PICICA: "De Madri a Kobane, metrópoles são cada vez mais centrais para
superar sistema, diz geógrafo — mas esquerda clássica prefere acalentar
visão romântica sobre luta de classes"
David Harvey vê a revolta curda e o pós-capitalismo
De Madri a Kobane, metrópoles são cada vez mais centrais para
superar sistema, diz geógrafo — mas esquerda clássica prefere acalentar
visão romântica sobre luta de classes
Entrevista a Sardar Saadi, na Roarmag | Tradução Pedro Lucas Dulci
David Harvey é Professor de Antropologia e Geografia no Centro de Pós-Graduação da Universidade da Cidade de Nova York (CUNY). Ele estava na cidade de Diyarbakir, próxima ao Curdistão turco, para uma visita à região e também para participar de um painel na primeira Feira do Livro Amed com seu mais recente livro, Dezessete Contradições e o fim do capitalismo, traduzido em turco pela Sel Publishing. O colaborador da ROAR Sardar Saadi sentou-se com ele para uma entrevista.
Sardar Saadi é ativista que mora em Toronto e estudante de doutorado em antropologia na Universidade de Toronto.
Entrevista a Sardar Saadi, na Roarmag | Tradução Pedro Lucas Dulci
David Harvey é Professor de Antropologia e Geografia no Centro de Pós-Graduação da Universidade da Cidade de Nova York (CUNY). Ele estava na cidade de Diyarbakir, próxima ao Curdistão turco, para uma visita à região e também para participar de um painel na primeira Feira do Livro Amed com seu mais recente livro, Dezessete Contradições e o fim do capitalismo, traduzido em turco pela Sel Publishing. O colaborador da ROAR Sardar Saadi sentou-se com ele para uma entrevista.
Você pode dizer aos nossos leitores o que você trouxe para o Curdistão? Ouvi dizer que esteve em Kobane também?
Esta
é a minha terceira visita a esta parte da Turquia, e eu tenho algumas
conexões pessoais fortes com algumas das pessoas que ensinam na
Faculdade de Arquitetura da Universidade de Mardin Artuklu. Mardin é um
lugar muito bonito para visitar, e eu encontrei uma maneira de combinar o
prazer e algum trabalho. Mas também estou aqui por causa da situação
geral na Turquia e, em particular, também na região autônoma curda de Rojava,
na Síria. O lado sírio da fronteira é fascinante. Ao mesmo tempo, é
bastante horrível. Tenho me interessado por ele ultimamente.
Tentei chegar a Kobani, também, mas o governo turco basicamente fechou a fronteira.
Os
governantes da Turquia e da região curda do Iraque impuseram um embargo
a Rojava. Como você conecta isso com o que está acontecendo na região?
Posso
apenas especular que ninguém quer que nada do que está acontecendo em
Rojava assuma proeminência internacional, e ninguém quer que nada do que
está acontecendo lá tenha sucesso. Esse é o meu palpite. E ele é muito
óbvio.
Existem
muitas iniciativas para reconstruir Kobane. Os ataques aéreos e os
bombardeios deixaram a cidade quase inteiramente destruída. Qual é sua
perspectiva sobre a reconstrução e sobre as possibilidades de criar
alternativas anticapitalistas na área?
Eu vi um mapa com dados de satélite: fica claro que mais de 80% de Kobane foi destruída.
A reconstrução é essencial, vai se concentrar nos edifícios de
superfície e trazer o povo de volta. Isso oferece uma gama de
oportunidades para pensar criativamente sobre uma urbanização
alternativa.
Penso
que a maior dificuldade será enfrentar os direitos de propriedade
existentes, em um grau que a população local possa restabelecer-se. Eles
provavelmente querem construir seus direitos de propriedade na forma em
que existiam antes: vão querer ter de volta o velho estilo de
urbanização, e isso aconteça. Nesse, a questão também será de onde virão
os recursos para a reconstrução.
Ainda
assim, penso que existem oportunidades para explorar alternativas
anticapitalistas. Se essa possibilidade vai ser aproveitada, não sei.
Mas, na medida em que os pensadores curdos têm sido influenciados por
alguém como Murray Bookchin, eu penso que há a possibilidade de a população explorar algo diferente. Disseram-me que existem formas de governo em assembleias de base em
Rojava, mas eu ainda não vi nada. Eu me preocupo um pouco, você sabe,
com o romantismo da esquerda. Os zapatistas disseram “revolução” e todo
mundo romantizou com o que eles estavam fazendo.
Recentemente, comparei a
revolução em Rojava e os zapatistas. Levantei a hipótese de Rojava
estar se tornando algo como a Chiapas do Oriente Médio. Você pensa que existe similaridade entre essas duas lutas?
Nem
tanta semelhança – no sentido em que os zapatistas organizaram-se,
tomaram o controle do seu território e conseguiram protegê-lo de uma
maneira particular e em um momento
particular. Não foram devastados por uma guerra. Não tiveram tantos
problemas como o povo de Rojava está enfrentando. Mas tinham uma
estrutura comunal pré-existente, por isso havia uma forma de governo
anterior – eles não têm que implementar tudo do zero. Nesse sentido,
acho que há grandes diferenças.
Penso
que a ideia de similaridade vem da noção que algumas pessoas da
esquerda na Europa e na América do Norte ainda têm: “oh, esse é o lugar,
finalmente!”. Sempre digo a eles que o lugar que deveria ser construído
o socialismo revolucionário é nos Estados Unidos, sem esperar que algo
em Chiapas ou no norte da Síria nos livre do capitalismo [risos]. Isso não vai acontecer.
Como você acha que o movimento de solidariedade internacional pode ser produtivo em ajudar Rojava?
Há
algumas coisas básicas, eu diria. Não importa o que acontece lá, eu
acho que a emancipação do povo curdo – na medida em que existe um nível
de autogoverno – é algo que vale a pena apoiar. Eu mesmo estou muito
feliz em apoiá-la. Na medida em que essas comunidades estão
experimentando novas formas de governança e querem experimentar novas
formas de desenvolvimento urbano, penso que vai ser muito interessante
falar com eles. Estou contente por perceber que as pessoas pensam fazer
algo diferente. Na medida em que eu possa ajudar ou ajudar a mobilizar
ajuda, eu gostaria ser capaz fazê-lo.
É
claro que haverá barreiras para isso. Teremos que encontrar maneiras de
contornar essas barreiras. Por exemplo, há um grupo alternativo de
pessoas da Europa e América do Norte que está tentando agora redesenhar a
urbanização em Gaza. Eu acho que, se eles forem realmente capazes de
fazer alguma coisa lá, poderiam se mobilizar para fazer algo em Rojava
também.
Existem
possibilidades reais. Mas falando pessoalmente, gostaria de ser
cauteloso em dizer, “oh, isso é uma grande coisa que aconteceu, tudo é
ótimo”. Ao invés disso, gostaria de dizer: “olha, acho que as coisas
estão avançando numa direção interessante, digna de nosso apoio e
discussões; devemos fazer o nosso melhor para tentar apoiar o que a
própria população está construindo”.
Você
mencionou em uma entrevista à agência de notícias Firat, durante uma
conferência em Hamburgo, que o Oriente Médio é uma região caindo aos
pedaços. No entanto Rojava está florescendo como uma alternativa neste
ambiente caótico, você não acha?
Bem,
o que está acontecendo nesta região é uma parte crucial do mundo
geopolítico. O Oriente Médio está uma verdadeira bagunça. Todo
coloca seu dedo: os russos, os chineses, os americanos, os europeus. É
uma zona de conflitos, há bastante tempo. Olhe para o que está
acontecendo na Síria, a guerra civil libanesa, a situação no Iraque, e
agora o que está acontecendo no Iêmen, no Egito, e assim por diante. É
um zona geológica muito instável, em meio a uma configuração geopolítica
do mundo também muito instável, que está produzindo desastres para as
populações locais.
Mas
algo que muitas vezes acontece nas catástrofes é que as coisas novas
surgem a partir delas. Podem ser muito significativas. A razão pela qual
o desastre produz algo novo é que a estrutura de poder burguês típico
desaparece, e as classes dominantes são incapazes de governar. Isso cria
uma situação onde as pessoas podem começar a governar-se fora dessas
estruturas tradicionais de poder. As possibilidades surgem não só em Rojava, mas também em outros lugares. Algumas das novidades, é claro, não serão muito agradáveis – como o
ISIS. Ou seja: não estou dizendo que tudo está caminhando na direção
certa. É uma zona de oportunidades, bem como de catástrofes.
Gostaria de falar sobre cidades. Na última década, elas têm importância crescente na política curda.
Em Diyarbakir, onde estamos agora, a prefeitura pró-curda está
intervindo na vida socioeconômica e política da cidade, bem como na
reapropriação de espaços urbanos. Além disso, pela primeira vez, a
resistência de
Kobane é a resistência de uma cidade – ao contrário de revoltas
anteriores na história do movimento curdo, que eram tradicionalmente
relacionadas a uma tribo, um líder tradicional, ou um partido político
nacionalista que liderava resistência. Quero saber se podemos ligar a
resistência em Kobane, ou o exemplo do movimento municipalista em
Diyarbakir e outras cidades curdas na Turquia, com o movimento global
mais amplo surgido nos últimos anos em lugares como a Praça Tahrir, no
Cairo, o movimento Occupy que começou em Nova York, os protestos Gezi em
Istambul, ou, mais recentemente, os motins em Baltimore. Você vê uma
conexão entre essas formas emergentes de política urbanas de rua?
Sim,
o mundo está cada vez mais urbanizado e vemos cada vez mais o
descontentamento emergente com a qualidade da vida urbana. Esse
descontentamento produz revoltas ou protestos de massa, em alguns casos,
como Gezi e o que aconteceu no Brasil em 2013. Existe uma longa
tradição de revoltas urbanas — a Comuna de Paris em 1871 e outras
eclosões muito anteriores — mas penso que a questão urbana está
realmente tornando-se central hoje, e a qualidade de vida urbana tomando
a dianteira do que são os protestos contemporâneos.
Mas,
ao mesmo tempo, cada vez mais, vemos protesto político internalizado
dentro das cidades. O que estamos começando a ver, com as Forças de
Defesa de Israel confrontando
palestinos em Ramallah e outras cidades, é que não se trata mais de
disputas estado-versus-estado — mas de tentativas do estado para
controlar o restante da população urbana. Isso ocorre até mesmo nos EUA,
em um lugar como Ferguson, onde uma força armada saiu para enfrentar o
protesto. E em Baltimore, também. Cada vez mais, eu penso, vamos ver
esse tipo de conflito urbano de base surgindo das populações, e veremos
cada vez mais os aparatos do Estado afastarem-se das pessoas que
deveriam servir, tornando-se parte de os aparatos administrativos do
capital que estão reprimindo as populações urbanas.
Em suma,
esses tipos de revoltas urbanas emergem de forma desigual em todo o
mundo: em Buenos Aires, na Bolívia, no Brasil, etc: a América Latina
está cheia desse tipo de material. Mas mesmo na Europa tem havido
grande agitação urbana: em Londres, Estocolmo, Paris, e assim por
diante. O que temos a fazer é começar a pensar em uma nova forma de
fazer política, que fundamentalmente é o que o anti-capitalismo deve
ser. Infelizmente, a esquerda tradicional ainda se concentra
estritamente nos trabalhadores e no local de trabalho, ao passo que
agora é a política da vida cotidiana que realmente importa.
A esquerda é, por vezes, muito conservadora em termos do que pensa ser importante. Marx e Engels tinham uma visão de certo tipo de
proletariado. Bem, esse proletariado desapareceu em muitas partes do
mundo, mesmo que tenha ressurgido em outros, como China e México, sob
distintas condições. Por isso, a esquerda tem que ser muito mais
flexível na sua abordagem aos movimentos anti-capitalistas emergentes e
em torno da questão da vida urbana que eclode nas revoltas em Baltimore,
Praça Tahrir e assim por diante. O que não quer dizer que elas são
todos iguais — porque não são — mas há claramente certo paralelo entre
esses movimentos.
O
que você acha dos possíveis desdobramentos das revoltas ocorridas em
lugares como Baltimore, para o movimento global contra o capitalismo?
São apenas protestos momentâneos, em condições espaço-temporais
específicas, ou podem ser vistos como indicadores de algo fundamentalmente errado com o sistema?
Uma
das maiores dificuldades, politicamente falando, é levar as pessoas a
ver a natureza do sistema em que vivem. O sistema é muito sofisticado em
disfarçar o que faz. Uma das tarefas dos marxistas e teóricos críticos é
tentar desmistificar, mas você pode ver isso acontecendo de forma
intuitiva, às vezes. Tome, por exemplo, o movimento dos Indignados:
algo acontece na Espanha e, em seguida, de repente acontece na Grécia e
em outros lugares. Pense no movimento Occupy: de repente, há ocupações
acontecendo em todo o lugar. Portanto, não há conectividade aqui.
Um evento específico, como a revolta de Baltimore não significa nada em si mesmo. O que ele faz, quando você o relaciona a Ferguson ou a alguns dos novos fenômenos políticos que estão surgindo, é mostrar que grandes populações têm sido tratadas
como seres humanos descartáveis. Isso acontece nos Estados Unidos e em
outros lugares. De repente as pessoas começam a ver que se trata de um
problema sistêmico. Uma das coisas que deveríamos estar fazendo é
enfatizar a natureza sistêmica deste tipo de evento, mostrando que o
problema está no sistema.
Eu
vivi em Baltimore por muitos anos – e o que está acontecendo lá agora é
realmente uma repetição do que encontrei em 1969, um ano após uma série
de lugares ser incendiada. Ou seja, passaram-se décadas e as coisas
ainda são as mesmas! Você poderia se perguntar, “mas o que mantém tudo da mesma maneira?”
Apesar de todas as promessas daqueles que alegaram estarem resolvendo a
situação na década de 1970, ou daqueles que afirmam ter a saída para
hoje, isso não acontece — e simplesmente não vai acontecer. Na verdade,
um monte de outras coisas está piorando.
Baltimore
é interessante não só por causa do que aconteceu nas áreas pobres. O
resto da cidade realmente tornou-se extremamente rico e valorizado — por
isso, surgiram na prática duas cidades. Sempre houve duas cidades, mas
agora existem duas cidades com um abismo muito maior entre elas, e todo
mundo vê a diferença. Li uma entrevista com alguém na Praça Tahrir, e
uma das coisas de que se falava é que sempre viveram em condições não
muito abastadas, mas algumas pessoas estavam ficando podres de ricas. Os
entrevistados não podiam entender por que as pessoas estavam ficando
podres de ricas, enquanto o resto estava empobrecendo ou apenas
permanecendo igual. E foi a partir da raiva provocada por essa
disparidade que se voltaram contra o sistema. Isto é verdade em
Baltimore, algo do tipo: “sua parte da cidade é boa, e minha parte da
cidade está em despencando”.
Isso acontece com a
maioria das cidades. Você olha ao redor e vê isso em Istambul, em todos
os lugares. O que o governo está fazendo a respeito? Bem, está
varrendo as pessoas das chamadas áreas de favelas, porque elas estão
assentadas em terras de alto valor, e tais terrenos poderiam ser dados
para desenvolvedores que poderiam, então, construir centros comerciais e
espaços de escritório. É diante disso que as pessoas dizem “não está
certo!” É assim que chegamos ao ponto que leva as pessoas a começarem a
exercer o seu direito à cidade, que é o de usar a cidade para seus
próprios propósitos.
Queremos exercer nosso direito à cidade de nossa
maneira particular, que é radicalmente diferente daquela do capital.
Queremos fazer um tipo diferente de cidade. Como faremos isso? Nós
podemos fazê-lo? Estas são perguntas difíceis. Quando as pessoas
levantam essa demanda, outra questão surge: você pode fazer isso dentro
da estrutura existente dos direitos de propriedade? Existe, nos Estados
Unidos, a crença de que a propriedade privada e a propriedade da terra
não são um problema. Parte da solução, eu suponho, surgirá quando
as pessoas começarem a perceber que essa concepção é parte do problema.
Isso as levará a ver que é preciso chegar a uma estrutura alternativa de
direitos de propriedade, que não são particulares. São coletivos,
comuns.
Termino perguntando o que inspirou sua vinda ao Curdistão. Algo pode trazê-lo de volta aqui?
Como eu disse, toda esta região é bastante crítica. Tive, não muito tempo atrás,
fantasias de que iria me mudar para outro lugar. Pensei que eu pudesse
me fixar em Atenas e, então, trabalhar parte do tempo na Turquia, um
pouco no Líbano, um pouco no Egito, a zona entre a Europa e essa região.
O que está acontecendo aqui parece ser fascinante, eu gostaria de estar
presente. Também tenho bons amigos aqui, e uma editora maravilhosa, a Sel Publishing.
Devo dizer que eles têm feito um trabalho maravilhoso de traduzir e de
me convidar para vir aqui e dar uma olhada nas coisas. Se eu conseguir
entrar em Kobane, é porque eles têm trabalhado muito duro para isso.
Espero
em breve ver seus livros traduzidos em língua curda – e tenho certeza
de que o povo de Diyarbakir ficará feliz em recebê-lo, se você quiser se
mudar para essa região. Muito obrigado pelo seu tempo, professor
Harvey. Eu espero que você entre em Kobane breve.
–
Sardar Saadi é ativista que mora em Toronto e estudante de doutorado em antropologia na Universidade de Toronto.
David Harvey
David Harvey é professor inglês de geografia
e antropologia na Universidade da Cidade de Nova York (CUNY). Um dos
estudiosos mais importantes da área de ciências humanas, autor de
diversos livros sobre o desenvolvimento da geografia moderna, retoma o
marxismo e o conceito de classes sociais como crítica ao capitalismo
global. Foi um dos principais formadores do conceito de direito à
cidade. Veja seus livros em nossa livraria.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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