agosto 28, 2015

Brasil: o relato do PT no labirinto neoliberal. POR Bernardo Gutiérrez (openDemocracy)

PICICA: "Desde 2014, o governo de Dilma Rousseff forçou a polarização estratégica entre “a esquerda” e “a direita”. No entanto, entre seu relato progressista e a sua real politik neoliberal há um abismo."

Brasil: o relato do PT no labirinto neoliberal



Desde 2014, o governo de Dilma Rousseff forçou a polarização estratégica entre “a esquerda” e “a direita”. No entanto, entre seu relato progressista e a sua real politik neoliberal há um abismo. Español. English.
 
Protesto de 15/03 em São Paulo, Brasil. FLickr. Alguns direitos reservados

No final de 2008, na luxuosa Galeria Oeste de São Paulo pagavam-se até 20.000 dólares por uma pelúcia de Luiz Inácio Lula dá Silva, então presidente de Brasil.  pelúcia presidencial era um desejado amuleto hype. Podia-se abraçar com amor e/ou ódio. Podia-se maltratar com fingido desprezo, mas com um fundo de respeito. O projeto Lula de  pelúcia, do artista Raul Mourão, visibilizava o principal milagre do presidente de Brasil: reconciliar emocionalmente a um dos países mais desiguais do mundo. Antes de Lula, a única unanimidade dos brasileiros, segundo a irónica sabedoria das conversas dos botecos (bares), era o cantor Chico Buarque. Uns anos após a chegada do PT no governo, a unanimidade era Lula: o presidente de andar por casa que agradou / compensou a ricos e pobres ao mesmo tempo. Apesar de escândalos de corrupção como o mensalão, só o 11% dos brasileiros pensava em 2008 que a gestão do presidente era má. Lula era um ícone, um mito quase intocável. “Foi um produto de marketing perfeito, massivo”, afirmava na época Raul Mourão.
Sete anos depois, o Lula de  pelúcia transformou-se num gigantesco boneco inflável com roupa de presidiário, sarandeado nas manifestações que pedem o impeachment de Dilma Rousseff. No passado dia 16, um boneco gigantesco com o número 13-171 presidiu o protesto em Brasília: 13 pelo número que simboliza o PT nas urnas eletrónicas, 171 pelo artigo do código penal (estelionato), uma expressão (171) muito usada para alguém que não é de fiar. De pelúcia  milagrosa a satírico fantoche. De amuleto a ser insultando com o parodiado “171”. Lula, que até faz uns meses estava nas previsões como candidato em 2018, não se livra do derrube do PT. Lula está em cheque: o escândalo de corrupção do gigante da construção Odebrecht aponta a Lula como lobista internacional. Uma  pesquisa recente mostra que Lula perderia as eleições contra Aécio Neves, Geraldo Alckmin ou José Serra, os três possíveis candidatos do conservador Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). A situação de Dilma Rousseff não tem precedentes: apenas um 8% do país aprova sua gestão. Como se explica o afundamento se o PT, em aliança com o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), ganhou as eleições em outubro de 2014?

A crise económica e os descomunais casos de corrupção de Petrobras e de Odebrecht (ambos relacionados com o PT e o governo) explicam parte da impopularidade de Dilma. Os megaeventos de duvidoso legado – um Mundial de futebol e umas Olimpíadas que favorecem ao establishment a costa das arcas públicas – poderia justificar parte do  desgaste. Mas há algo mais. Bem mais. O congresso, presidido pelo evangelista Eduardo Cunha (PMDB), está quase ingovernável. Cunha tem passado de ser um fiel aliado do PT a um declarado inimigo que manobra para causas conservadoras. Ainda que acaba de ser denunciado por corrupção e pode cair, Cunha maneja o congresso a seu desejo. Alguns partidos da base aliada do PT anunciam sua rutura. A corrente Esquerda Marxista (fundadora do PT) abandona o partido. Os movimentos populares clássicos já criticam Dilma, ainda que escarnifiquem apoio em manifestações concretas. O ecossistema indignado que tomou as ruas em junho de 2013  não está quase participando nos protestos binários (a favor ou contra) de 2015. Entretanto, o poder neoliberal e conservador avança no Congresso. 

E Dilma abraça a neoliberal Agenda Brasil que estuda cobrar parte do uso da previdência pública ou transformar reservas indígenas em “terras produtivas”. Aprova-se a Lei Antiterrorista que pode levar a manifestantes e internautas à prisão. Recortam-se direitos dos trabalhadores em nome da austeridade.Paralisam-se programas LGBT. Como tem chegado o autoproclamado “país do futuro” a esta situação? Como tem chegado um partido como o PT a entregar a agenda política à direita?

Consenso Dicotómico

Alguns analistas políticos falam do processo de “venezuelizacão” que vive o Brasil, para destacar a polarização política. A primeira vista, o relato dos grandes meios, da oposição conservadora e do próprio PT reforça a tese da polarização. De um lado, os que tomam as ruas com o grito – hashtag #VemPraRua, infundados em bandeiras de Brasil pedindo o impeachment de Dilma Rousseff. Do outro, os sindicatos, movimentos sociais e cidadãos de esquerda que se manifestam contra o impeachment, como no passado dia 20. No entanto, a realidade é infinitamente mais complexa e, ao mesmo tempo, mais simples. A polarização é uma construção narrativa habilmente trabalhada. O grande consenso dicotómico, a volta ao antagonismo esquerda-direita, ao povo-elite, é o último cartucho do PT. É uma útil ficção política alimentada tanto pela direita como pelo PT. A direita, apesar de deriva conservadora de Dilma, continua construindo o mito de que o PT quer dar “um golpe comunista”. O PT identifica como “golpista” ou “neoliberal” a qualquer que se oponha a seu governo. E todo aquele que calque a rua contra Dilma é “coxinha” (algo assim como burguês), “anti democrático” ou “fascista”. 

E no choque dos dois lados da mesma moeda, o sistema sobrevive. Enquanto se agudiza o consenso dicotómico, ironizado como fla-flu (em alusão a um partido Flamengo vs Fluminense), qualquer vislumbre de terceira via morre antes de nascer (como a possibilidade de Marina Silva durante as eleições). Se há uma palavra que define o Partido dos Trabalhadores (PT), versão 2015, essa é “governismo”. O antropólogo Salvador Schavelzon define o governismo como “um tipo de argumentação cínica incapaz de reconhecer críticas ou matizes e associa qualquer dissidência com a direita e neoliberalismo”. O governismo diluiu a multidão multi-causa das ruas indignadas de 2013 e construiu massas dicotómicas com pautas concretas e organizações centralizadas. O governismo tem substituído à ideologia que construiu ao PT desde abaixo e a esquerda. O governismo é o principal combustível do consenso dicotómico que divide ao povo de Brasil e paralisa a construção política.

E aqui chega o primeiro grande paradoxo: o PT está agora despregando a narrativa combativa com a que Lula perdeu todas as eleições até 2002. Tanto Lula como Dilma chegaram à presidência dulcificando sua imagem esquerdista. O “marketeiro” Duda Mendonça transformou àquele sindicalista num engravatado conciliador que sorria ao ritmo do lema “Lulinha, paz e amor”. Dilma ganhou as eleições de 2010 com a maquilhada imagem de Avó Que Já Não É Querrilleira, apelando a Deus em sua campanha. O marketing escondia a realidade, modificando-a ao mesmo tempo. E, agora, justo quando Dilma e Lula se transformaram na imagem descafeinada e capitalista “friendly” que o marketing construiu, o PT joga mão da narrativa esquerdista de sua pré-história. O que ocorre é que esse relato progressista que apela à periferia e à luta de classes, como o marketing que fabricou ao 'Lulinha, paz e amor', é em parte falso. O relato do PT, no labirinto neoliberal de Dilma, é diretamente “fake”. A política de Dilma está quase nas antípodas da esquerda. O sociólogo Giuseppe Cocco, professor da Universidade Federal de Rio de Janeiro (UFRJ), afirma contundentemente que o PT é a pior “direita”, aquela “neocolonial e mafiosa”. A austeridade aplicada pelo ministro de economia Joaquim Levy não tem nada que invejar às receitas da Troika.

Enquanto, o governismo se esforça em encontrar os detalhes mais de direita nas manifestações pró impeachment: fotos pedindo o golpe militar ou a morte de Dilma. E dessa forma coloca o estigma de coxinhas anti democráticos aos centos de milhares de pessoas que vão às ruas contra Dilma. E ao mesmo tempo enriquece seu popio relato. Um dos lemas da manifestação do passado dia 20, convocada por movimentos populares contra o impeachment de Dilma, era o “Não Vai Ter Golpe””, “Não passarão”, “América Latina anti imperialista”. E ao mesmo tempo, sem complexo de culpa, Dilma coloca o tapete vermelho em Brasília a Ângela Merkel e ao capitalismo alemão.

A realidade é mais complexa (e mais simples) ao mesmo tempo. O estudo realizado pelos pesquisadores Pablo Ortellado, Esther Solano e Lucia Nader sobre a manifestação do passado dia 16 em São Paulo tem provocado um forte impacto. O estudo, elaborado a partir de entrevistas na rua, revela que as manifestações que pedem o impeachment de Dilma convocadas pelos grupos conservadores como o Movimento Brasil Livre (MPL), Revoltados On-line e VemPraRua, são mais anti sistema que anti petistas. Ditos protestos também não encaixam exatamente com “direita”. Os políticos e partidos conservadores, como o PSDB, não se livram da separação. E a grande surpresa: uma grande maioria dos manifestantes está a favor da educação pública (98%) ou a saúde universal (97%), contrariando aos grupos convocantes. “Defendem algumas pautas que estão à esquerda de Dilma”, assegura Pablo Ortellado.

Apesar de certa esquizofrenia e confusão política – os manifestantes também defendem o endurecimento da punição de crimes – poderíamos afirmar que uma parte da indignação surgida em junho de 2013 está nas mãos de grupos conservadores, que a dirigem contra Dilma. O governismo entregou à direita a indignação das ruas. E os grandes meios a usam como querem. Boa parte da esquerda ainda está, segundo a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, presa num chantaje emocional que considera qualquer crítica ao PT como “um prato cheio para a direita”. E o governismo continua agitando o fantasma de um golpe  de Estado. “¿Que espaço existe para um golpe – pergunta-se o doutor em Ciências Sociais Marcelo Castañeda – se o governo tem apoio do PMDB, da Rede Globo e das principais empresas do país? Se houve golpe já foi dado pelo próprio PT, especialmente a partir de junho de 2013 quando matou a possibilidade de construir alternativas à esquerda, já que preferiu a repressão ao diálogo”.  

O vazio de Junho

A eclosão de junho de 2013 supôs, segundo o filósofo Marcos Nobre, uma revolta contra o que ele denomina pemedebismo. Justamente nessa aliança entre o PT e o direitista PMDB, escondida sempre pelo marketing petista for export, jazem os limites do lulismo, de junho de 2013, de qualquer mudança. Lula governou abraçando o vale tudo, selando acordos territoriais com coronéis, elites latifundiárias, multinacionais da soja, herdeiros da ditadura. Especialmente com o PMDB. Não é casualidade que Katia Abreu, empresária da soja, seja a ministra de Agricultura de Dilma. Por outro lado, em 2008, Lula reforçou sua aliança com Sérgio Cabral (então governador do estado de Rio de Janeiro) e Eduardo Pães (prefeito de Rio de Janeiro), ambos do PMDB, ambos ultra conservadores e defensores de grupos de milicianos (paramilitares). O blocão do pemedebismo entregou o Rio olímpico a Oderbrecht e às grandes empresas. E reforçou o caminho único do governismo em Brasília. Esta aliança PT-PMDB massacra, em palavras de Giuseppe Cocco, “a luta dos garis  do Rio, gera trabalho escravo nas obras da Olimpíada e preocupa-se mais pelos interesses das multinacionais da telecomunicação ou da automoção que pelos direitos trabalhistas”. O jornalista Raúl Zibechi também denuncia a incapacidade do governo brasileiro para ler as demandas de junho de 2013, “a necessidade de ir para além da inclusão via consumo, para obter direitos plenos”. O PT, que já é o partido mais odiado de Brasil , prefere fabricar uma fábula antagonista na que Eduardo Cunha, que faz uns meses se fotografava de mãos dadas com Dilma, é o demónio conservador. E “a onda conservadora”, que coincide em sua maior parte com as políticas do PT, é a culpada de todos os males. O governismo como método, a dicotomia como narrativa.

Durante as eleições de 2014, quando foi arredondado o consenso dicotómico entre Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB) começou a circular um meme do candidato único, DilmaAécio, com uma cara que fundia a ambos candidatos. Alguns ativistas ironizavam sobre o PTSDB, esse grande partido de unidade. Não é casualidade que agora tenha membros do PT pedindo um grande acordo supra partidário e que o presidente do banco Itau defenda Dilma. Nos primeiros meses do governo Dilma provam que não existiriam diferencia factuais entre um governo petista e o que seria um tucano (PSDB). Mas teria diferenças simbólicas, relatos radicalmente diferentes. Salvador Schavelzon, no O fim do relato progressista,dispara contra os governos da “esquerda latino-americana”, nos que avança “a ideologia do consumo, o consenso do desenvolvimento, o extrativismo e a agenda política dos setores religiosos”. Se a esse dizimado relato progressista somamos a corrupção, que a direita tem transformado em património da esquerda, o afundamento simbólico será completo, abrindo a possibilidade de um novo ciclo neocon na região. 

Por isso, as esquerdas brasileirasesquerda que criticando ao governo convocam manifestações anti impeachment para defendê-lo e a esquerda que abandonou as ruas, têm um duplo desafio. Por um lado, organizar uma frente popular e cidadão, com e sem o petismo, que apele aos movimentos de base mas também aos “indignados” que defendem pautas progressistas e frequentam manifestações convocadas pela direita, uma frente que construa uma alternativa viável para governar sem governismo. Por outro lado, as esquerdas têm que construir a narrativa ante uma (pouco provável) queda de Dilma ou uma (muito possível) perda das eleições de 2018. A oposição construirá a derrota do PT associando a “esquerda” à “corrupção” e ao desastre do “lulismo”. Dá igual que Dilma tenha estado praticando o neoliberalismo mais rampante. Não importa que o PT não tenha tocado em 12 anos assuntos como o aborto ou a reforma agrária. A oposição venderá sua queda como prova da inviabilidade de todas as utopias, do progressismo e da equidade social.

Em 2015, não há espaço para cobiçadas pelúcias presidenciais. Também não para o bloco #TodosComChicoBuarque: muitos deixarão de ouvir a sua música nesse consenso dicotômico, por comunista. A única unanimidade nacional é um consenso dicotómico artificial que governa, sem a gente, para perpetuar o sistema sem que nada mude. Por isso, as esquerdas e/ou cidadania indignada progressista deveriam abordar o afundamento de Dilma com outra narrativa: construindo o relato de outro presidente latino-americano que caiu ou perdeu por se vender ao neoliberalismo e às multinacionais. Dilma seria a Brasil o que Fernando da Rua foi a Argentina ou Lúcio Gutiérrez a Equador: um presidente que traiu seus princípios. Desta maneira o afundamento do PT serviria, pelo menos, para salvar o imaginário de lutas e utopias das que surgiu.

About the author
 
Bernardo Gutiérrez (@bernardosampa em Twitter) es un periodista, escritor e investigador hispano-brasileño residente en São Paulo. Escribe de política, sociedad y cultura brasileña (y latinoamericana) desde el año 2000. Al mismo tiempo escribe e investiga sobre movimientos sociales, procesos tecnopolíticos y las revueltas interconectadas que sacuden al mundo desde la Primavera Árabe. Sobre Brasil ha publicado el libros Calle Amazonas (Altaïr, 2010), colaborado en libros colectivos como 'Amanhã vai ser maior' (Anna Blume, 2014) o sido uno de los editores de 'JUNHO: potência das ruas e das redes' (Friedrich Ebert Siftung, 2014).

Bernardo Gutiérrez (@bernardosampa em Twitter) é um jornalista, escritor e investigador hispano-brasileiro residente em São Paulo. Escreve de política, sociedade e cultura brasileira (e latino-americana) desde o ano 2.000. Sobre o Brasil publicou o livro Cale Amazonas (Altaïr, 2010), colaborou em livros coletivos como ''Amanhã vai ser maior' (Anna Blume, 2014) e foi um dos editores de 'JUNHO: potência das ruas e das redes' (Friedrich Ebert Siftung, 2014).

Bernardo Gutiérrez (@bernardosampa in Twitter) is a journalist, writer and Hispanic-Brazilian researcher resident in São Paulo. He writes about politics, society and Brazilian culture (and Latin-American) since the year 2.000. On Brazil he has published the books Street Amazons (Altaïr, 2010), collaborated in collective books as ''Tomorrow will be bigger" (Anna Blume, 2014) and was one of editors of JUNHO: potência das ruas e das redes' (Friedrich Ebert Siftung, 2014).


Fonte: openDemocracy

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