PICICA: "Filme de Leonardo Lacca escancara rupturas e continuidades entre
Recife e São Paulo; cosmopolitismo e raízes nacionais; o amor
envelhecido e o que volta a instigar"
Permanência exibe os espelhos afetivos do Brasil
Filme de Leonardo Lacca escancara rupturas e continuidades entre Recife e São Paulo; cosmopolitismo e raízes nacionais; o amor envelhecido e o que volta a instigar
Por Deni Rubbo
permanência:
1. Ato de permanecer. 2. Estado ou qualidade de permanente.
3. Constância, continuidade, firmeza, perseverança.
4. Permissão, concedida a um estrangeiro, de permanecer e trabalhar no país.
Alguma hora, iria acontecer: o cinema
pernambucano na capital da garoa. Meio sem jeito. Não trouxe o sol de
Recife, mas uma tapioca saborosa. Um pouco tímido, sem graça, mas aceita
um café bem passado. Recife e São Paulo juntos, diferentes e de mãos
dadas.
Para além das divagações entre as conexões entre a capital do cinema e a capital econômica do país, Permanência
de Leonardo Lacca traz a sensível história de Ivo (Irandhir Santos), um
fotógrafo que irá expor seu trabalho na cidade e permanece alguns dias
no apartamento de Rita (Rita Cavelli).
A história se passa na cidade de São Paulo. Ela
não é um pano de fundo, mas vai se revelando, como um filme de uma
fotografia, pouco a pouco, a partir do ponto de vista do personagem de
Ivo. O cotidiano da cidade, o barulho da rua, a paisagem verticalizada,
as estações do metrô vão se apresentando nessa peregrinação do
personagem. E as pessoas também. Como é um fotógrafo e se relaciona com o
mercado da arte, conhece pessoas ligadas a esse círculo social, que se
mostram “descoladas”, autossuficientes de si, como se nada as afetassem
ou surpreendesse; controladamente arrogantes, orgulhosas de suas
posições no mercado cultural da cidade, independentes mas altas
consumidoras. Ou seja, estão totalmente dentro do eixo da ordem da
normatividade, muito embora gostem de se parecer como outsiders, aquelas que estão “fora do eixo”.
Não deixa de ser interessante como o filme transmite,
com sutil ironia, essas interações entre a chegada de um “estrangeiro”
pernambucano e a soberba paulistana em receber o “bom selvagem”. A
maneira como se deliciam com o seu “sotaque”, o desconhecimento patético
sobre Recife (embora falem com propriedade e segurança).
Ivo e Rita possuem um passado desconhecido,
provavelmente uma paixão amorosa, um relacionamento intenso, que não
será apresentado ao espectador. Todo mundo se identifica nesse tipo de
história: o reencontro com alguém que foi importante na sua vida — não
como uma mão que vira a página e acabou-se, mas como alguém que passou e
escreveu um capítulo de sua trajetória — leva obrigatoriamente a
repensar nosso passado. Com Permanência, passado e presente não
se apresentam de maneira temporal e contínua, mas formam uma imagem.
Como afirmava Walter Benjamin, “não é que o passado lança luz sobre o
presente ou que o presente lança sua luz sobre o passado; mas a imagem é
aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma
constelação”.
Desde a chegada de Ivo pode-se observar, de maneira
sutil, mas suficientemente clara, como o passado se rompe em mil
lampejos e emerge nos diálogos e gestos sem pedir licença. Sem pedir
licença, porque em nenhum momento ambos irão conversar sobre o passado,
embora ele esteja sendo digerido na permanência dele em São Paulo. O
sorriso de Rita ao ver que ele ainda tem problemas com elevador, a
cafeteira que ainda funciona, a máquina fotográfica velha, mas bem
conhecida….
Em uma cena numa cafeteria, Rita começa a falar com o
sotaque típico pernambucano e quando se dá conta diz: “Engraçado. É só
tu chegar que começo a falar que nem você. Parece que tem um botão que
liga no cérebro”.
Aos poucos, a entrada do “estrangeiro” em um ambiente
estável, já que Rita está casada, desestabiliza. Mas essa passagem não
se dá de maneira abrupta, em um ponto determinado. Mesmo porque os
diálogos não irrompem ações; são construídos sempre por interação sem
interações, formalidades baratas, triviais.
A desestabilização, a insegurança e o medo estão
dentro dos personagens. Não há explosão externa. Ivo não atende os
telefonemas da namorada e quando atende é para falar de trivialidades.
Sai com outras garotas na noite, sem grandes remorsos. E Rita, é como
ela caísse vagarosamente em um precipício, dando-se conta que está num
relacionamento vazio, e talvez até mesma numa vida vazia, mecânica, como
se tocasse uma música sem som, ou jogasse uma partida de futebol sem
bola. Essa imagem de ausência plena, distante de si mesma, pode ser
encontrada na cena em que ela se olha no espelho do banheiro, e seu
rosto vai desaparecendo aos poucos pelo vapor da água quente que embaça o
vidro. Como diria Julio Cortázar, os espelhos são fieis.
Talvez isso seja reforçado quando Rita recebe uma
série de fotos dela de Ivo. Nelas, é como Rita voltasse ao espelho,
vendo a si mesma numa grande e misteriosa experiência de sua trajetória,
com um aspecto tão vivo e tão verídico como a própria natureza. Seus
olhos incomensuravelmente tristes, desolados e perdidos no presentes,
contrastam com o sorriso pleno e luminoso do passado. Mas o que não
perde a aura é essa obra prima que Leonardo Lacca nos presenteia sobre
os silêncios do amor e da fuga.
DeniRubbo
Deni Rubbo é doutorando em Sociologia pela USP e escreve sobre Cinema, Política, Sociedade e Comportamento para Outras Palavras
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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