PICICA: "De
todos os problemas que percorrem o diagnóstico dessa crise política
talvez o mais grave seja que boa parte dos seus
analistas — especialmente aqueles atrelados ao governismo wishful thinking —
não consegue a visualizar senão sob o manto do golpismo ou de algum
tipo de arranjo conspiratório contra algo que era positivo. Ou seja, o
grande problema dessas análises é que não se deram conta que boa parte
da crise política está ligada ao fracasso das suas próprias ideias, e
não apenas a um contragolpe baixo do inimigo. Intelectuais como André
Singer e Bresser-Pereira, por exemplo, que foram verdadeiros
“pensadores” do governismo atual e sustentaram o bloco de iniciativas
que norteou o primeiro mandato de Dilma não conseguem entender que a
crise atual não é apenas uma contingência momentânea da conjuntura
política, mas um fracasso geral da matriz produtivista, industrialista e
tecnocrática, apelidada por essas bandas de “neodesenvolvimentismo”, em
relação ao mundo do século XXI. Eles continuam interpretando Dilma por
vezes até como “estadista” e colocam a culpa no mercado financeiro e na
mídia, sem cogitar que o erro possa estar no projeto no qual suas próprias ideias servem de base."
A sociedade contra o Estado e o Mercado
De
todos os problemas que percorrem o diagnóstico dessa crise política
talvez o mais grave seja que boa parte dos seus
analistas — especialmente aqueles atrelados ao governismo wishful thinking —
não consegue a visualizar senão sob o manto do golpismo ou de algum
tipo de arranjo conspiratório contra algo que era positivo. Ou seja, o
grande problema dessas análises é que não se deram conta que boa parte
da crise política está ligada ao fracasso das suas próprias ideias, e
não apenas a um contragolpe baixo do inimigo. Intelectuais como André
Singer e Bresser-Pereira, por exemplo, que foram verdadeiros
“pensadores” do governismo atual e sustentaram o bloco de iniciativas
que norteou o primeiro mandato de Dilma não conseguem entender que a
crise atual não é apenas uma contingência momentânea da conjuntura
política, mas um fracasso geral da matriz produtivista, industrialista e
tecnocrática, apelidada por essas bandas de “neodesenvolvimentismo”, em
relação ao mundo do século XXI. Eles continuam interpretando Dilma por
vezes até como “estadista” e colocam a culpa no mercado financeiro e na
mídia, sem cogitar que o erro possa estar no projeto no qual suas próprias ideias servem de base.
O reflexo simétrico desse campo desorientado de análises “espetacularmente erradas” é o surgimento de uma “nova direita” inspirada profundamente em valores liberais e apoiada no amplo material dos think tanks norte-americanos disponível na net. O
campo discursivo é construído de forma completamente artificial,
importando conceitos e análises de modo totalmente descontextualizado. Trabalhos como por exemplo o de Alberto Carlos Almeida ou mesmo de Roberto DaMatta, que fazem uma comparação interessante (não sem controvérsias)
entre brasileiros e norte-americanos, são totalmente ignorados em nome
de um pensamento que projeta sobre as manifestações um desejo de “menos
Estado, mais mercado”, ou a luta dos “microempresários” contra os
impostos. Que isso tenha pouca relação com a mentalidade efetiva da
sociedade brasileira é, para essa visão, apenas um detalhe, pois afinal
se sabe que o “homem comum” desse tipo de liberalismo é apenas a
projeção de um ethos específico
elevado à condição de universalidade. Quando falam em nome do “homem
comum” estão apenas reproduzindo o discurso de uma fatia minúscula da
sociedade que incorporou esses valores e mimetiza — de maneira que não
posso evitar chamar de colonizada — as ideias norte-americanas. A
obsessão contra o pensamento de Marx e Paulo Freire é pautada na
ignorância: não se deve ensinar isso!, como se a educação fosse
doutrinação e debater um autor significasse, simultaneamente, defender
suas ideias. Com isso, só conseguem confessar involuntariamente seus
próprios métodos e a forma como encaram a relação com a teoria e a
manipulação. No seu nível máximo que felizmente não é tão popular, esse
obscurantismo chega ao ponto de importar a polêmica oca entre
evolucionismo e design inteligente,
fazendo eco aos fundamentalistas cristãos que disseminam apenas pela
mídia a falsa polêmica [um texto sobre o assunto, p.ex., não passa por
comitês científicos de periódicos]. A UTI desse pensamento é o ceticismo
contra as mudanças climáticas, hoje representado por uma fração
minúscula diante de um consenso avassalador no campo científico.
Curiosamente,
o ponto de encontro entre esses dois pensamentos é a total
desconsideração da questão ecológica e do mundo sob o signo do
Antropoceno. Tanto os neodesenvolvimentistas quanto os liberais mantêm a
visão de que a ecologia é uma “externalidade” em relação à economia,
convergindo para um aceleracionismo que supõe possíveis mudanças
tecnológicas capazes de sustentar o crescimento ao infinito sem destruir
a Terra. E aqui, obviamente, está o outro ponto de encontro: ambos
discursos são francamente etnocêntricos e projetam um modelo
unidimensional de desenvolvimento, disputando apenas se o instrumento
principal será o Estado ou o mercado. A pobreza antropológica é
consubstancial a um pensamento incapaz de compreender a multiplicidade
ontológica que produz uma variação de mundos para além do projeto
ocidental, simplesmente não prevendo espaço para outras formas de vida
que não aquela do consumismo. No limite e observado o caso brasileiro,
os dois pensamentos convergem para a ameaça ecológica sobre a Terra e o
etnocídio das culturas indígenas.
Essa
coincidência — que converte no desprezo pela antropologia e na pobreza
da subjetivação baseada no consumo — pode ser explicação para a crise
política na sociedade brasileira. O estado precário do imaginário
político intelectual se reflete na crise das instituições e dos
projetos.
Em
2013, a falta de uma resposta mais convincente iniciou o ocaso do
lulismo. Mas esse problema é mais profundo que parece. Na verdade, o
lulismo não consistiu apenas numa política bem-sucedida de conciliação
de classes do “pacto conservador” de enriquecer ricos e pobres
contemplando as demandas do sistema financeiro, estímulo ao agronegócio
nas exportações de commodities
compensadas com medidas distributivas de renda, como o viés economicista
tem sustentado. Ali estava um rearranjo que foi muito além do que o
imaginário petista era capaz de especular. As forças criativas da
sociedade brasileira foram liberadas e um povo a quem poucas vezes foi
dada chance de emergir apareceu. A multiplicidade que percorre formas
jurídicas, econômicas e tradições culturais estoura as previsões e
mostra o caldo reprimido — e desperdiçado — ao longo do último século
vinda de uma formação heterogênea em vozes plurais. A gestão
Gil/Ferreira no Ministério da Cultura, despertando a criatividade local a
partir dos pontos de cultura, é o exemplo mais emblemático desse
processo. Mas não só. No meio ambiente, por exemplo, o Brasil de repente
aparecia como uma alternativa socioambiental ao modelo baseado no
petróleo e poderia ocupar o espaço de experimentação de uma nova matriz
energética. A demarcação de terras indígenas ampliava o espaço ambiental
dos povos e permitia seu reflorescimento, com a religação do Brasil com
suas tradições ancestrais, refazendo o caminho recalcado pela
conquista. O “povo brasileiro” que Darcy Ribeiro tantas vezes saudou
aparecia em toda sua multiplicidade e criatividade.
Rapidamente,
no entanto, o dogmatismo corroeu esses arranjos inesperados e
substituiu por uma visão padronizada do progresso e do crescimento. Com o
sucesso do lulismo, começa o debate pela “fase 2”, que é sugado pelo
neodesenvolvimentismo fundado no economicismo uspiano. A obsessão contra
o “neoliberalismo” fez depositarem sobre o Estado um papel indutor e de
comando vertical sobre a sociedade, entregando a um complexo
burocrático-oligopolista o controle do país. O governo torna-se cada vez
mais unidimensional, transitando do modelo do fomento criativo e
despertar da autonomia, cujas matrizes eram o Bolsa-Família e os pontos
de cultura, para uma visão vertical e tecnocrática em conluio com os
“supercampeões” (empreiteiras, especialmente), traçando uma nova matriz a
partir do PAC e do Minha Casa Minha Vida. Neste último caso, o foco do
projeto não é a energia criativa que brota das comunidades,
possibilitando a autonomia e adaptação às condições locais e a invenção
de novas possibilidades urbano-ecológicas na construção de moradia, mas o
modelo ultrapassadíssimo e hoje diagnosticado universalmente como
horrendo dos arranha-céus, das autopistas, das remoções e das
gentrificações que se impõe. O “pós-neoliberalismo” defendido pelos
ideólogos do governo renova a idolatria no Estado e procura executar — a
despeito de todos os limites ambientais e da pluralidade da sociedade
brasileira — o programa de crescimento do século XX.
Tudo
isso mostra o ocaso de um certo modelo de esquerda que precisa revisar
seus dogmas no mínimo desde 1968. A crença no Estado não é melhor que a
crença no mercado. Parece que ninguém se deu o trabalho de ler Pierre
Clastres, por exemplo, para entender que é possível pensar em uma
sociedade que não seja o “mercado” composto de indivíduos utilitaristas
e, ao mesmo tempo, seja capaz de uma ação coletiva sem cair na
burocracia estatal. O que o lulismo involuntariamente despertara fora
exatamente essa sociedade selvagem, repleta de energia criativa, que
oferece novas alternativas sem precisar cair nas dualidades infernais do
século XX. Tudo isso foi subestimado pelos burocratas do PT, que só
conseguem enxergar o mundo em duas cores: ou o Estado — que remete ao
socialismo — ou o mercado — que remete ao neoliberalismo. A sociedade,
que não é Estado nem mercado liberal, no entanto, despertou e mostrou
seu rosto em 2013. Ela não é monolítica nem utilitarista, nem
conservadora nem progressista, mas múltipla e indomesticável. Aliás, a
sociedade unifica seu inimigo na medida em que sabe que ambos — Estado e
mercado — sempre andam juntos. Os liberais sabem que dependem do Estado
para assegurar o principal dos direitos no seu imaginário: a
propriedade privada. Os estatistas, igualmente, sabem que o Estado hoje é
um grande mercado comandado pelos oligopólios econômicos, como o
próprio caso brasileiro demonstra. Ambos vendem suas versões como se
fossem as únicas e inevitáveis, sem que seja possível encontrar uma
linha de fuga capaz de exceder esse jogo batido. A sociedade, no
entanto, sabe que existe essa saída. A todo momento brotam
experimentações que são criadas pelos mais variados sujeitos a
reinventar permanentemente a noção de espaço coletivo, de festa e
escola, de natureza e desenvolvimento, traçando alternativas econômicas,
políticas e ecológicas ao binômio Estado/mercado e sua lógica do
capitalismo consumista e da burocracia desligada da sociedade. Desenhar
essa alternativa passa por uma descolonização geral do pensamento,
livrar-se dos complexos de subdesenvolvimento e inferioridade. O mundo
hoje respira por aparelhos e os dilemas da Europa com Syriza e Podemos
parecem mostrar o quanto esse brete exige uma alternativa que poderia
brotar daqui mesmo, com os coletivos de ocupação, a luta contra a
obsolescência programada, a vida pautada em outros motivos que não o
dinheiro, a alimentação pautada na saúde, na variedade e na qualidade.
Ao contrário do que se pensa, nada disso é exclusividade de uma "minoria
esclarecida", mas desejo de muitos que não se veem representados pela
falta de ousadia dos projetos do Estado-mercado. Trata-se sim de uma
utopia que muitos desejariam embarcar.
Fonte: MEDIUM
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