agosto 22, 2015

Quem tem medo da pusão de morte? POR Rafael Trindade (RAZÃO INADEQUADA)

PICICA: "Freud ainda é muito influente em nossa visão de mundo e hoje quero discutir um conceito que me incomoda colocando-o em tensão com o pensamento de Espinosa. Trata-se do conceito de Pulsão de Morte em Freud, e conatus em Espinosa." 


A vida é um conjunto de forças que resistem à morte” -Bichat
Freud ainda é muito influente em nossa visão de mundo e hoje quero discutir um conceito que me incomoda colocando-o em tensão com o pensamento de Espinosa. Trata-se do conceito de Pulsão de Morte em Freud, e conatus em Espinosa.

A Pulsão de Morte foi uma reviravolta para a psicanálise, gerou uma comoção geral dentro do círculo de Viena. Para Freud, toda tensão gerada no organismo era sentida como desprazer, e sua consequente descarga era sentida como prazer. Poderíamos dizer que após a primeira tensão que dera origem à vida surgira, concomitantemente, uma pulsão para levá-la novamente ao estado inorgânico. Esta “hipótese”, “especulação”, foi o que originou a Pulsão de Morte, uma força que eliminaria toda tensão no indivíduo levando-o ao estado inorgânico.


Esta força estaria em luta com as forças que procuram manter a vida: Eros. Trata-se de uma dualidade, Eros “complicaria” as coisas buscando unir as partículas vivas em unidades cada vez maiores, já a Pulsão de Morte, ou Tânatos, procuraria desfazer as ligações. As pulsões trabalhariam sempre em oposição umas às outras e essas forças destrutivas seriam desviadas para fora pela Pulsão de Vida na forma de agressão, ajudando o organismo a manter-se protegido.
Uma pulsão é um impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior de coisas, impulso que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob pressão de forças perturbadoras externas” – Freud 

Schopenhauer já havia proposto essa ideia, não passa da velha busca do romantismo por algum estado anterior de perfeição perdido depois do pecado original, da nossa queda, ou da saída do útero da mãe (esta é, inclusive, uma proposição psicanalítica). Neste ponto, Freud é fruto de sua cultura, mais um entusiasta do movimento alemão “sturm und drang” (Tempestade e Ímpeto); em sua ingenuidade, ele propunha conceitos a torto e a direito como se houvesse algum lugar de volta para onde a psicanálise pudesse nos levar.

Espinosa, por sua vez, tem um pensamento ensolarado, muito diferente da Europa nublada de Freud. Apostar na potência do ser, na afirmação da vida, é muito melhor que uma força agressiva, cruel e mortífera localizada no que há de mais íntimo em nós. Nossa grande crítica para o conceito de Pulsão de Morte pode ser resumida na crítica a esta frase: “Se tomarmos como verdade que não conhece exceção o fato de que tudo o que vive morrer por razões internas” (Freud).

Espinosa nos traz uma perspectiva diretamente oposta. Na terceira parte de seu livro, Ética, ele nos diz: “nenhuma coisa pode ser destruída, a não ser por uma causa exterior” (Ética 3, Prop. IV). Esta é a definição de conatus (veja aqui), a essência de tudo que existe, a manifestação divina em nós, prova de que fazemos parte de um Deus que se confunde com a natureza.

Seguindo este raciocínio, o filósofo pode concluir: toda coisa se esforça, enquanto está em si, por perseverar no seu ser” (Ética III, Prop. VI), isto porque o conatus é a força que cria condições de sermos e permanecermos na existência, é uma força puramente positiva e afirmativa, imanente a todas as coisas. A pulsão espinosista (se assim a podemos chamá-la) faz novas conexões, ela cria para ela mesma suas próprias condições, sendo assim, a vida está sempre preenchida. Ela quer o encontro que compõe, quer criar tensão. Diferentemente da Pulsão de Morte, que busca o inorgânico, o imóvel, o fim da tensão (nirvana), podemos entender o conatus em Espinosa como uma prazer na relação, busca pelos bons encontros, confiança na vida, uma força única, monista, que abarcaria toda natureza (veja aqui).

O prazer de Freud é reativo. Prazer como descarga, alívio da tensão; isto não lembra os “happy hours”? O fim do expediente? Aquela cerveja no fim do dia que nos faz aguentar o próximo. Todo prazer reativo é onanista (veja aqui). Para Freud, o prazer é uma descarga de energia que nos faz retornar a um estado anterior, uma fuga da realidade. Mas retornar para onde se a pulsão nos faz diferenciar-nos de nós mesmos? Voltar pra quê, se podemos atingir novos lugares, ter novas ideias, agir de maneiras diferentes? O prazer que quer o retorno, a paz, é uma busca pela preservação de si, mas preservar-se é pouco (Freud queria pouco, não foi além da preservação), queremos a tensão que nos dá a capacidade de diferenciar-nos de nós mesmos! Segundo esta nova concepção, devemos querer mais pulsão! Para ir cada vez mais além, criar mais!

Talvez o problema para Freud seja a tensão, porque esta gera movimento, vida, variação, diferença. Qual é o problema freudiano? Ele também era neurótico, talvez. Comer gera tensão? Mas a energia acumulada na comida é interiorizada para ser utilizada posteriormente a serviço da vida. A tensão também pode gerar prazer, pense na pressão criada em seu tímpano ao ouvir uma música, pense no contraste das cores de um quadro, pense nas preliminares de uma relação sexual. Talvez os psicanalistas prefiram telas em branco, ou talvez Freud não gostasse de preliminares! Ele não acredita na vida o bastante para aceitar o movimento, a tensão, a diferenciação, a guerra, nem mesmo em seu sentido lúdico.

Freud não consegue resolver o problema porque atua no efeito e não na causa. Espinosa inclusive tenta nos precaver contra aqueles que “falam mal dos afetos”. Tânatos não será entendido como destruição se olhá-lo nos olhos e vermos seu verdadeiro poder de criação. O devir é ao mesmo tempo uma destruição e uma criação. Com medo do Id, o psicanalista passa a vê-lo como um olhar moralista, desta forma é inevitável não descrevê-lo como um assassino agressivo que deve ser repudiado ou temido. Assim, seguimos temendo o que há de mais essencial em nós. Quanto mais nos esforçamos moralmente por esconder estes impulsos, mais eles nos aparecem assustadores. 


A simples hipótese de uma Pulsão de Morte já soa um oxímoro:
Espinosa faz parte daqueles para quem a simples ideia de uma pulsão de morte é um conceito grotesco, absolutamente grotesco, que é realmente, Aaaaah…” – Deleuze, Curso Sobre Spinoza.
É um contra-senso dizer que uma pulsão possa ser de morte, que haja uma força em nós que leva a nós próprios para a morte. Espinosa nos trás o contraponto: “enquanto considerarmos somente a coisa e não as causas exteriores, nada podemos encontrar nela que a possa destruir” (Ética III, Prop, IV, Dem.). Se pulsão é desejo, e se o desejo  se expressa como conatus, então toda pulsão é de vida. Para exagerar a comparação e deixarmos mais claro ainda: para Espinosa só há pulsão de vida, sempre. A inevitabilidade da morte não é um argumento bom o bastante para naturalizá-la como uma pulsão, isto porque a minha morte é o começo ou continuação de outras vidas. Todo ser procura permanecer em si, e mais, aumentar sempre sua potência. Para Espinosa, se há potência, e ela só pode ser potência de vida.

Analisando mais a fundo, Tânatos é o típico procedimento do escravo nietzschiano: inverter e tomar como natural uma incapacidade própria (a Pulsão de Morte não poderia ser nada mais que a criação de um ressentido). Se em Freud, a Pulsão de Morte é maior que a pulsão de vida, em Espinosa, a pulsão de vida (prefiro usar conatus) é o que há de maior em nosso mundo, uma força que procurar compor o máximo possível, crescer, tornar-se pródiga. Que visões diferentes entre estes autores, um psicanalista que aposta na morte e um filósofo que aposta na vida.

E como se não bastasse, Freud ainda nos dá sua interpretação de cura: amansamento das pulsões e fortalecimento do Ego. Amansamento das pulsões? E por acaso queremos um amansamento das pulsões? Pelo contrário! Um corpo anestesiado gera uma mente anestesiada e, por fim, uma vida medíocre! Fortalecimento do Ego? Mas o Ego é justamente um enfraquecimento da potência em nós, uma prisão, enfim, uma ilusão: não queremos fortalecer ilusões! Não nos cansaremos de relembrar: o desejo não quer retornar, quer ir mais longe! Não quer destruir, quer criar! Por que foi tão difícil para Freud entender isso? O prazer na psicanálise é tipicamente reativo, é um prazer triste (sim, existem prazeres tristes).


Existem certos aspectos da teoria de Freud que já podem e devem ser ultrapassados por causa de seu mais absoluto niilismo, frutos de um homem e uma época doentes. O próprio Freud admitiu muitas vezes que suas teorias provavelmente seriam ultrapassadas por pesquisas futuras; em nosso caso, podemos dizer que as ideias de Freud podem inclusive ser ultrapassadas por teorias passadas. O psicanalista encontra limites históricos, mais do que isso, limites em um momento niilista da história. Minha sugestão é trocar a clínica das pulsões pela clínica da potência: proponho um retorno a Espinosa!
Não há nada que o homem livre  pense menos que na morte, e sua sabedoria não consiste na meditação da morte, mas da vida” – Espinosa, Ética IV, prop. 67
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Escrito por Rafael Trindade

Artesão de mim, habito a superfície da pele, atento para o que entra e sai. 

Fonte: Razão Inadequada

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