agosto 19, 2015

Doze Teses sobre a Crise Política. Por Moysés Pinto Neto (MEDIUM)

PICICA: " São tantas as análises míopes que visam a apenas defender um partido — ou atacá-lo -, ou ainda afirmar a integridade das próprias ideias contra tudo e contra todos, apesar das nervuras da conjuntura (que, entretanto, é tão fluida que fica difícil dizer se alguém está errado ou foram os próprios fatos que mudaram). Entre essas teses, respectivamente, estão a defesa da Lava-Jato como grande conspiração tucana, o ataque ao PT como fonte absoluta da corrupção, traidor da esquerda ou raiz de todos os problemas e, por fim, a defesa de uma Constituinte quando o cenário é francamente corrosivo aos direitos instituídos pela Constituição de 1988. Apesar das tentativas de enxergar polivocidade nas manifestações do domingo passado (16) e da próxima quinta (20), em síntese elas expressam a grande luta entre petismo (mais amplo que o governismo) e antipetismo. São polaridades que, desde 2013 no mínimo e consolidadas nas eleições de 2014, achatam o cenário político e deixam boa parcela da sociedade que esteve nas ruas sem discurso, pois não se encontram em nenhum dos lados." 





1  — São tantas as análises míopes que visam a apenas defender um partido — ou atacá-lo -, ou ainda afirmar a integridade das próprias ideias contra tudo e contra todos, apesar das nervuras da conjuntura (que, entretanto, é tão fluida que fica difícil dizer se alguém está errado ou foram os próprios fatos que mudaram). Entre essas teses, respectivamente, estão a defesa da Lava-Jato como grande conspiração tucana, o ataque ao PT como fonte absoluta da corrupção, traidor da esquerda ou raiz de todos os problemas e, por fim, a defesa de uma Constituinte quando o cenário é francamente corrosivo aos direitos instituídos pela Constituição de 1988. Apesar das tentativas de enxergar polivocidade nas manifestações do domingo passado (16) e da próxima quinta (20), em síntese elas expressam a grande luta entre petismo (mais amplo que o governismo) e antipetismo. São polaridades que, desde 2013 no mínimo e consolidadas nas eleições de 2014, achatam o cenário político e deixam boa parcela da sociedade que esteve nas ruas sem discurso, pois não se encontram em nenhum dos lados.

2 — Nosso sistema blinda a figura da Presidenta da República do impeachment por falta de base política, fenômeno que atualmente ocorre no Brasil. Exige a responsabilidade criminal. O impeachment não é necessariamente um golpe, ao contrário: é o que permite a saída precoce de um mandato ilegítimo — sem dispensar um fato criminal determinado — por meio de uma solução sem ruptura institucional. Talvez hoje o recall permitisse equilibrar a balança entre a ilegitimidade política insuportável, que é extremamente daninha à democracia, e a estabilidade institucional. No entanto, esse instrumento não existe no Brasil. A menos que se demonstre culpa por meio de provas contra Dilma Rousseff, a saída via impeachment fere a legalidade brasileira. A única saída legítima seria a renúncia. Apesar disso, a utilização da ameaça como instrumento de pressão faz parte do jogo político quando a crise é grave e seu uso não é monopólio da direita.

3 — A formação atual do Congresso Nacional e a figura de Eduardo Cunha como sucessor caso Temer seja igualmente impugnado era a pior das alternativas. Isso não legitima o governo e nem permite esconder o fato de que Cunha e o baixo clero em geral foram alimentados na esfera institucional e social pelo próprio PT nos últimos 12 anos. No entanto, é o mínimo bom senso reconhecer que essa possibilidade ameaçava todo equilíbrio institucional brasileiro e colocava em risco quase tudo que foi conquistado com a redemocratização, da independência das instituições até os direitos humanos. Cunha é a ameaça mais profunda da emergência do fundamentalismo e a tomada do poder por forças que apontam para o pior, um horizonte sinistro em que as decisões são tomadas com base em interpretações obtusas de textos religiosos e não permitem espaço para a dissidência. Não existe horizonte pior no Brasil que o crescimento do fundamentalismo religioso e moral, especialmente porque seus agentes são vigaristas que utilizam de todo artifício retórico e artimanha inaceitável para impor suas ideias. É preciso isolar de vez esses políticos. Felizmente, ao que parece Eduardo Cunha caminha a cada dia que passa mais para esse destino e tudo indica que irá ser processado na Operação Lava-Jato.

4  — Hoje, mais que ninguém, o grupo político que Eduardo Cunha e Silas Malafaia representam não agride apenas a esquerda, o PT ou os grupos sociais que constantemente ataca. Não são apenas bonecos de distração do PT ou fantoches da oposição: trata-se de uma grupo que cresce mais a cada dia, tem base social, midiática e está capilarizado por todo país para além do que a própria mídia clássica consegue. Esse grupo agride a frente política que inaugurou a democracia no nosso país, pautando suas práticas políticas na razão e considerando a secularização — separação entre estado e religião — condição de qualquer política que não termine no banho de sangue do fundamentalismo. Atacar esses obscurantistas é tarefa de todo espectro político comprometido com a democracia, incluindo PT, PSDB, PDT, PPS, PSB, Rede, entre outros. O PT, obviamente, é o maior responsável pela contenção do mal que ele próprio ajudou a construir, não tanto com atos discursivos nem apoio da militância quanto com a leniência dos acordos políticos estratégicos e o financiamento eleitoral. Ele é o principal responsável porque detém o bem mais precioso na nossa República: a chave do cofre. Mas todos os partidos que se envolveram e comprometeram com a “Constituição cidadã” deveriam estar engajados e contingentemente em aliança para enfrentar a frente fundamentalista e mafiosa que se forma no Congresso Nacional. O PSDB implementou mudanças importantes na direção dos direitos humanos quando esteve na Presidência, tem democratas dissidentes da Ditadura, intelectuais públicos de muita relevância e contribuiu para a qualificação da democracia no nosso país. A Rede precisa provar que não é um projeto pessoal e personalista de Marina Silva e enfrentar — se necessário — sua própria líder, mostrando ao grande público que a resistência na incorporação da laicidade não corresponde ao pensamento da maioria dos seus adeptos. PSB, PPS e PDT têm figuras de importância nacional que contribuíram para a afirmação do estado de direito e dos direitos humanos nas últimas décadas. O próprio PMDB, que hoje hospeda muitas figuras obscurantistas, comandou a Constituinte e tem personagens importantes da Nova República nos seus quadros. Não existe aliança que seja minimamente suportável com esses setores: eles precisam ser tratados como minorias políticas ao quebrar a tradição secular e até sincretista (apesar dos pesares) que perdurou até hoje no Brasil. A intolerância religiosa não faz parte da nossa cultura.

5 — A eleição do congresso mais conservador dos últimos tempos é o backlash de Junho de 2013. Como esses jovens que representam a parte mais “progressista” não se sentiram mais representados, prevaleceram os votos conservadores, já que o próprio voto é algo que estava em questão entre os movimentos. A desmotivação para a saída institucional-reformista e o descrédito dos atores políticos acabou fazendo com que o espaço ficasse à mercê dos piores. No Rio de Janeiro, “ninguém” venceu o segundo turno, dada a insatisfação com o sistema político. Isso não é responsabilidade dos que votaram nulo ou não votaram, mas da sociedade como um todo que não ofereceu mais alternativas viáveis tanto na escolha do candidato quanto em relação à credibilidade das instituições. O ciclo aberto pelas manifestações, primeiro a pôr em questão o pacto político da Nova República, manifesta o fim desse período adquirindo a forma monstruosa e decadente que costumam ter esses momentos, da oposição raivosa e redes de ódio ao governismo zumbi que reproduz os próprios mecanismos que critica. Toda abertura carrega esse risco, inclusive pela ocupação do espaço vazio de imponderabilidade aberto por forças reativas e fundadas no medo do novo e da diferença.

6  — Ficou uma lacuna política de alta relevância nesse espaço não-ocupado. O PT não soube enxergar o potencial de 2013, perdeu a chance de fazer política mais arrojada devido à miopia dos seus dirigentes e acabou se agarrando aos velhos oligarcas e ao baixo clero da política, que por sua vez ressuscitaram com o descrédito geral do sistema. 2013 foi um daqueles momentos perdidos que não se recupera mais. Vamos precisar aguardar um novo ciclo para poder chegar novamente àquele instante. Nas disputas entre as ruas e o pemedebismo, o PT acabou se convertendo definitivamente em um planeta mais do mesmo sistema. Mil e uma razões levaram o Governo a não tomar a sério os ativistas de 2013, mas entre a militância governista, base social e discursiva que a cada dia mais mingua, o principal motivo do afastamento das ruas foi o ressentimento em relação ao mensalão. O PT não aceitou não ter gozado da mesma imunidade dos demais. Com isso, criou-se uma perseguição paranoica e confusa em relação a Joaquim Barbosa — primeiro juiz negro na Suprema Corte que, meses antes, havia apontado o dedo para Gilmar Mendes e dito que “ele não estava falando com seus capangas”  — e, mais tarde, se projetou sobre as próprias ruas, especialmente em relação aos protestos contra a corrupção na segunda fase. A dificuldade de entender a posição político-criminal de juízes como Barbosa e Moro é sintoma da pobreza fanática das teorias da conspiração.

7  — Ao mesmo tempo, essa confusão propagada pelo governismo — banhada de cinismo (todos roubam, mas só nós fomos punidos) — retirou o alicerce moral que sustentava a esquerda. É preciso reconhecer que, a partir do Mensalão e agora com maior destaque para o Petrolão, a esquerda ficou desmoralizada e, apesar dos vícios que se repetem enfadonhamente como se nada tivesse acontecido nesses doze anos, hoje boa parte dessa perplexidade se expressa naqueles que trabalham o luto pelo fim de um projeto (numa escala de variação enorme). O petismo significa mais que a adesão a um partido: era o projeto de outro país, com outros valores que se opusessem ao patrimonialismo, ao domínio das velhas oligarquias, à desigualdade social e predação ambiental, à violação dos direitos humanos, democracia de baixa intensidade e cinismo na política. Por isso, a esquerda se acostumou a reivindicar superioridade moral sobre os adversários, autoatribuindo-se uma condição de “esclarecida” em detrimento do obscurantismo conservador. Hoje o bastão passou para a direita, mesmo que também em alguma escala isso signifique hipocrisia. O Petrolão desmoralizou as teorias da conspiração. Não dá para mais fazer “vaquinha para o Dirceu”, a menos que se queira posar de otário mesmo. A derrota ética é muito grave, confundiu os principais valores em jogo e foi amplamente subestimada durante esse período. Falar, hoje, que alguém não é petista por déficit educacional ou falta de informação pelo bloqueio midiático é, convenhamos, cômico.

8  — O vazio de lideranças não foi ocupado nem pelo PT, nem pelo PSOL (que escolheu Luciana Genro, com forte teto de apoio, para representar o partido em 2014), nem por Marina Silva. O PSOL preferiu manter a identidade esquerdista e a atitude ambígua em relação ao PT, de um lado radicalizando com um discurso que só é permeável à juventude universitária de classe média, alguns movimentos sociais e a algumas corporações que embarcaram no partido oriundas do PT a partir da Reforma da Previdência; de outro lado, preferindo ocupar o papel de superego do petismo que se mantém principista e eventualmente sustenta o apoio crítico, deixando ao PT o “trabalho sujo” da Realpolitik. Marina Silva cometeu diversos equívocos que, como sustentei em vários textos, acabaram provocando a erosão de parte do capital político acumulado, ainda que a cena atual — dado o horror da conjuntura — possam acabar virando novamente a balança na sua direção. Os movimentos, por sua vez, encontram-se enredados nos próprios sectarismos e autofagia, às vezes mais “apaixonados pelas próprias ideias” que efetivamente comprometidos em disseminar afetos e ideias.

9  — Os efeitos de Junho se fazem sentir pela crise política que, para além do estelionato eleitoral (fato gravíssimo), tem como camada mais profunda entre seus estratos uma transição geracional que não tolera mais o patrimonialismo como principal modo de fazer política no Brasil. Isso supera a fratura direita e esquerda e permite ressignificar a ideia de corrupção entre os protestos, tomando-os como estruturais, não apenas antipetistas (ainda que essa tenha sido a tendência no domingo passado, justamente mostrando que a insatisfação dos manifestantes — apesar de dialogar com a indignação justa do resto da sociedade — não é capaz de a expressar por inteiro, já que permanece direcionada a único alvo). Evidente que há seletividade, mas a própria pressão sobre Cunha (que, salvo uma manifestações aqui e acolá, não esteve presente como emblema dos manifestantes) indica que há uma fratura cada vez mais entre sociedade e Estado e que vai gradualmente atingido a todo sistema político estruturado na cultura pemedebista. A transição geracional na âmbito de outras instituições — como o Poder Judiciário, a Defensoria Pública e o Ministério Público -, recentemente lembrada em importantes textos de Joaquim Falcão e Marcos Nobre, é um componente a mostrar que 2013 continua cozinhando em fogo baixo. Talvez do ponto de vista institucional e olhando para o poder central o que falte nesse momento não seja uma esquerda radical, mas uma saída de centro que permita aproveitar as oportunidades abertas por Junho que ainda estão ecoando, apesar das inúmeras tentativas de enterrar 2013 — sobretudo nas eleições passadas.

10  — A saída da crise não parece ser a mesma para o sistema político e para a esquerda. Para o sistema político, existe a alternativa de se afundar definitivamente no lodaçal e construir uma governabilidade mafiosa tendo Eduardo Cunha como líder com a expectativa de “corrigir” o rumo nas próximas eleições a partir da vitória de um dos candidatos do PSDB (Aécio ou Alckmin) ou até José Serra no PMDB. O risco que já está sendo calculado é que esse processo se torne incontrolável e nos afundemos no obscurantismo absoluto. Essa via caminha lado-a-lado com a estratégia zumbi que, por incrível que pareça, ainda é a tendência do Planalto. A adoção da “Agência Brasil” chancelada em acordo com Renan Calheiros, hoje o fiador da “esquerda”, indica que tudo aquilo que era ruim no primeiro mandato será aprofundado. É comum dizer que a “Agenda Brasil” é uma concessão, mas isso não é verdade: sempre esteve na pauta neodesenvolvimentista de Dilma Rousseff o tipo de medidas que está ali e exatamente por isso — e não por qualquer “purismo” — formou-se uma cisão não-suturável na esquerda em torno do projeto. Ou seja, no mérito o Governo Dilma nem sequer tem motivos para divergir da Agenda Brasil, mas do ponto de vista político isso significa que continuará se guiando pelas pautas oligárquicas (das novas e velhas oligarquias), pelo projeto neodesenvolvimentista, repetindo a estratégia zumbi como forma de se manter no Planalto. Pois, afinal de contas, o que interessa é se manter no poder.

Do ponto de vista do sistema político, abre-se espaço para a formação de novos partidos como a Rede, #partidA e Raiz Movimento Cidadanista em resposta à fisiologia dominante e o completo descrédito das velhas organizações. Particularmente a Rede, por estar organizada há mais tempo, carrega potencial de ingressar com força na cena política, absorvendo descontentes do PT. Ao mesmo tempo, forma-se uma nova direita mais orgânica e ideologizada, apoiada sobre ícones da Internet e com posições menos ambíguas que o PSDB em relação ao liberalismo econômico. O campo de disputa dessa nova direita — como mostram as disputas entre MBL e Revoltados Online — é se vai aderir a um liberalismo full ou um liberal-fascismo, no qual se combina o mercado livre e desprezo pelos direitos humanos. Essa nova direita surfa na crise dos governos "progressistas" da América do Sul, na incapacidade de uma resposta satisfatória ao dilema de "como sair do neoliberalismo" e na crise moral do PT no Brasil.

11 — A ameaça fundamentalista, no entanto, segue existindo. As vozes descontentes das ruas ainda podem estar buscando um “salvador” e isso não se confunde necessariamente com os tucanos. É preciso que os partidos e respectivos programas partam para ofensiva: retirar as alianças e financiamentos para fundamentalistas, recusar os pactos com o diabo, enfrentar a pressão política e afirmar a laicidade (neutralidade religiosa) do Estado contra a pretensão de estabelecer um modelo de “família” ou que quer que seja com base em preceitos religiosos. Temos uma multiplicidade e diversidade imensa de formas de lidar com o espiritual no Brasil. É preciso ter confiança nesse enfrentamento, porque, como já disse, a maior parte — a maioria absoluta — da população não compartilha essa visão de mundo. É preciso que os governistas parem de polarizar com esses parlamentares trazendo o partido, já que isso solidariza a oposição com os fundamentalistas. É preciso que nossos liberais — de direita, centro e de esquerda — saibam defender o estado de direito contra as forças obscurantistas. E é preciso que o “fogo amigo” saiba reconhecer que a prioridade agora é atacar as forças inimigas, não os aliados que resvalam na linguagem ou não são tão radicais e vanguardistas quanto se esperaria. Menos farisaísmo vai bem para todos nós.

12  — Para a esquerda, a saída pode ser abandonar o governismo e a posição ambivalente em relação ao PT e finalmente considerá-lo, como muitos já o fazem, como uma força política “normalizada” que compõe a constelação pemedebista e por isso faz parte do problema. Evidentemente, não é um gesto simples, já que significa abrir mão de uma rede de longo alcance gestada ao longo das últimas décadas e imediatamente insubstituível por outra. Que, apesar de tudo, passou. O luto é difícil e mais difícil ainda é buscar a reconstrução. Mas não há mais espaço político no governo. A alternativa espanhola no “municipalismo” pode ser a via de crescimento de uma alternativa forjada de modo descentralizado e autônomo, recebendo a herança “participativa” do que foi o petismo em cidades como Porto Alegre, por exemplo, até que a visão de José Dirceu esmagasse todas as demais do partido e tornasse o poder central determinante em todas as decisões políticas. As ocupações espalhadas pelo Brasil inteiro já são um laboratório dessa experiência em andamento. O desafio é construir narrativas que não fiquem atreladas exclusivamente ao imaginário de esquerda e possam contagiar grupos para além daqueles diretamente engajados, alastrando-se de forma viral sobre a sociedade a partir do mal-estar com o sistema político como um todo e dos projetos de desenvolvimento que atualmente estão sendo oferecidos, em especial tomando-se a catástrofe climática que se avizinha como a ameaça de uma “barbárie por vir”.

Fonte: Medium

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