agosto 23, 2015

Cine drive-in, onde trafega o imaginário. POR José Geraldo Couto (BLOG DO IMS)

PICICA: "Um cinema drive-in é o lugar onde se encontram dois prodígios tecnológicos poderosos, duas paixões coletivas, dois signos centrais do imaginário do século XX: o cinema e o automóvel. Fica em Brasília aquele que, segundo consta, é último local desse tipo ainda em atividade na América Latina. Ciente da preciosidade desse fato, o cineasta brasiliense Iberê Carvalho resolveu fazer do local o tema e o cenário de seu primeiro longa-metragem, intitulado justamente O último cine drive-in."


Cine drive-in, onde trafega o imaginário


POR José Geraldo Couto José Geraldo Couto: no cinema | 21.08.2015


Um cinema drive-in é o lugar onde se encontram dois prodígios tecnológicos poderosos, duas paixões coletivas, dois signos centrais do imaginário do século XX: o cinema e o automóvel. Fica em Brasília aquele que, segundo consta, é último local desse tipo ainda em atividade na América Latina. Ciente da preciosidade desse fato, o cineasta brasiliense Iberê Carvalho resolveu fazer do local o tema e o cenário de seu primeiro longa-metragem, intitulado justamente O último cine drive-in.



Um filme com esse ponto de partida poderia descambar para o mero réquiem nostálgico ou para uma afetada colcha de referências cinematográficas “espertas”. Iberê Carvalho evita esses dois extremos ao entrelaçar a história do agonizante drive-in ao melodrama cômico (ou comédia dramática) da família desagregada de seu proprietário, Almeida (Othon Bastos).

O filme começa quando o único filho de Almeida, o operário Marlombrando (Breno Nina), chega de Anápolis para visitar a mãe doente (Rita Assemany), internada num hospital brasiliense. Ao se instalar na casa do pai, que fica no próprio espaço do cinema, Marlombrando descobre que seu quarto agora é ocupado por uma moça grávida, Paulinha (Fernanda Rocha), que trabalha ali como projecionista, cozinheira e garçonete.

Relações ambíguas

Em torno do espinhoso vínculo pai-filho se estabelece então uma rede de relações delicadas e ambíguas, em que os papéis vão se definindo e modificando aos poucos. Seria Paulinha amante de Almeida? Ou uma espécie de segunda filha? Por que os pais de Marlombrando se separaram? Qual a atual relação entre eles? Graças às sutilezas do roteiro e ao esplêndido desempenho dos atores, preservam-se até o fim certas dubiedades e zonas de sombra. (Não é preciso dizer que Othon Bastos carrega em si, no corpo e na voz, boa parte do cinema brasileiro das últimas cinco décadas.)

Como pano de fundo do drama familiar, a situação precária do cinema, as relações de Almeida com um bem-sucedido dono de um moderno multiplex e com um secretário de governo supostamente comprometido com a preservação de espaços culturais. Todo um contexto social, cultural, político e tecnológico se esboça em cenas breves e eficazes.

As possibilidades poéticas e dramáticas do espaço – sobretudo da ampla área aberta do drive-in, entre o urbano e o rural, sob o belo e melancólico céu do Planalto Central – são exploradas de maneira ao mesmo tempo generosa e comedida.



Leveza e transparência

O último cine drive-in tem uma narrativa clássica e uma aparente despretensão estética que o tornam leve e, por assim dizer, “transparente”, imediatamente acessível a qualquer público. Mistura habilmente procedimentos e convenções de gêneros distintos: melodrama, comédia, suspense. Pontua tudo isso com referências discretas (mediante cenas projetadas, cartazes, diálogos) a filmes que tenham alguma relação com a história contada: o filho em busca do pai em Central do Brasil, o tiroteio num drive-in em Na mira da morte, de Peter Bogdanovich, cartazes de O poderoso chefão (o filho não se chama Marlombrando por acaso) e Cinema Paradiso.

O cotejo inevitável com o filme de Giuseppe Tornatore – que também trata da agonia do cinema como diversão popular – não enfraquece O último cine drive-in. Muito pelo contrário. Mostra que seu diretor evitou a manipulação sentimental de Cinema Paradiso, modulando suas cenas mais dramáticas com o suspense e o humor.

Se no filme de Tornatore o clímax é constituído pela carga emotiva aportada por obras alheias (a colagem das mais diversas cenas de beijos), aqui o momento crucial é a exibição de um filme precioso para determinado personagem, mas que nos é omitido. Só o que vemos é a luz saindo do projetor e inundando a tela com um branco ofuscante. Cada um que projete o filme da sua vida. 



José Geraldo Couto

José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Trabalhou durante mais de vinte anos na Folha de S. Paulo e três na revista Set. Publicou, entre outros livros, André Breton (Brasiliense), Brasil: Anos 60 (Ática) e Futebol brasileiro hoje (Publifolha). Participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80 (Brasiliense), Folha conta 100 anos de cinema (Imago) e Os filmes que sonhamos (Lume), entre outros. Escreve regularmente sobre cinema para a revista Carta Capital.

Fonte: BLOG DO IMS

Nenhum comentário: