agosto 17, 2015

A farsa do 15 de agosto. POR Lúcio Flávio Pinto

PICICA: "A tradição pode ser fruto do concubinato do ativismo de uns poucos e da omissão de muitos. Uns escrevem o que lhes interessa, impondo-o como verdade. Muitos, por preguiça mental, comodismo ou oportunismo, aceitam essa verdade sem questionamento. 

É o que acontece com a tradição montada em torno da data de hoje, 15 de agosto. Ela assinala a “adesão do Pará” à independência. De definição, a frase virou um jargão, um clichê que se repete sem atenção pelo seu significado. A indiferença mantém o feriado estadual, mas a adesão a ele é cada vez menor. Mais pessoas trabalham e estabelecimentos comerciais funcionam. É como se o feriado se tivesse reduzido a ponto facultativo para todos, não apenas para a burocracia estatal, com sua doença constante: a elefantíase, que gera a dominação patrimonial.

O feriado de hoje poderia simplesmente acabar e a história estaria mais bem contada. Essa oportunidade se ofereceu aos paraenses quando a principal avenida de Belém trocou de nome, o 15 de Agosto (posterior à via dos Mirandas), para homenagear Getúlio Vargas, o político que por mais tempo (18 anos) ficou à frente da presidência da república.Se os paraenses fossem mais atentos à própria história, aproveitariam para extinguir o feriado ou substituir a data por 11 de agosto.

Nesse dia irrompeu o que devia ter sido a adesão dos nativos ao nascente império brasileiro, que já existia há quase um ano no “outro Brasil”, que pouco tinha a ver com o Grão Pará. Os verdadeiros nacionalistas foram reprimidos a partir de Muaná e os que escaparam foram remetidos como degredados para fora da sua terra, à qual poucos retornaram.

Os responsáveis por essa perseguição foram os que compareceram à solenidade no belo e suntuoso palácio para promover a adesão da elite dominadora, portuguesa ou de origem portuguesa, subitamente nacionalizada, que aderia para renovar as formas e fontes de dominação que exercia. Só 12 anos depois, com a cabanagem, essa dominação compacta e dura foi quebrada e o Pará, atrás dele todo o norte do país, se tornou brasileiro – brasileiro tardio e mal compreendido até hoje.

No século anterior, o último suspiro do colonialismo português foi dado através do também derradeiro déspota esclarecido, o marquês de Pombal. Ele mandou para a Amazônia missões geopolíticas, científicas e culturais, construiu palácios e igrejas, consolidou a separação do Brasil em dois, elevou o status de Belém (e de São Luiz), imaginando que o elo entre Lisboa e a subcapital nos trópicos resistiria aos movimentos nativistas no “outro Brasil”, que dificilmente seria mantido lusitano.

A pergunta que se podia fazer, não apenas por um exercício intelectual, mas para estabelecer comparações entre duas épocas igualmente coloniais, é: o que foi melhor para o norte, o império brasileiro ou o projeto do sub-império português na Amazônia? 

Trazendo para os dias republicanos atuais, o que tem ganhado realmente a Amazônia por ter se tornado brasileira, à base de massacres ordenados do Rio de Janeiro, ou derivados da sua incompreensão sobre o que é realmente a Amazônia, do brigue Palhaço e da cabanagem à devastação florestal, aos conflitos fundiários, às mortes anunciadas no campo, ao saque dos recursos naturais da região?

Ficam as perguntas aos leitores, juntamente com o texto, a seguir, de entrevista que a historiadora Magda Ricci deu à assessoria de imprensa da Universidade Federal do Pará, da qual é professora e pesquisadora. Fiz alguns ajustes e correções no texto para a sua melhor leitura."

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A farsa do 15 de agosto

A tradição pode ser fruto do concubinato do ativismo de uns poucos e da omissão de muitos. Uns escrevem o que lhes interessa, impondo-o como verdade. Muitos, por preguiça mental, comodismo ou oportunismo, aceitam essa verdade sem questionamento. 

É o que acontece com a tradição montada em torno da data de hoje, 15 de agosto. Ela assinala a “adesão do Pará” à independência. De definição, a frase virou um jargão, um clichê que se repete sem atenção pelo seu significado. A indiferença mantém o feriado estadual, mas a adesão a ele é cada vez menor. Mais pessoas trabalham e estabelecimentos comerciais funcionam. É como se o feriado se tivesse reduzido a ponto facultativo para todos, não apenas para a burocracia estatal, com sua doença constante: a elefantíase, que gera a dominação patrimonial.

O feriado de hoje poderia simplesmente acabar e a história estaria mais bem contada. Essa oportunidade se ofereceu aos paraenses quando a principal avenida de Belém trocou de nome, o 15 de Agosto (posterior à via dos Mirandas), para homenagear Getúlio Vargas, o político que por mais tempo (18 anos) ficou à frente da presidência da república.Se os paraenses fossem mais atentos à própria história, aproveitariam para extinguir o feriado ou substituir a data por 11 de agosto.

Nesse dia irrompeu o que devia ter sido a adesão dos nativos ao nascente império brasileiro, que já existia há quase um ano no “outro Brasil”, que pouco tinha a ver com o Grão Pará. Os verdadeiros nacionalistas foram reprimidos a partir de Muaná e os que escaparam foram remetidos como degredados para fora da sua terra, à qual poucos retornaram.

Os responsáveis por essa perseguição foram os que compareceram à solenidade no belo e suntuoso palácio para promover a adesão da elite dominadora, portuguesa ou de origem portuguesa, subitamente nacionalizada, que aderia para renovar as formas e fontes de dominação que exercia. Só 12 anos depois, com a cabanagem, essa dominação compacta e dura foi quebrada e o Pará, atrás dele todo o norte do país, se tornou brasileiro – brasileiro tardio e mal compreendido até hoje.

No século anterior, o último suspiro do colonialismo português foi dado através do também derradeiro déspota esclarecido, o marquês de Pombal. Ele mandou para a Amazônia missões geopolíticas, científicas e culturais, construiu palácios e igrejas, consolidou a separação do Brasil em dois, elevou o status de Belém (e de São Luiz), imaginando que o elo entre Lisboa e a subcapital nos trópicos resistiria aos movimentos nativistas no “outro Brasil”, que dificilmente seria mantido lusitano.

A pergunta que se podia fazer, não apenas por um exercício intelectual, mas para estabelecer comparações entre duas épocas igualmente coloniais, é: o que foi melhor para o norte, o império brasileiro ou o projeto do sub-império português na Amazônia?

Trazendo para os dias republicanos atuais, o que tem ganhado realmente a Amazônia por ter se tornado brasileira, à base de massacres ordenados do Rio de Janeiro, ou derivados da sua incompreensão sobre o que é realmente a Amazônia, do brigue Palhaço e da cabanagem à devastação florestal, aos conflitos fundiários, às mortes anunciadas no campo, ao saque dos recursos naturais da região?

Ficam as perguntas aos leitores, juntamente com o texto, a seguir, de entrevista que a historiadora Magda Ricci deu à assessoria de imprensa da Universidade Federal do Pará, da qual é professora e pesquisadora. Fiz alguns ajustes e correções no texto para a sua melhor leitura.

O que a Adesão do Pará à Independência do Brasil? E quando aconteceu?

Trata-se de uma pergunta difícil e longa para se responder. Vou tentar resumir: “Adesão” é um termo que significa se juntar ou se unir. Assim a adesão do Pará foi o nome dado ao processo que uniu esta parte da antiga colônia portuguesa na América (chamada então de “Grão-Pará”) ao resto do Brasil.

Aqui é preciso lembrar que o antigo Grão-Pará foi colonizado por Portugal, tanto quanto o resto do atual Brasil. Contudo, até 1808 (ano que o monarca português D. João VI fugiu de Lisboa durante as guerras Napoleônicas e instalou sua corte no Rio de Janeiro) o Grão-Pará tinha autonomia administrativa e comercial bastante forte, mantendo poucas ligações com a parte sul da colônia portuguesa na América.

Entre 1808 e 1822, todavia, houve um processo de busca de união entre o norte e o sul da colônia portuguesa. Neste sentido, as duas colônias foram unidas e depois de 1815 passou a ser chamada de “Reino Unido” de Portugal e Brasil com sede na corte carioca. Este cenário mudou drasticamente, quando, em 1820, estourou uma revolução liberal em Portugal e o rei D. João VI retornou a Lisboa. Teve início uma grave crise política e administrativa em todo o Brasil e no Pará em particular.

O Pará foi o primeiro local a aderir à causa revolucionária portuguesa, pois, a princípio, ela significava que o poder político voltaria à Lisboa e o Pará poderia voltar a ter mais liberdade política e econômica. Contudo, em 1822 o príncipe regente Pedro I (que havia ficado no Rio de Janeiro) proclamou a independência de Portugal e, simultaneamente as cortes de Lisboa foram se radicalizando e se tornando menos propícias a ouvirem os deputados de fora de Portugal.

Todo ente cenário deixou os paraenses divididos entre se unir ao monarca português do Rio ou permanecer com o antigo Reino. A situação se agrava com a morte do antigo monarca D. João VI. As resoluções mais absolutistas das Cortes de Lisboa, e as promessas liberais de Pedro I atraíram muitos paraenses mais liberais. Contudo, havia uma forte colônia portuguesa que relutou muito em se associar ao Rio de Janeiro.

Assim, o Pará foi o primeiro a se juntar aos portugueses na sua revolução liberal de 1820 e o último a aderir à causa liberal de Pedro I. O Brasil foi declarado independente em sete de setembro de 1822, mas o Pará só aderiu a esta independência em 15 de agosto de 1823.

Por que o Estado aderiu tão tarde?

Esta adesão tardia, como já anunciei anteriormente, ocorreu por conta de uma forte ligação entre a elite paraense da época com a comunidade e os comerciantes portugueses, especialmente aos da cidade do Porto, onde estourou a revolução liberal de 1820. Belém, por exemplo, tinha o mesmo status que esta cidade lusitana do Porto e o bispado daqui esteve muito atrelado aos de Portugal, o que fortalecia os laços entre paraenses e portugueses.

Também se deve lembrar que os militares portugueses tinham servido ao rei D. João VI durante a campanha da tomada de Caiena, na Guiana Francesa, entre 1809 e 1817. Ainda havia no Pará de 1823 muitos portugueses militares que eram fiéis ao antigo monarca que voltava para Lisboa e que pouco conheciam do jovem Pedro I.

Qual a importância desse acontecimento para a sociedade paraense?

É um momento especial de formação de uma identidade local. Aqui é preciso esclarecer que há uma separação nítida entre a formação de um Estado Nacional Brasileiro (que nasceu em sete de setembro de 1822) e a constituição de uma pátria nacional brasileira. O que nasceu mais rápido foi um sentimento de pertencimento ao Pará. A adesão do Pará e (a dos paraenses) à causa brasileira em 15 de agosto de 1823 foi o primeiro passo para a formação de uma identidade patriótica maior.

Quais os documentos existentes sobre a Adesão? Aonde eles estão guardados?

Existe no arquivo Público do Pará a chamada ata de adesão dos cidadãos paraenses à causa do Brasil. Contudo hoje sabemos que este episódio em si não explica a complexidade do processo de criação de identidades local e nacional. Para isso existem muitos outros documentos. São exemplos deles: centenas de ofícios trocados entre autoridades de Lisboa, Rio de Janeiro com as do Pará, e outras centenas de ofícios trocados dentro do Pará com as mais diversas localidades do interior.

Além destes documentos manuscritos há ainda os primeiros jornais impressos por aqui, como o jornal O Paraense, criado e dirigido por liberais como Felipe Alberto Patroni e o cônego Batista Campos. Este jornal foi fechado e empastelado em 182 2. Assim nascia o jornal Luso-Paraense, que mostrava a posição dos portugueses na questão. Todos estes são periódicos muito efêmeros e pequenos em número de páginas. Contudo, são peças fundamentais de divulgação de ideias e demonstram bem o clima político acirrado que existia então.

Qual o objetivo do império brasileiro anexando o Estado?

Não era à toa que Pedro I chamou seu reino de “Império”. A ideia de Pedro I era ter o amplo controle tanto das margens e da desembocadura do rio Amazonas, quanto à do rio da Prata. Ele pretendia construir o mais gigante império que podia vislumbrar um monarca europeu na época pós-napoleônica. Ele teve imensos problemas no sul do Brasil e até 1828 viveu ali uma sangrenta guerra conhecida como Cisplatina, a qual terminou com um acordo que viabilizou a criação do Estado do Uruguai.

Já no norte, a princípio, a luta foi mais ou menos “tranquila”. Houve resistências na Bahia. Por ordem do Imperador Dom Pedro I, a esquadra comandada por Lorde Cochrane e subchefiada pelo almirante John Pascoe Grenfell (ambos ingleses que lutavam à custa de muito dinheiro) desembarcou em vários Estados do norte. Ali a esquadra estrangeira forçava os que ainda não haviam aderido à Independência a aceitar a separação definitiva entre Brasil e Portugal. Contudo, a princípio, esta missão deveria ir apenas até a Bahia. Não havia ordens para chegar ao extremo norte.

Mesmo assim, Cochrane decidiu fazer uma manobra que acabou dando certo. Ele enviou o almirante Grenfell com uma falsa correspondência assinada pelo Lorde comandante, a qual anunciava que aquele navio era o primeiro de uma ampla esquadra, que viria a mando de Pedro I. Assim, Grenfell desembarcou no Porto de Salinas no dia 11 de agosto de 1823 e, a custa de um blefe, não houve resistência imediata. Quando os oficiais portugueses perceberam que foram enganados o clima revolucionário já havia tomando conta da capital paraense e nada mais havia a fazer senão assinar um termo de adesão.

Contudo, esta tomada não mudou muita coisa na vida dos paraenses, especialmente na vida dos mais pobres e dos escravos, dos povos indígenas e dos mestiços. Deixamos de pertencer ao império português e passamos a pertencer ao império brasileiro. Havia uma expectativa de mudanças, especialmente entre os paraenses natos.

Muitos acreditavam que eles subiriam de cargo, ou que, nas milícias, os brasileiros e paraenses passassem a receber soldos equivalentes aos dos portugueses. A maioria dos paraenses pensava que os oficias portugueses fossem rebaixados ou expulsos dos corpos militares após a adesão. Contudo nada disso ocorreu e rapidamente eclodiram revoltas. A do brigue Palhaço foi a mais conhecida e trágica.

O que foi o episódio do brigue Palhaço? Por que aconteceu? E quando aconteceu?

A manutenção do poder nas mãos de muitos portugueses, que (no calor da hora se tornaram brasileiros e paraenses “adotivos”) fez com que o processo de adesão se tornasse complexo e delicado. Bastava assinar uma ata e jurar fidelidade ao monarca Pedro I (que, por sinal, também era português) para que se fosse considerado brasileiro adotivo. E estes manteriam seus cargos e poderes.
Nesta conjuntura, apenas três meses depois do 15 de agosto, explodiu em Belém uma revolta entre a tropa paraense, a qual foi duramente reprimida. Os soldados foram presos em uma embarcação e à noite acabaram sendo mortos por asfixia. Foi uma tragédia: na revolta do brigue Palhaço, 256 paraenses que lutavam por cidadania e direitos iguais aos dos portugueses que aqui viviam foram confinados no porão do navio São José Diligente e morreram asfixiados, sufocados ou até mesmo fuzilados.

Este episódio marcou um momento de consciência política e de identidade local. Nasceu ali um forte sentimento de identidade paraense que irá explodir mais tarde em outras revoltas como na sangrenta Cabanagem que explodiu em 1835.

Como ficou a província do Grão Pará após a adesão?

A província ficou muito dividida e a situação nacional do Brasil também não ajudou muito e, pelo contrário, piorou as dúvidas paraenses. O novo Império era frágil e ameaçava ruir a todo o momento. Havia uma dura guerra no sul, que durou até 1828. A guerra no sul e no norte foi comandada por oficiais ingleses, que foram pagos a peso de ouro, o que não era nada econômico e nem patriótico.

Também existia um processo de reconhecimento da independência muito caro (Pedro I aceitou pagar uma imensa indenização a Portugal pelo acordo de separação, em 1825). Além de tudo isso, Pedro I dizia ser brasileiro, liberal e constitucionalista, mas fez ele mesmo a constituição que dava a ele um poder centralizador chamado de moderador e, entre 1824 e 1826, governou sozinho sem convocar um parlamento como rezava a constituição.

Quando o Imperador convocou os deputados e senadores, a pressão política sobre seu governo só fez aumentar. Assim Pedro I, intitulado defensor perpétuo do Brasil, resolveu deixar o Brasil e voltar para Portugal, onde sua filha perdia batalhas na luta contra o irmão do imperador brasileiro, o infante D. Miguel. A abdicação de Pedro I no Brasil só agravou a crise política.

Com todo este cenário não é à toa que os paraenses ficassem indecisos. Se em 1823 os paraenses começaram o processo de nascimento e fortalecimento de uma identidade local, por outro lado, todos os episódios nacionais deixaram sérias dúvidas se valeria a pena continuar unido com a causa de Pedro I. A dúvida maior era a de se descobrir como se tornar “brasileiro”. Para alguns paraenses ser brasileiro era aderir à causa do Rio de Janeiro e a Pedro I, para outros era ter nascido no Brasil. Havia aqueles que acreditavam que o Brasil só seria um país independente com um r ei nascido no Brasil.

Assim, depois da adesão de 1823, houve ainda um tempo de incertezas e dúvidas. Se a elite local estava dividida, a população mais pobre e os escravos de origem africana perceberam rapidamente que a independência não mudou suas vidas e diante da fragilidade da elite poderiam também fazer uma revolução mais ampla para mudar suas vidas. Tudo isso culminou em muitos levantes e mortes, que se concluíram com a sangrenta cabanagem de 1835. Somente depois de 1840 é que se completou o processo que, a duras penas buscava construir uma identidade brasileira no norte do Brasil.

Aqui é preciso ressaltar que, em alguns aspectos, ainda hoje este processo não se fechou. Falo isso porque ainda nos nossos dias é preciso lutar para se fazer uma identidade nacional brasileira mais ampla e formadora de uma cidadania plena.

Fonte: Lúcio Flávio Pinto

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