressões de geografia
espacial da casa: da cozinha pra lá/da cozinha pra cá. O
roteiro é uma viagem pelos dois mundos sociais dentro de uma mesma casa:
a maneira de falar, a maneira de raciocinar e entender o dito. Os
signos metafóricos de adonamento da própria vida, de tomada de
rédeas da jornada da existência, a singeleza e a dureza da transgressão e
seus profundos significados.
Anna Muylaert é conhecida pelo roteiro de
“O Ano Em Que Meus Pais Saíram de Férias” (2006) e a direção de “É
Proibido Fumar” (2009). A trilha sonora de Vítor Araújo costura o muro
das relações sociais, a fotografia de bárbara Alvarez de “Boa Sorte”
(2014) une esses mundos: o sol, a luz, as cores brilham em ambos os
lados. Quanto as atuações, Camila Márdila, de “O Outro Lado do Paraíso”
(2014) ganhou o prêmio do júri dos Festival de Sundance de melhor atriz
coadjuvante, Karine Teles de “Madame Satã” (2002) e “Lobo Atrás da
Porta” (2013) está soberba no papel de bárbara, a patroa. Mas o destaque
fica para Regina Casé que abocanhou o prêmio do Juri do Festival de
Sundance de melhor Atriz, e está na medida, nem se empolga na
improvisação, nem se aquieta num papel contido como é o de Val. Sua
interação vocabular com o regionalismo pernambucano vai para além do
sotaque, está nas expressões não tão conhecidas que ela faz uso com
propriedade.
O que nos faz pensar o quanto não sabemos
ou não notamos do talento de nossos atores. Regina é mais conhecida
pelos filmes voltados para comédia, pela série TV Pirata e apresentações
de programas televisivos, e a gente esqueceu que Regina atuou em 19
filmes para cinema, dentre eles alguns premiados e reconhecidos
internacionalmente como: “Marvada Carne” (1985) de André Klotzel; “Luar
Sobre Parador” (1988) de Paul Mazursky – indicado a dois globos de ouro –
e “Eu, Tu, Eles” (2000) de Andrucha Waddington. Dizem que as atuações
de Regina Casé são variações dela mesma, mas fazer o quê se a mulher é
múltipla. O estilo da atriz é a representação genuína dessa diversidade
cultural brasileira e a cara da periferia, sem sê-lo.
‘The Second Mother” ( a versão em inglês
do título) já esta sendo apontado como uma possibilidade brasileira ao
Oscar 2016 de melhor filme estrangeiro. Know how já tem,
abocanhou os prêmios CICAE e o Panorama do Festival de Berlim 2015 para
Anna Muylaert e o prêmio do júri de melhor roteiro no festival
RiverRun. Agora, imaginemos por um minuto, (passados todos os
trâmites) a possibilidade de o primeiro Oscar brasileiro vir de um filme
dirigido por uma mulher e estrelado por Regina Casé… mais subversão da
ordem impossível.
O filme nacional que foi notícia no
Festival de Berlim e Sundance é um primor em reflexões sobre os aspectos
sociais, políticos e existenciais, com uma linguagem fácil, diálogos
engraçados e inteligentes e cheio de transgressões contidas e altamente
significativas. Magistral!
Nenhum comentário:
Postar um comentário