PICICA: "A afirmação da vida é o núcleo do pensamento de
Nietzsche, no entanto, sua vida e obra são fontes inesgotáveis de
leituras equivocadas. Sua escrita aforística, permeada de alegorias e,
por que não, muitas vezes poética, impede que sua obra seja acessível às
exigências da leitura de consumo. Exige-se tempo, idas e voltas,
trilhar caminhos sem pontos de partida nem de chegada, persistência e,
sobretudo, um espírito que desconfia de si mesmo e que tenha a coragem
de suportar a sua própria desconstrução, pois o novo homem que pede
passagem só poderá nascer em um mundo cujos modelos, ídolos, deuses,
moral e demais estruturas de rebanho tenham sido destruídas. E quem, em
uma cultura egóica, tem a honestidade consigo mesmo, hoje, de se despir
de seus mais íntimos valores e desconfiar de si mesmo? Definitivamente,
Nietzsche não se apreende em frases nem em recortes como aqueles para os
“estressados”."
Nietzsche e a afirmação da vida
A afirmação da vida é o núcleo do pensamento de Nietzsche, no entanto, sua vida e obra são fontes inesgotáveis de leituras equivocadas. Sua escrita aforística, permeada de alegorias e, por que não, muitas vezes poética, impede que sua obra seja acessível às exigências da leitura de consumo. Exige-se tempo, idas e voltas, trilhar caminhos sem pontos de partida nem de chegada, persistência e, sobretudo, um espírito que desconfia de si mesmo e que tenha a coragem de suportar a sua própria desconstrução, pois o novo homem que pede passagem só poderá nascer em um mundo cujos modelos, ídolos, deuses, moral e demais estruturas de rebanho tenham sido destruídas. E quem, em uma cultura egóica, tem a honestidade consigo mesmo, hoje, de se despir de seus mais íntimos valores e desconfiar de si mesmo? Definitivamente, Nietzsche não se apreende em frases nem em recortes como aqueles para os “estressados”.
A
vida como afirmação de si, como criação, como inventividade, como
liberação dos instintos, como arte e como dança! A princípio, não parece
ser verdade que essa é a filosofia Nietzscheana em seu núcleo, no entanto, não tenham dúvida, este é o impulso central de sua obra.
Nietzsche foi vítima de sua
própria vaidade: não era um autor que queria ser entendido por todos.
Sua maneira enigmática de escrever, quase sempre por meio de aforismas
(ou muito curtos ou muito longos), não é fácil de acompanhar.
Talvez por isso seja mais
comum ouvir por aí sobre um Nietzsche antissemita, patrono do nazismo,
em vez de um Nietzsche criativo e amante da vida.
Nietzsche ser difícil de
ler não é o único complicador. Após sua morte, Elisabeth
Förster-Nietzsche, irmã do filósofo, preparou uma edição das obras
completas de Nietzsche para que ficasse subentendido uma certa repulsa
do autor aos movimentos sociais, às coletividades políticas e (seguindo
os interesses da editora) uma grande rejeição ao povo judeu.
Entender Nietzsche envolve entender porque o filósofo
é tão pouco compreendido. Depois de saber que sua filosofia é hermética
e requer cuidados especiais – principalmente para não cair na arapuca
nazista – podemos continuar sua apresentação.
Nietzsche, solidão como vida
De todas as suas obras,
talvez Assim Falou Zaratustra seja a mais densa, a mais hermética. Não é
para menos, foi resultado de sua extensa peregrinação pela Europa nos
anos 80 do século XIX: Nietzsche adoeceu e precisou abandonar seu posto
de professor na Universidade da Basileia, se retirou da docência e
decidiu seguir sua vida sem rumos certos, parava onde os ventos lhe
agradavam, onde a comida era boa e sua mente pensava lúcida.
Este estilo de vida nômade
foi colocado no papel por meio do Zaratustra, um Deus persa que viveu
seis séculos antes de cristo, utilizado para representar um novo tipo de
homem, que transborda em sua sabedoria e, por isso, desce de seu
refúgio na montanha para procurar outras pessoas como ele. Zaratustra é
como uma compilação da teoria nietzscheana corporificada no novo homem.
Quando desce da montanha,
Zaratustra aborda um sábio morador da floresta e, durante a conversa,
percebe que o velho sábio odeia os homens e ama os deuses, por isso se
isolou na mata. Como pode um homem se isolar para amar os deuses, indaga
Nietzsche por meio de seu personagem, se a solidão é justamente o local
perfeito para deixar de amá-los e passar a amar a vida como ela é?
Compaixão
é um veneno e os mendigos só sabem viver como mendigos, não se trata de
deixar os mendigos morrer de fome, mas que um sujeito “sofredor”,
objeto de autoflagelação e autopiedade, nunca vai sair de seu poço de
mediocridade, porque só assim ele sabe viver.
A morte de Deus, anunciada
em Gaia Ciência, tem seu fogo reacendido em Assim Falou Zaratustra. Não
significa a morte de um suposto Deus, mas sim o término das crenças em
estruturas exteriores que definem como devemos viver a vida. É com esta
morte que a vida deixa de ser vivida tendo como objetivo o além-vida
para ser focada na vida de fato).
É necessário viver o mundo,
como se só ele existisse, nos diz Zaratustra: a morte de Deus é o
início dessa argumentação, que passa pela vontade de potência (a energia
criativa que move tudo e se faz como impulso do mundo) e vai até o
amor-fati.
Talvez, esteja aqui um dos
melhores conceitos de Nietzsche. Amor-fati é o amor pela vida do jeito
que ela é. Não se trata de amar a vida apesar de tudo: se trata de amar a
vida do jeito que ela é, porque ela é a única que poderia ser.
O término desta
apresentação da filosofia nietzscheana deve seguir com o super-homem.
Diferente do personagem das histórias em quadrinhos, o além-do-homem
buscado por Zaratustra não é alguém invencível, só é alguém livre, um
novo tipo de homem, um ser evoluído, propagador da moral natural, que
favorece a vida e os instintos.
Muitas vezes, este super-homem será mal interpretado, tido como grosso e mal educado, mas este é um fardo que ele aguentará e nem se importará.
Por fim, Nietzsche formulou
uma filosofia não esquemática, não metafísica, porém prática, viva e
empolgante: sua morte em 1900 (possivelmente por sífilis) retirou um
grande filósofo do mundo, sua obra demorou para ser reconhecida, mas
devemos a ele este jeito tão não-moderno de ver o mundo moderno. Com
certeza, a ovelha negra dos ocidentais.
Fonte: LETRA & FILOSOFIA
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