PICICA: "Ativistas
e movimentos feministas poderiam começar por se sensibilizar com a
opressão, a violência, os danos e as dores a que tantas mulheres são
submetidas pela atuação do sistema penal. O galopante e ininterrupto
crescimento do número de presos no Brasil nos últimos anos também atinge
as mulheres. A população carcerária feminina no Brasil mais do que
triplicou em pouco mais de doze anos. Do total de presos brasileiros em
junho de 2013, as mulheres eram 36135. Em dezembro de 2000, eram 10112
[6]. Mas, não são apenas as mulheres presas, metade delas acusadas ou
condenadas em razão da ilegítima criminalização do dito ‘tráfico’ das
arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas, que sofrem a
opressão, a violência, os danos e as dores provocados pelo sistema
penal. São também, as mães, companheiras e filhas dos mais de 500 mil
homens brasileiros presos, privadas de sua normal convivência familiar,
sacrificadas nos difíceis deslocamentos e nas longas esperas pela
oportunidade de breves visitas, violentadas nas ainda subsistentes
revistas vexatórias no limiar das grades das prisões.
Libertando-se
de seus paradoxais desejos punitivos e dirigindo seus olhares para o
interior dos muros e grades das prisões, ativistas e movimentos
feministas talvez finalmente consigam compreender que o enfrentamento da
violência de gênero e a redução desta e de quaisquer outras formas de
violência; a superação da desigualdade entre os gêneros e de relações
hierarquizadas e discriminatórias, assim como a superação de outras
desigualdades e de quaisquer formas de discriminação, jamais poderão se
dar através da sempre enganosa, danosa e dolorosa intervenção do sistema
penal."
Os paradoxais desejos punitivos de ativistas e movimentos feministas
Por Maria Lúcia Karam.*
A
partir das últimas décadas do século XX, com o ressurgimento dos
movimentos feministas, foram notáveis os avanços, especialmente no mundo
ocidental, no sentido da afirmação e garantia dos direitos das
mulheres, da superação das relações de subordinação fundadas na
ideologia patriarcal e da construção de nova forma de convivência entre
os gêneros. Mas as transformações ocorridas desde então não lograram
alcançar a plena superação da ideologia patriarcal, não se podendo
esquecer que, em muitas partes do mundo, especialmente em alguns países
da Ásia e da África, a discriminação contra as mulheres e sua posição de
subordinação ainda se fazem intensamente presentes.
Mesmo
onde registrados os significativos avanços no campo das relações entre
os gêneros, ainda subsistem resquícios da ideologia patriarcal. A
distinção entre tarefas masculinas e femininas não chegou a ser
totalmente eliminada. Ainda há quem suponha que o trabalho profissional
das mulheres seria secundário, funcionando apenas como uma
complementação do orçamento familiar, de que sua relação com o trabalho
seria diferente, de que seriam menos ambiciosas, que colocariam a
maternidade como primeira opção. Isto conduz à ainda existente
desigualdade de salários e de oportunidades de ascensão a postos mais
qualificados.
A
desigualdade persiste também no campo da participação política. Os
postos políticos de poder e decisão permanecem sendo espaços
predominantemente masculinos, ainda hoje acessíveis a mulheres apenas
enquanto exceções.
Os
resquícios da ideologia patriarcal, da histórica desigualdade, da
discriminatória posição de subordinação da mulher, naturalmente, se
refletem nas relações individualizadas. Mesmo onde registrados os
significativos avanços no campo das relações entre os gêneros, é ainda
alto o número de agressões de homens contra mulheres no âmbito
doméstico, a caracterizar a chamada ‘violência de gênero’, isto é, a
violência motivada não apenas por questões estritamente pessoais, mas
expressando a hierarquização estruturada em posições de dominação do
homem e subordinação da mulher, por isso se constituindo em
manifestações de discriminação.
A
brasileira Lei 11340/2006, conhecida como ‘Lei Maria da Penha’,
pretendeu criar mecanismos para coibir essa violência doméstica e
familiar contra mulheres, a fim de garantir seus específicos direitos
fundamentais, assegurados em diplomas internacionais e na Constituição
Federal brasileira. No entanto, a orientação central de tal lei, com
decisivo apoio e, mais do que isso, pressão de ativistas e movimentos
feministas, inclinou-se para uma opção criminalizadora, privilegiando a
sempre enganosa, danosa e dolorosa intervenção do sistema penal como
suposto instrumento de realização daqueles direitos fundamentais, como
suposto instrumento de proteção das mulheres contra a discriminação e a
opressão resultantes de relações de dominação expressadas na
desigualdade de gêneros.
A brasileira lei 11340/2006, assim como sua inspiradora espanhola Ley Orgánica 1/2004 e
leis de outros países igualmente centradas na opção criminalizadora,
constitui mais um lamentável exemplo da cega adesão de movimentos
feministas ao sistema penal; mais um exemplo de seu paradoxal entusiasmo
pela punição.
Não
obstante a ausência de qualquer impacto da Lei 11340/2006 na prevenção
de mortes de mulheres resultantes de agressões – os índices de
homicídios contra mulheres permaneceram praticamente os mesmos nos
períodos 2001/2006 e 2007/2011 (5,28 e 5,22 por 100 mil mulheres
respectivamente) [1] – grande parte de ativistas e movimentos feministas
insistem na mesma suposta ‘solução penal’, agora aplaudindo a Lei
13104/2015, que inutilmente acresce às circunstâncias qualificadoras do
homicídio o dito ‘feminicídio’.
A
adesão ao sistema penal e o entusiasmo pela punição vêm de longe. Já há
algum tempo, uma significativa porção de ativistas e movimentos
feministas, bem como outros ativistas e movimentos de direitos humanos,
têm se feito corresponsáveis pela desmedida expansão do poder punitivo,
globalmente registrada a partir das últimas décadas do século XX.
Movidos pelo desejo de punir seus apontados ‘inimigos’, têm contribuído
decisivamente para o maior rigor penal que se faz acompanhar exatamente
pela crescente supressão de direitos humanos fundamentais; pela
sistemática violação a princípios garantidores inscritos nas normas
assentadas nas declarações internacionais de direitos e constituições
democráticas; pela intensificação da violência, dos danos e das dores
inerentes ao exercício do poder punitivo.
O
desejo punitivo acaba por cegar seus adeptos e adeptas. Ativistas e
movimentos feministas que aplaudem e reivindicam o rigor penal contra os
que apontam como responsáveis por violências contra mulheres, acabam
por paradoxalmente reafirmar a ideologia patriarcal.
Claro
exemplo desse paradoxal comportamento se verificou em julgamento levado
a efeito no Supremo Tribunal Federal [2] sobre a regra contida no
artigo 16 da Lei 11340/2006, concernente à iniciativa da ação penal em
hipóteses de acusação de prática de crime de lesões corporais leves
praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher.
A
regra discutida já trazia uma discriminatória superproteção à mulher,
ao estabelecer que a renúncia à representação somente poderia se dar
perante o juiz, em audiência especialmente designada para tal fim e
ouvido o Ministério Público, exigência inexistente em quaisquer outras
hipóteses em que a iniciativa do Ministério Público depende de
representação do apontado ofendido, sempre livre para renunciar ou
desistir da representação e assim desautorizar a instauração do processo
contra o apontado agressor. Mas, no comentado julgamento, o Supremo
Tribunal Federal, paradoxalmente aplaudido por grande parte de ativistas
e movimentos feministas, foi além: negou eficácia àquela regra da Lei
11340/2006, para, indevidamente se substituindo ao Poder Legislativo,
pura e simplesmente afastar a exigência da representação e assim tornar
incondicionada a iniciativa do Ministério Público no exercício da ação
penal.
Emoldurada
por discursos pretensamente voltados para a proclamação da dignidade da
mulher, tal decisão do Supremo Tribunal Federal constituiu, na
realidade, uma clara reafirmação da supostamente combatida ideologia
patriarcal e um exemplo cabal de discriminação contra a mulher. No afã
de propiciar, a qualquer custo, condenações de apontados agressores, o
pronunciamento do Supremo Tribunal Federal retirou qualquer
possibilidade de protagonismo da mulher no processo, reservando-lhe uma
posição passiva e vitimizante; inferiorizando-a; considerando-a incapaz
de tomar decisões por si própria; colocando-a em situação de
desigualdade com todos os demais ofendidos a quem é garantido o poder de
vontade em relação à instauração do processo penal.
O
pronunciamento do Supremo Tribunal Federal negou à mulher a liberdade
de escolha, tratando-a como se coisa fosse, submetida à vontade de
agentes do Estado que, tutelando-a, pretendem ditar o que
autoritariamente pensam seria o melhor para ela. Difícil encontrar
manifestação mais contundente de machismo.
Em
sua cega e paradoxal adesão ao sistema penal, ativistas e movimentos
feministas, como outros ativistas e movimentos de direitos humanos,
encobrem seus desejos punitivos com uma distorcida leitura das normas
garantidoras dos direitos humanos fundamentais, delas pretendendo
extrair supostas obrigações criminalizadoras.
Leis
e práticas penais necessariamente constituem um obstáculo à plena
realização dos direitos humanos fundamentais. As normas garantidoras dos
direitos humanos fundamentais foram concebidas como uma defesa do
indivíduo diante dos poderes estatais, especialmente o mais violento e
perigoso desses poderes – o poder punitivo. Em sua relação com leis
penais criminalizadoras, as normas garantidoras dos direitos humanos
fundamentais se destinam a funcionar como um freio ao poder do estado de
punir, a fim de proteger cada indivíduo ameaçado pelo exercício desse
poder, em qualquer circunstância, seja quem for tal indivíduo ou quão
odiosa a conduta alegadamente praticada. Em sua relação com leis penais
criminalizadoras, as normas garantidoras dos direitos humanos
fundamentais se destinam, pois, a proteger cada indivíduo suspeito,
acusado ou condenado pela prática de um crime, de modo a evitar ou pelo
menos minimizar as violentas, danosas e dolorosas consequências de
investigações, processos ou condenações penais. Em sua relação com leis
penais criminalizadoras, as normas garantidoras dos direitos humanos
fundamentais se orientam pela primazia da proteção de cada indivíduo
sobre o poder punitivo, sempre implicando o máximo respeito pela
liberdade individual e o máximo controle sobre o exercício do poder
punitivo.
A
finalidade das normas garantidoras dos direitos humanos fundamentais,
em sua relação com leis penais criminalizadoras, é, portanto, restringir
a violência, os danos e as dores que necessariamente resultam de
qualquer intervenção do poder do estado de punir. Essas mesmas normas
não podem ser usadas para impulsionar esse mesmo violento, danoso e
doloroso poder. A falsa ideia de supostas obrigações criminalizadoras
pretensamente extraídas das normas garantidoras dos direitos humanos
fundamentais inverte totalmente a função de tais normas. Normas
destinadas a proteger o indivíduo ameaçado pelo exercício do poder
punitivo não podem paradoxalmente funcionar como um instrumento voltado
para a expansão desse mesmo poder. Sempre vale lembrar que “ninguém pode
servir a dois senhores; ou você odiará um e amará o outro; ou você se
dedicará a um e desprezará o outro” (Mateus, 6: 24).
A
distorcida leitura das normas garantidoras dos direitos humanos
fundamentais contraditoriamente apresenta o sistema penal como um
instrumento de atuação positiva. No entanto, o sistema penal só atua
negativamente – aliás, em todos os sentidos, mas, aqui, no sentido de
atuar proibindo condutas, intervindo somente após o fato acontecido,
para impor a pena como conseqüência da conduta criminalizada. Na
realidade, o que os dispositivos garantidores da proteção de direitos
humanos fundamentais, assentados nas declarações universais de direitos e
nas constituições democráticas, ordenam aos Estados são intervenções
positivas que criem condições materiais – econômicas; sociais; e
políticas – para a efetiva realização daqueles direitos. São essas ações
de natureza positiva (ações que promovem direitos) – e não ações
negativas (ações que proíbem condutas) – que devem ser realizadas pelos
Estados para tornar efetiva a proteção dos direitos humanos
fundamentais.
Nesse
ponto vale lembrar que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos,
conhecida como ‘Pacto de San José’, dispõe que o direito à vida deve ser
em geral protegido desde o momento da concepção (artigo 4, parágrafo
1). Será que essa norma estaria a implicar uma obrigação de criminalizar
o aborto? Aqueles e aquelas que acreditam na falsa ideia de que as
normas garantidoras dos direitos humanos fundamentais gerariam supostas
obrigações criminalizadoras, deveriam, por um mínimo de coerência,
responder que sim.
Na
realidade, no entanto, o sistema penal nunca atua efetivamente na
proteção de direitos. A expressão ‘tutela penal’, tradicionalmente
utilizada é manifestamente imprópria, na medida em que as leis penais
criminalizadoras, na realidade, nada tutelam, nada protegem, não evitam a
ocorrência das condutas que criminalizam, servindo tão somente para
materializar o exercício do enganoso, violento, danoso e doloroso poder
punitivo. O bem jurídico não deve ser visto como objeto de uma suposta
“tutela penal”, mas sim como um dado real referido a direitos dos
indivíduos, que, por imposição das normas garantidoras dos direitos
humanos fundamentais, há de ser levado em conta como elemento limitador
da elaboração e do alcance daquelas leis criminalizadoras. [3]
O
sistema penal promove violência; estigmatização; marginalização; e
sofrimento. Aliás, quanto a esse último efeito, vale lembrar que essa é a
ideia central da punição: pena significa sofrimento. O sistema penal
promove desigualdade e discriminação, tendo como alvo grupos já em
desvantagem social. Os indivíduos que, processados e condenados, são
etiquetados de ‘criminosos’ – assim cumprindo o papel do ‘outro’, do
‘mau’ e, agora, do ‘inimigo’ – são e sempre serão necessária e
preferencialmente selecionados dentre os mais vulneráveis,
marginalizados, excluídos e desprovidos de poder. Como assinala
Zaffaroni, o sistema penal opera como uma epidemia, preferencialmente
atingindo aqueles que têm baixas defesas [4]. O interior das prisões em
todo o mundo não deixa dúvida quanto aos alvos preferenciais do sistema
penal. Certamente, não seria razoável supor que um atributo negativo,
como é o status de ‘criminoso’, pudesse ser preferencialmente
distribuído entre os poderosos.
O
sistema penal promove a ideia do ‘criminoso’ como o ‘outro’, o ‘mau’ e
agora como o ‘inimigo’, assim necessariamente atuando de forma residual,
através da seleção de alguns dentre os inúmeros autores de condutas
criminalizadas para cumprirem aquele demonizado papel. Assim, facilita a
minimização de condutas e fatos não criminalizáveis socialmente mais
danosos, como a falta de educação de qualidade, de alimentação saudável,
de atendimento à saúde, de moradia confortável, de trabalho digno.
Assim, afasta a investigação e o enfrentamento das causas mais profundas
de situações, fatos ou comportamentos indesejáveis ou danosos, ao
provocar a sensação de que, com a imposição da pena, tudo estará
resolvido. Assim, oculta os desvios estruturais, encobrindo-os através
da crença em desvios pessoais, o que evidentemente contribui para a
perpetuação daquelas situações, fatos ou comportamentos indesejáveis ou
danosos.
Com
efeito, situações, fatos ou comportamentos negativos, indesejáveis ou
danosos não desaparecem com a imposição de penas. A punição apenas
adiciona novos danos e dores aos danos e dores causados pelas condutas
criminalizadas.
O
sistema penal tampouco alivia as dores daqueles ou daquelas que sofrem
perdas causadas por comportamentos de indivíduos que desrespeitam e
agridem seus semelhantes. Ao contrário. O sistema penal manipula essas
dores para criar e facilitar a aparente legitimação do poder do estado
de punir. Manipulando o sofrimento, o sistema penal estimula sentimentos
de vingança. Desejos de vingança não trazem paz. Desejos de vingança
acabam sendo autodestrutivos. O sistema penal manipula sofrimentos,
perpetuando-os e criando novos sofrimentos.
Ativistas
e movimentos feministas, como outros ativistas e movimentos de direitos
humanos, argumentam que as leis penais criminalizadoras têm uma
natureza simbólica e uma função comunicadora de que determinadas
condutas não são socialmente aceitáveis ou são publicamente condenáveis.
Não parecem perceber ou talvez não se importem com o fato de que leis
ou quaisquer outras manifestações simbólicas – como explicita o próprio
adjetivo ‘simbólico’ – não têm efeitos reais. Leis simbólicas não tocam
nas origens, nas estruturas e nos mecanismos produtores de qualquer
problema social.
O
apelo à natureza simbólica e à função comunicadora das leis penais
criminalizadoras é a mais recente tentativa de legitimar o falido,
violento, danoso e doloroso poder do estado de punir. Com efeito, o
evidente fracasso das tentativas anteriores – as fictícias funções de
prevenção individual negativa ou positiva (concernentes aos efeitos da
pena sobre os condenados), e de prevenção geral negativa (concernente ao
suposto efeito dissuasório da pena) – fracasso esse que teve de ser
reconhecido mesmo pelos juristas adeptos do sistema penal, conduziu às
teorias fundadas na igualmente fictícia função de prevenção geral
positiva da pena, que se traduziria no estímulo ao respeito e obediência
à lei, ou, na expressão de Jakobs, o “cultivo da lealdade à lei”. [5]
Dividindo
os indivíduos entre ‘cidadãos leais’ e ‘inimigos’, tais teorias
fundamentam o chamado ‘direito penal do inimigo’, que, a partir dessa
divisão, claramente nega a dignidade inerente a todos os indivíduos,
assim claramente contradizendo os direitos humanos fundamentais.
Não
fosse isso, privar da liberdade; estigmatizar; causar sofrimento e
acabar por arruinar a vida de um indivíduo, para comunicar a mensagem de
que determinada conduta é negativa ou ‘má’, não parece ser um
comportamento harmônico com o conceito de direitos humanos fundamentais.
Ao contrário, tal comportamento se ajusta perfeitamente à ideia do
‘bode expiatório’ a ser sacrificado no altar do sistema penal – um ‘bode
expiatório’ que, naturalmente, será preferencialmente selecionado
dentre os mais vulneráveis, os pobres, os marginalizados, os não brancos
e desprovidos de poder, eventuais autores daquela ‘má’ conduta.
Além
disso, se ativistas e movimentos de direitos humanos paradoxalmente
concordam em sacrificar seres humanos para comunicar mensagens
relacionadas aos direitos humanos – como ativistas e movimentos
feministas querem sacrificar autores de agressões contra mulheres no
altar do sistema penal para comunicar a mensagem de que a violência de
gênero é algo negativo –, por que outros ativistas não poderiam fazer o
mesmo? Mais uma vez, é oportuno trazer o exemplo do aborto. Por que
outros ativistas e movimentos não poderiam defender a criminalização do
aborto, arguindo que esta seria necessária para comunicar a mensagem de
que o embrião ou o feto têm direito à vida?
Descriminalizar
ou não criminalizar uma conduta está longe de significar sua aprovação.
Há muitos outros modos mais efetivos e não danosos de enfrentar
situações negativas ou comportamentos indesejados, seja através de leis
não penais, seja através de outras intervenções políticas e/ou sociais.
Ainda mais eficazes são as antes mencionadas intervenções positivas
criadoras de condições materiais para a efetiva realização de direitos,
efetivamente ordenadas pelos dispositivos garantidores da proteção de
direitos humanos fundamentais, assentados nas declarações universais de
direitos e nas constituições democráticas. Por exemplo, o reconhecimento
legal e social das uniões de pessoas do mesmo sexo é muito mais eficaz
na promoção de direitos LGBT do que a criminalização da homofobia, que,
além de ineficaz, causa todos os danos e dores inerentes a qualquer
intervenção do sistema penal.
Iniciativas
relacionadas aos direitos humanos fundamentais jamais podem se valer da
violência, das dores, das desigualdades, da intolerância, das
discriminações, da marginalização, que são inerentes a qualquer
intervenção do sistema penal.
O
papel de ativistas e movimentos feministas, como de quaisquer outros
ativistas e movimentos de direitos humanos, há de ser o de repelir a
violência e os demais danos causados pelo exercício do poder do estado
de punir; conter sua expansão; defender os direitos humanos fundamentais
de todos os indivíduos em quaisquer circunstâncias; reafirmar os
valores de liberdade, solidariedade, tolerância e compaixão; lutar pela
efetiva primazia dos princípios garantidores assentados nas declarações
de direitos e constituições democráticas, de modo a proteger cada
indivíduo ameaçado pelo exercício do poder punitivo.
Ativistas
e movimentos feministas poderiam começar por se sensibilizar com a
opressão, a violência, os danos e as dores a que tantas mulheres são
submetidas pela atuação do sistema penal. O galopante e ininterrupto
crescimento do número de presos no Brasil nos últimos anos também atinge
as mulheres. A população carcerária feminina no Brasil mais do que
triplicou em pouco mais de doze anos. Do total de presos brasileiros em
junho de 2013, as mulheres eram 36135. Em dezembro de 2000, eram 10112
[6]. Mas, não são apenas as mulheres presas, metade delas acusadas ou
condenadas em razão da ilegítima criminalização do dito ‘tráfico’ das
arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas, que sofrem a
opressão, a violência, os danos e as dores provocados pelo sistema
penal. São também, as mães, companheiras e filhas dos mais de 500 mil
homens brasileiros presos, privadas de sua normal convivência familiar,
sacrificadas nos difíceis deslocamentos e nas longas esperas pela
oportunidade de breves visitas, violentadas nas ainda subsistentes
revistas vexatórias no limiar das grades das prisões.
Libertando-se
de seus paradoxais desejos punitivos e dirigindo seus olhares para o
interior dos muros e grades das prisões, ativistas e movimentos
feministas talvez finalmente consigam compreender que o enfrentamento da
violência de gênero e a redução desta e de quaisquer outras formas de
violência; a superação da desigualdade entre os gêneros e de relações
hierarquizadas e discriminatórias, assim como a superação de outras
desigualdades e de quaisquer formas de discriminação, jamais poderão se
dar através da sempre enganosa, danosa e dolorosa intervenção do sistema
penal.
É
preciso buscar instrumentos mais eficazes e menos nocivos do que o
fácil, simplista e perversamente simbólico apelo à intervenção do
sistema penal, que, além de não evitar a ocorrência das condutas que
etiqueta como crimes, além de não solucionar conflitos, ainda produz,
paralelamente à injustiça decorrente da seletividade inerente à sua
operacionalidade, um grande volume de sofrimento e de dor,
estigmatizando, privando da liberdade e alimentando diversas formas de
violência.
O
rompimento com tendências criminalizadoras quer as sustentadas nos
discursos ‘de lei e ordem’, quer as apresentadas sob uma ótica
supostamente progressista, é indispensável para a efetiva superação de
todas as relações de desigualdade, de dominação e de exclusão. A
repressão penal, qualquer que seja sua direção, em nada pode contribuir
para o reconhecimento e garantia dos direitos humanos fundamentais,
tampouco podendo trazer qualquer contribuição para a superação de
preconceitos ou discriminações, até porque preconceitos e discriminações
estão na base da própria ideia de punição exemplificativa, que informa e
sustenta o sistema penal.
Maria Lúcia Karam é uma das autoras do novo livro de intervenção Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação, que chega às livrarias em junho de 2015 (impresso R$10; e-book R$5). Com
textos curtos e afiados, de perspectivas diversas, a obra incita o
debate público sobre o tema e traz propostas para reverter o quadro
atual. Integram o volume, textos de nomes como Marcelo Freixo, Luiz
Eduardo Soares, Maria Rita Kehl, Coronel Íbis Pereira, Stephen
Graham, Tales Ab’Saber, Jean Wyllys, Laura Capriglione, João Alexandre
Peschanski, Renato Moraes, Guaracy Mingardi, Eduardo Suplicy, Fernanda
Mena, Christian Dunker, Movimento Independente Mães de Maio, Vera
Malaguti Batista, e do Núcleo de Estudos da Violência (USP), além de um
conto inédito de B. Kucinski, quadrinhos de Rafael Campos Rocha e ensaio
fotográfico de Luiz Baltar que retrata remoções forçadas e ocupações
militares em diversas comunidades e favelas do Rio de Janeiro desde
2009. Saiba mais aqui.
Confira o dossiê especial “Feminismo e política“,
no Blog da Boitempo, com artigos, reflexões, resenhas e vídeos de Maria
Rita Kehl, Lincon Secco, Ludmila Costhek Abílio, Maria Lygia Quartim de
Moraes, Flávia Biroli, Luis Felipe Miguel, Michael Löwy, Urariano Mota,
Laerte Coutinho, Renata Gonçalves, Ursula Huws, entre outros…
***
* Ensaio publicado originalmente em março de 2015, no Justificando, e recuperado aqui, no contexto do dossiê “Feminismo e política“, do Blog da Boitempo.
1 IPEA (2013). Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil. http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/130925_sum_estudo_feminicidio_leilagarcia.pdf
2 Ação Direta de Inconstitucionalidade 4424; decisão em 09/02/2012.
3 Sobre esse tema é indispensável a leitura do Derecho Penal – Parte General de Eugenio Raúl Zaffaroni, Alejandro Alagia e Alejandro Slokar. Buenos Aires: Ediar, 200
4 Essa observação de Eugenio Raúl Zaffaroni pode ser encontrada em “El sistema penal en los países de América Latina”, às ps.221-236 da coletânea Sistema penal para o terceiro milênio. (org. João Marcello de Araújo Junior). Rio de Janeiro: Ed. Revan, 1991.
5 Jakobs, Günther. Derecho Penal – Parte General (tradução de Joaquin Cuello Contreras e José Luis Serrano Gonzalez de Murillo). Madrid: Marcial Pons, 1977.
6 Dados do Ministério da Justiça.
***
Maria Lúcia Karam,
é juíza de direito aposentada do Tribunal de Justiça do estado do Rio
de Janeiro, ex-juíza auditora da Justiça Militar Federal e ex-defensora
pública no estado do Rio de Janeiro. É uma das autoras do livro de
intervenção Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios de sua superação (Boitempo, Carta Maior, 2015). Colabora com o Blog da Boitempo especialmente para o dossiê “Violência policial: uso e abuso“.
Fonte: BLOG DA BOITEMPO
Nenhum comentário:
Postar um comentário