PICICA:
"Nós não sabemos que um dia desses, um dia comum como qualquer outro, iremos morrer. Saber que se vai morrer não é simplesmente saber na articulação do pensamento. A morte como revoltante certeza, a morte como escândalo e a existência como gratuita e absurda não enquanto punhetagem existencialista, mas enquanto um querer viver que nos force a extrapolar a habitualidade dos dias que nos esmaga, e lentamente, lentamente esmagados, fechamos as cortinas e já não sentimos mais a beleza dessa vida, dessa vida terrestre e mundana. Há qualquer coisa que esses absurdos que chamamos de nascer e morrer nos comunicam. Nascemos desesperados aos berros e aos prantos, e partimos com um terrível sorriso que texturiza de contentamento até os rostos mais embrutecidos. E é justamente daí, da principal identidade do homem, o rosto, que os vermes começam o banquete, transformando rapidamente a beleza em horror… e do horror também virá a beleza através de obreiros invisíveis, em seus movimentos imperceptíveis, sempre trabalhando a matéria para esculpir corpos no mundo. Se escutássemos essas comunicações… não seria nenhuma revelação, nenhum dom, nenhum enigma que desvendaríamos, mas se escutássemos, se escutássemos a finitude nos tocar… então transbordaríamos de instante em instante, e nenhum homem seria mais o mesmo. Imagine o quão terapêutico é na vida de um homem que estaria prestes a morrer, por exemplo, por condenação na mira de um pelotão de fuzilamento, e por algum motivo se safa no último instante…"
Os homens morrem, e não são felizes.
(CAMUS, A.)
(CAMUS, A.)
Morre-se em um dia desses qualquer
Nós não sabemos que um dia desses, um dia comum como qualquer outro, iremos morrer. Saber que se vai morrer não é simplesmente saber na articulação do pensamento. A morte como revoltante certeza, a morte como escândalo e a existência como gratuita e absurda não enquanto punhetagem existencialista, mas enquanto um querer viver que nos force a extrapolar a habitualidade dos dias que nos esmaga, e lentamente, lentamente esmagados, fechamos as cortinas e já não sentimos mais a beleza dessa vida, dessa vida terrestre e mundana. Há qualquer coisa que esses absurdos que chamamos de nascer e morrer nos comunicam. Nascemos desesperados aos berros e aos prantos, e partimos com um terrível sorriso que texturiza de contentamento até os rostos mais embrutecidos. E é justamente daí, da principal identidade do homem, o rosto, que os vermes começam o banquete, transformando rapidamente a beleza em horror… e do horror também virá a beleza através de obreiros invisíveis, em seus movimentos imperceptíveis, sempre trabalhando a matéria para esculpir corpos no mundo. Se escutássemos essas comunicações… não seria nenhuma revelação, nenhum dom, nenhum enigma que desvendaríamos, mas se escutássemos, se escutássemos a finitude nos tocar… então transbordaríamos de instante em instante, e nenhum homem seria mais o mesmo. Imagine o quão terapêutico é na vida de um homem que estaria prestes a morrer, por exemplo, por condenação na mira de um pelotão de fuzilamento, e por algum motivo se safa no último instante…
Os homens morrem, e não são felizes.
(CAMUS, A.)
(CAMUS, A.)
As crianças compreendem o que os adultos tentam ocultar, e preenchem o que não sabem com fantasmas. Toda família é um berço de fantasmas – mais-valia psicanalítica. A crueldade dos pais é essa, a tragédia dos filhos é essa. No fundo, a tragédia é de todos, de geração em geração crianças cintilantes de vida morrem para dar lugar a adultos mornos, medrosos, lamurientos, julgadores. Alguém já parou para pensar se todos nós não estivéssemos amarrados a uma história de fantasmas o quanto da nossa potência não poderia ser utilizada para cantar e dançar ao invés de lutar contra nós mesmos e infectar o mundo?
Somos adultos, e responsáveis, e pais, e mães, e trabalhadores, e cidadãos, e temos conta em banco, e andamos de automóveis, e lavamos nossos automóveis aos domingos, e temos religiões e esperanças, e somos medrosos, e covardes, e discutimos nossas religiões, e queremos explicar o mundo, e não suportamos o mistério, e falamos em progresso e em evolução, somos evoluídos, somos morais e explicamos o mundo pela moral, e dizem que as crianças não entendem… É necessário educar, pais, eduquem seus filhos, diz a voz interior. Educação para que e para quem? Um mundo de fantasmas espera por Luana, e depois Luana irá crescer, ficar adulta, e descobrir que tudo poderia ser bem diferente, e terá que lutar, lutar muito para se livrar das tantas bobagens que os adultos lhe disseram sobre a vida. Ou não. E então irá se adequar, se dobrará às forças do mundo, e será uma operária do mundo, e viverá bem, e será feliz, e terá um marido, e terá três filhos, e no fim do ano irão se reunir em família para comemorar o natal e relembrar os entes queridos que se foram através do álbum digital de fotografias da família que irá passar em uma grande tela fina com um fundo musical de Noite Feliz, e…
Luana, garotinha de beleza frágil e delicada, um cristal da civilização cultivado no seio da sagrada família, sabia, não sem uma atmosfera de dúvida e confusão que quase sempre é intrínseco ao que sabemos, que o avô não estava nas nuvens olhando por ela, e se estava não lhe importava porque o avô que queria era aquele que conhecia, segurando em sua mão, contando histórias e de muitas brincadeiras. Queria o avô, aqui e agora. De nada lhe adiantaria um avô que ficasse escondido nas nuvens sentado em uma cadeira sem dizer nada. De nada importaria um avô para ser encontrado em outra vida quando tudo o que importa é o instante escorrendo no corpo. Não sabia, mas vivia aquilo de estranho que escorria dos olhos e do rosto da mãe quando esta lhe contava sobre o avô. A mãe também não sabia como dizer, mas encaixava algumas palavras na tentativa de amenizar a ansiedade do silêncio. E damos um jeitinho, há esperança para tudo, bichos bípedes evoluídos com inteligência e com movimento de pinça e com almas que podem ser salvas são técnicos na negação da vida para subsidiar tantos outros mundos por vir.
Cumplicidades entre estado e família: maneiras refinadas e sutis que vão esculpindo as loucuras e as desgraças nas gerações, uma gênese de fantasmas. Amarra-se uma consciência ao corpo, e o corpo não dança mais, amarra-se os significados ao corpo, e o corpo não canta mais.
Flor de jardim cuidada diariamente com mãos delicadas e protegidas com luvas, Luana não tinha visto o sorriso misterioso do avô que estivera empalidecido em um confortável caixão, velado pelos que ficaram por mais algum tempo e por Jesus Cristo – Cristo que adora um velório, no conforto de sua cruz, estivera presente iluminando de morte o centro da sala e foi junto com o morto para debaixo da terra, pregado – como sempre – na tampa do caixão. Pregado duplamente.
Ahh! Luana ainda não conheceu o sorriso dos mortos, esse sorriso tão peculiar que só acontece uma vez na vida, coincidindo justamente com a nossa morte, e que só os outros presenciam. Há qualquer coisa que esses absurdos que chamamos de nascer e morrer nos comunicam. Nascemos desesperados aos berros e aos prantos, e partimos com um terrível sorriso que texturiza de contentamento até os rostos mais embrutecidos. E é justamente daí, da principal identidade do homem, o rosto, que os vermes começam o banquete, transformando rapidamente a beleza em horror… e do horror também virá a beleza através de obreiros invisíveis, em seus movimentos imperceptíveis, sempre trabalhando a matéria para esculpir corpos no mundo. Se escutássemos essas comunicações,não seria nenhuma revelação, nenhum dom, nenhum enigma que desvendaríamos, mas se escutássemos, se escutássemos a finitude nos tocar… então transbordaríamos de instante em instante, e nenhum homem seria mais o mesmo. Imagine o quão terapêutico é na vida de um homem que estaria prestes a morrer, por exemplo, por condenação na mira de um pelotão de fuzilamento, e por algum motivo se safa no último instante… Dostoievski passou por isso. E mesmo que passássemos por experiência semelhante o brilho da vida iria se desfocando lentamente, eis o nosso desafio, eis a dificuldade maior, a de afirmar a coragem de viver no escorrer dos dias sem depender de nenhum evento extraordinário. Não há alegria de viver sem desespero de viver. (CAMUS, A.)
Porque uma coisa é viver quando estamos diante de uma nova paixão, diante de uma música que nos toca pela primeira vez, diante de uma obra que nos faça quebrar as paredes do tempo e do espaço, viver em 3 ou 10 segundos de orgasmo, outra coisa é o farfalhar diário, a vida da produção, das tarefas, dos compromissos, do tempo rentável, das conversas de elevadores, do ir e vir do trabalho… Em algum momento todos nós teremos de nos haver com a própria respiração, a sós, congelados em tédio e inércia. Tomar a finitude enquanto força é tomá-la enquanto força capaz de soprar a poeira dos dias que vai se acumulando em nós para que consigamos perceber no habitual um já extraordinário.
Luana, como todo humano, nascera dos encontros e desencontros de processos fisiológicos nos insondáveis do corpo de sua mãe – que só se sucederam, também, por encontros e desencontros durante a vida de seus pais no mundo -, um universo a parte com vísceras, sangue, ossos e bilhões de organismos vivos… Luana era o produto em desenvolvimento de infinitesimais e silenciosos microprocessos em aparência de obra de arte. E bela, e sem razão de ser, e belo porque sem razão de ser. A fragilidade da sua pele lembrava as pétalas das flores e a delicadeza dos seus traços podia estremecer qualquer coração desses sufocados de fantasmas.
Quando balançava, o corpo de Luana parecia ser soprado pelo vento manso de primavera que brincava no quintal. Que pensava Luana, de espírito nublado, enquanto ia e vinha, lentamente, em seu balanço que rabiscava o dia ensolarado? Pensava pensamentos como todos os humanos pensam sem se dar conta. A diferença é que os pensamentos das crianças costumam servir mais para voar do que prender, como costumam ser para os adultos.
Crianças costumam voar no dorso de seus pensamentos, enquanto os adultos costumam se atolar e se castigar. Adultos, quanto mais velhos vão ficando, tendem a amargar a carne, ficam apáticos, impacientes, irritadiços… não que seja a ordem natural das coisas, nada disso, mas lentamente é o que vamos nos tornando se a gente não encontra maneiras de eliminar os tóxicos sociais da boa-vida-para-todos. Nesse momento há filas enormes por aí de adultos que já não são atravessados por uma única centelha qualquer que experimentaram quando crianças diante do desconhecido, só uma, uma só centelha capaz de derreter o sangue já congelado e iluminar novamente o espírito com a coragem de uma criança ainda não amarrada pela consciência.
Adultos não costumam se embebedar da vida que costumamos encontrar nas crianças, se ocupam demais com seus fantasmas, carregam o barro da significância de uma vida inteira, estão em guerra consigo mesmo na maior parte do tempo, e quando em guerra já não há sentido para brincar na areia morna do quintal.
Uma pequena borboleta apareceu e começou a bailar, e com seu bater de asas aveludado despertou o corpinho de Luana que ergueu seu pescoço frágil e cabisbaixo de menina triste que ia e vinha no movimento do seu balanço que repetia o sem sentido dos dias sem o avô. Garotinhas doces também têm seus estados de sem sentido. Os dois pequenos olhos caídos de Luana se transformaram em amêndoas vivas e passaram a seguir a borboleta. Pareciam aguardar algum momento exato, e no cálculo de um só gesto esmagou a borboleta na palma de suas mãos.
É nas brechas deixadas do acaso das circunstâncias que os momentos exatos surgem. A vida por um instante, por um gesto, por um agir, por um ato, por um sopro de criação que eletrifica radicalmente as moléculas cujos abalos sísmicos ampliam nossas perspectivas. No momento exato Luana lançou suas pequenas mãos ao ar em direção à borboleta, seu silêncio saíra do fundo das pedras em forma de garras na jugular de sua presa. A doçura, ela, a doçura, também tem seus momentos de selvageria. O que antes era um milagre que dava piruetas no ar, agora jazia como massa desmanchada, em forma disforme e pastosa, enquanto os cacos das asas ainda se mexiam delicadamente como que tentando remendar a vida quebrada a partir da exatidão – irremediável – da morte.
Luana mal sabia do peso desse pequeno cadáver, tão exato quanto o cadáver do seu avô quando colocados sob a perspectiva de um universo mudo e indiferente que não se importa com vidas de homens ou insetos. Fizera justiça com as próprias mãos diante do crime que a mãe cometera por amor quando lhe ocultou o cadáver do avô? Seria por amor que a vida nos oculta, todos nossos gestos, sentidos e lembranças… com a morte? Quanto tempo aguentaria uma vida carregar os seus fantasmas? Deixemos a vida em paz, deixemos a matéria se transformar, a vida é o que é e não tem de se haver com as nossas dores, nossos desesperos e nossos medos, mas temos o direito da revolta – o direito da revolta diante do irremediável! -, um grito diante do absurdo ainda que em nada se altere o ritmo das estrelas e das ondas. Um pouco de odium fati, por que não? Se não… fica artificial demais.
A morte como revoltante certeza. A morte como escândalo e a existência como gratuita e absurda não enquanto punhetagem existencialista, mas enquanto um querer viver que nos force a extrapolar a habitualidade dos dias que nos esmagam, e lentamente, lentamente esmagados fechamos as cortinas para o mundo, e de cortinas fechadas já não percebemos a beleza dessa vida, dessa vida terrestre e mundana.
Não é possível ocultar os mortos, os seus odores acabam por denunciá-los. E quanto mais se oculta os cadáveres, mais terrível será o cheiro com que irão nos esmagar um dia. Deixemos a morte viver também, e quando sentir que você também estará debaixo da terra em um dia desses qualquer, a mecânica dos seus dias será dinamitada e então conseguirá não só abrir as janelas e ver o arco-íris, mas também tocá-lo enquanto escuta uma sinfonia orquestrada pelos pássaros e insetos que até então não percebera que existiam tal como você. Na vida engessada que vivemos, onde o trânsito repudia o cortejo fúnebre pelos centros agitados de cinza e asfalto, tratamos a morte com desprezo e não como uma conselheira, a que mais entende de vida, ou quando muito é tomada enquanto uma categoria existencialista que nos faça atolar em uma rede humanista – Heidegger nos levando todos para a morte. Nós, evoluídos, filhos do progresso, cheio de deuses e outras vidas no além temos medo de morrer… Pensar que morremos é também uma exercício para rir de nós mesmos, dessas tolices da consciência, das crenças dos homens, dos discursos de fé que tanto preferem outras vidas mas titubeiam diante da morte dessa.
Voltemos às gratuidades do absurdo da matéria em suas formas de doce menina, de borboleta desmanchada, de cadáver em putrefação, de planetas desgovernados girando em galáxias distantes, de pulgas que habitam os pelos dos animais, de uma pedra ou grão de terra, de epopeias com espermatozoides em guerra por um óvulo, de… Luana contemplava o crime no leito de suas mãos e seus olhos brilhavam transbordando a inocente crueldade da vida. Talvez fosse o tão aguardado troféu que nunca ganhara em suas frequentes derrotas nas brincadeiras infantis com as amigas da escola. A morte jazia na brandura de mãos alvas e sem pecados que seguravam o pior dos pecados sem se ferir, e havia qualquer coisa de espanto que evolava através da delicada brutalidade daquela obra de arte criada com o barro do horror e da beleza. Não era a vida que vivia, nem a morte que morria, mas a vida e a morte que existiam juntas, como flores de um mesmo jardim, produzindo quentura sob a imensa frieza do universo.
As mesmas mãos, que agora estavam cheias de morte, um dia certamente irão acariciar um homem e transbordá-lo de uma vida como nunca antes vivida e ambos poderão se sentir maiores que o universo. Ou talvez não, e não importa. E é assim, de pequenos gestos inesperados, que a morte é sepultada e a vida transformada no milagre de existir, tudo debaixo de um mesmo céu.
Nós não sabemos que um dia desses – um dia desses -, comum, onde continuaremos querendo ser, com sonhos e desejos inacabados, com uma conta ainda não paga, com uma consulta qualquer agendada, talvez antes ou depois da hora do almoço, quem sabe no jantar, esperando ainda por algo, com a lembrança de alguém que um dia amamos e que há muito já não temos notícias… nós não sabemos que é em um dia desses qualquer que iremos morrer, um dia desses qualquer. Saber que se vai morrer não é simplesmente saber na articulação do pensamento. É necessário algo mais, esse algo mais é o que faz percebermos que a borboleta já é um milagre antes de qualquer coisa, antes de dizê-la bor-bo-le-ta. A vida, antes que se despedace, já é um milagre, um milagre sem deus, sem nome, sem causa… tudo que vem depois é por doença da consciência e seus fantasmas.
Deste trágico cara a cara com o que nos mata, a vida deverá renascer. Ela será tanto melhor vivida quanto mais nos recordamos de que não tem sentido. (CAMUS, A.)
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