PICICA: "Pelo trabalho de Sebastião Salgado, temos um clarão da desigualdade e da miséria que nosso próprio estilo de vida impõe sobre os outros. Pelo viés de Gianlluca Simi
Podem fotografias daquilo que nunca experienciamos nos lembrar da dor e do sofrimento dos outros? Olhamos para o trabalho do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado à procura de respostas sobre a influência da fotografia na memória através dos escritos de Susan Sontag, mas não só, em seu livro Regarding the pain of others. Antes de nos atermos à análise das fotografias em si, tratemos um pouco das questões de memória e sociedade, a saber como aquela pode ser vista como “um processo ativo, interpretativo” (Prager citado por Misztal)"
SEBASTIÃO SALGADO: A DOR DOS OUTROS TAMBÉM É NOSSA
Pelo trabalho de Sebastião
Salgado, temos um clarão da desigualdade e da miséria que nosso próprio
estilo de vida impõe sobre os outros. Pelo viés de Gianlluca Simi
Podem fotografias daquilo que
nunca experienciamos nos lembrar da dor e do sofrimento dos outros?
Olhamos para o trabalho do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado à
procura de respostas sobre a influência da fotografia na memória através
dos escritos de Susan Sontag, mas não só, em seu livro Regarding the pain of others.
Antes de nos atermos à análise das fotografias em si, tratemos um pouco
das questões de memória e sociedade, a saber como aquela pode ser vista
como “um processo ativo, interpretativo” (Prager citado por Misztal).
MEMÓRIA E SOCIEDADE
Barbara A. Misztal argumenta que “muito
do que parecemos ‘lembrar’ e do que presumimos ser nossas memórias
pessoais não experienciamos veramente”. Isso significa que o que
costumamos chamar de ‘memória’ não é necessariamente uma linha exata de
eventos que buscamos do passado, mas está, de fato, relacionado à
cognição, isto é, à habilidade de adquirirmos conhecimento.
Por outro lado, diferentemente da
memória, Maurice Halbwachs diz que “a história prontamente introduz, no
fluxo de fatos, simples demarcações fixadas para sempre”. Presumimos,
então, que ‘história’ e ‘memória’ não sejam equivalentes. Enquanto “a
história obedece a uma necessidade didática de esquematização”
(Halbwachs), “a memória é produzida por um indivíduo, mas sempre o é em
relação ao mundo cultural e interpessoal maior no qual tal indivíduo
vive” (Misztal).
A história precisa de comprovação
oficial, institucionalizada, como documentos e registros. Também é
verdade, no entanto, que o fato de ela precisar dos registros das coisas
não forçosamente a faz a maneira mais correta nem mais precisa de se
olhar para o passado. Tais registros sempre foram vulneráveis às agendas
políticas daqueles no poder.
A memória, entretanto, parece ser um
tanto mais livre de ligações políticas. Ela é “parte deste mundo
interminável do ser, de organizar-se e localizar-se em relação à
linguagem do universo cultural ao seu redor” (Prager citado por
Mistzal). A memória está conectada ao indivíduo e, assim, à sua
subjetividade, que pode moldar o passado de jeitos que não se encaixam
exatamente àqueles da história.
Um exemplo disso é dado por Barbara A.
Misztal quando cita o trabalho do psicólogo J. Prager a que ele se
refere como “síndrome da falsa memória” (Mistzal). Prager tinha uma
paciente. Sra. A, que dizia ter sido molestada quando criança e podia
muito bem dar detalhes de tal. Por fim se descobriu que ela nunca havia
sido vítima de abuso, mas que, na verdade, ela havia criado essa memória
a troco duma exposição massiva “à preocupação nacional [estadunidense]
com temas de abuso infantil” (Misztal).
O exemplo nos leva a duas conclusões. A
primeira é a que acabamos de mencionar quando dissemos que a memória
está conectada à subjetividade do indivíduo: a Sra. A nunca tinha sido
molestada, mas, até onde ela afirmaria, o contrário procedia. A segunda
conclusão é a de que a memória, embora mais conectada ao indivíduo, não
está completamente livre de outras influências: a Sra. A
individualmente gerou uma memória dentro dum contexto específico que não
estava em suas mãos – aquele da grande preocupação com o abuso
infantil.
Isso nos traz de volta à declaração de
Misztal de que “a memória é produzida[…]m relação ao mundo cultural e
interpessoal maior” e à de Prager quando diz que a memória é “parte
deste[…]trabalho de[…] organizar-se e localizar-se em relação à
linguagem do universo cultural ao seu redor”. A memória é, portanto, uma
convergência entre aquilo de que nos lembramos como indivíduos e
daquilo a que somos levados a nos lembrar como membros duma sociedade.
Esse raciocínio finalmente nos leva às ideias de embeddedness e embodiedness
(variações do termo ‘incorporação’: o primeiro no sentido de adicionar
algo a outro e o segundo de pôr em corpo). A memória, de acordo com
Misztal, está incorporada (embedded) a um certo contexto, “que
nos encoraja a prestar atenção à influência do presente na recuperação
do passado” (Mistztal) e está incorporada também (embodied) no
indivíduo, “que nos alerta sobre os caminhos pelos quais nossos
sentimentos e sensações corporais[…]nos ajudam a interpretar o passado”
(idem).
MEMÓRIA E FOTOGRAFIA
Em 2004, Sebastião Salgado falou na
Escola de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade da Califórnia em
Berkeley sobre o fotógrafo como ativista. No início da conversa, o
professor Ken Light, que era o anfitrião do evento, disse a Salgado, num
tom de confissão inconsciente, que: “Eu olho para estas fotos e me
sinto como se eu estivesse lá. Estou dentro da história, estou dentro de
suas vidas” (UCtelevision). Essa confissão, como ousamos chamá-la aqui,
mostra exatamente nosso ponto quando falamos sobre a relação entre
memória e fotografia, sobre a qual elaboraremos.
Marita Sturken argumenta que “a memória
parece residir dentro da imagem fotográifca, parece contar sua história
em resposta a nosso olhar”. Uma fotografia tem o poder de prender um só
momento no tempo e, mesmo assim, é justamente a incapacidade dum fluxo
contínuo de narração que a torna tão poderosa sobre a memória.
Especialmente em tempos de “nonstop imagery” (algo como
‘imagens sem fim’, ‘imagens sem pausa’), como Susan Sontag aponta, um
único quadro, uma única foto pode eternizar seu objeto.
Susan continua: “tratando-se de
relembrar, a fotografia tem o impacto mais profundo. Quadros congelados
de memória; sua unidade básica é a imagem única. Numa era de sobrecarga
de informação, a fotografia possibilita uma maneira rápida de
apreendermos algo numa forma compacta de relembrarmos”. A fotografia tem
sido, de acordo com Sontag, o meio mais efetivo de se mostrar e de se
contar sobre a vida daqueles de alhures. Isto é, de fato, a linha de seu
livro, intitulado Regarding the pain of others (‘Da dor dos
outros’, sem edição brasileira). Imagens do terror, do sofrimento nos
chegam de todos os lados; elas nos chocam, nos assombram e,
principalmente, nos lembram dum “sofrimento que é ultrajante, injusto e
deveria ser reparado. Elas confirmam que isso é o tipo de coisa que
acontece naquele lugar” (Sontag).
No entanto, não importa quão impactantes
essas fotografias possam ser, elas não são a memória em si, mas, sim,
“a tecnologia da memória, um mecanismo através do qual se pode construir
o passado e situá-lo no presente” (Sturken). A memória não reside,
portanto, dentro da imagem, mas é invocada e provocada por ela.
Como Sutken se refere a esse fenômeno, fotografias são ‘memórias-tela’ (“screen memories”) e são frequentemente usadas como substitutas da memória mesma, mas isso não quer dizer que eles sejam memórias.
Pois, apesar de não podermos “negar que a câmera ‘viu’ seu objeto, ‘que
ela esteve lá’” (idem), não olhamos simplesmente as imagens, mas através delas
e o que elas representam. Dessa forma, não podemos nos esquecer da
“presença mediadora da câmera” (ibidem), ou seja, o fato de que ela viu o
que representa, mas o que ela representa não se apresenta inteiramente e somente por sua representação. O que foi visto não está na imagem, mas pode ser visto pela a imagem.
Igualmente, o que vemos nas fotografias
não é objetivo; as memórias que elas criarão não são as mesmas para
todos os espectadores. Sontag explica: “[…]a imagem fotográfica, mesmo
pela extensão de ser um traço[…]não pode simplesmente ser uma
transparência de algo que se passou. Ela sempre é a imagem que alguém
escolheu; fotografar é enquadrar e enquadrar é excluir”.
Ao dizê-lo, Sontag endossa o papel ativo
do fotógrafo já que eles são aqueles que enquadram a ‘cena’ deste ou
daquele jeito. “Enquadrar”, diz Misztal em referência ao trabalho de
Ervin Goffman, “é o resultado do nosso desejo de organizar nossas
experiências em atividades significativas”. De acordo com ela, ao
enquadrarmos, determinamos o que é importante ser visto, o que deveria
ser visto. E, ao estipularmos o que é tal, chegamos à ideia de Sontag
sobre memória coletiva, ou ainda, à inexistência duma, rumo ao que ela
chama de ‘instrução coletiva’.
Para Sontag, não há tal coisa como
memória coletiva, há somente imagens – pois é delas de que Sontag trata
em seu livro – que constituem “aquilo sobre que a sociedade escolhe
pensar ou declara ter escolhido pensar” (Sontag). É isso que ela chama
de ‘memória‘ e, segue ela, “a longo prazo, [as fotografias se mostram]
ficção” (idem). As memórias podem, portanto, ser geradas com base em
certas fotografias que são preferidas a outras e que, além de terem sido
enquadradas numa maneira específica pelo indivíduo por atrás da câmera,
também serão filtradas por aqueles que as veem. Isso porque “as
intenções do fotógrafo não determinam o significado da fotografia, o
qual terá seu próprio destino, expressados por caprichos e lealdades das
diversas comunidades que fazem uso delas” (ibidem).
Os usos que podemos ter para essas
fotografias e as manerias pelas quais elas interferirão na memória são,
assim, resultados do contexto em que nós também estamos. As memórias não
existem no passado, elas têm de estar no presente para serem memórias,
elas são “maneiras pelas quais nós vemos o passado[…]e geralmente
combinam com o mapa comum do grupo sobre o mundo” (Misztal). Ou seja,
como se olham as fotografias e como se as transformam em memórias é
influenciado pelo cenário cultural.
OS ENQUADRAMENTOS DE SEBASTIÃO SALGADO
Sebastião Salgado nasceu em 1944 em
Aimorés, em Minas Gerais. Aos 16 anos, deixou sua cidade natal para
estudar Economia em Vitória e, então, até completar seu mestrado na
mesma área na USP. Pelos seus vinte e tantos anos, mudou-se para Paris
para começar seu doutorado e, alguns anos depois, mudou-se novamente,
então para Londres, para trabalhar como economista para a Organização
Internacional do Café.
Em suas frequentes viagens à África,
ainda como economista, em missões afiliadas ao Banco Mundial, ele
começou a conhecer as vidas daqueles que vivem em condições extremamente
pobres. Seus interesses começaram a repentinamente se afastar da
economia e se aproximar da fotografia. Decidido a largar sua antiga
profissão, dedicou-se inteiramente à sua primeira Leica – sua primeira
câmera – e trabalhou como jornalista autônomo antes de juntar-se a
algumas agências, o que culminou em 1979 quando se uniu à renomada
Magnum Photos, de Henri Cartier-Bresson. Desde que deixou a Magnum, em
1984, tem trabalhado em projetos independentes, o que o levou a criar
sua própria agência, chamada Amazonas Images, e a ter seu trabalho visto
por milhões de pessoas por todo o mundo.
Numa entrevista a uma revista brasileira
em 1997, Salgado disse: “Não trabalho com miséria, mas com as pessoas
mais pobres” (Sem Fronteiras). Seu trabalho se tornou conhecido
internacionalmente por suas linhas e pela beleza com que ele é capaz de
retratar o sofrimento, a fome e a guerra. E é justamente por isso, de
acordo com Susan Sontag, que as fotografias de Salgado têm sido
frequentemente alvo de críticas, pois embelezam o que é feio. Porém,
como Sontag declara ela mesma: “Tornar o tear do sofrimento maior, ao
globalizá-lo, pode cutucar as pessoas a sentir que devem ‘se importar’
mais”.
Para Sontag, “os cidadãos da
modernidade[…]são ensinados a serem cínicos quanto à possibilidade da
sinceridade”. Isto é, embora estejamos mais expostos a imagens de
pessoas sofrendo, aprendemos a nos acostumar a elas e a tratá-las como
algo inevitável, quase intrínseco à vida mesma. Nos tornamos dormentes. É
aí que a fotografia entra com a função que não seria geralmente
delegada a ela: a de chocar. Se olhamos só as fotos bonitas, tendemos a
alimentar uma ideia coletiva de que tudo vai bem (estreitando o espectro
pelo qual aprendemos sobre o mundo à fotografia especificamente).
Porém, se somos expostos ao que é feio e, mesmo assim, “belamente
composto”, como Sontag se refere ao trabalho de Salgado, somos
convidados a ter “uma resposta ativa” (Sontag). Fotografias como as de
Sebastião Salgado, portanto, nos chocam, nos assombram e nos atingem com
a súbita percepção de que tudo não vai bem.
A revista Sem Fronteiras, a que Salgado concedeu entrevista em 1997, introduz o fotógrafo assim:
“Encarando o trabalho como forma de militância, Sebastião Salgado tem preferência por temas sociais e só fotografa em preto-e-branco. Diz que é para concentrar a emoção e permitir que a imagem seja interpretada pelo que é. Também considera o envolvimento ideológico com o tema das reportagens fator fundamental em sua carreira”.
Em suas fotos, Salgado nos mostra a dor e
o sofrimento cotidianos de milhões de pessoas pelo mundo através de
poucos enquadramentos. Quão assombroso nos é perceber que nosso copo de
café ou de chá, nosso prato de comida ou qualquer dos muitos materiais
vindos do petróleo têm participação naquela dor e naquele sofrimento. Na
entrevista na Universidade da Califórnia em Berkeley, Fred Ritchin
disse que o trabalho de Salgado balança a “política do Ocidente de ajuda
a países pobres ao ponto de que o que era visto como uma ‘ajuda muita
altruísta e muito generosa’ é exposto ao fato de que nós estamos
envolvidos no apocalipse, nos desastres que caem sobre os outros.
Estamos envolvidos no processo inteiro das suas vidas assim como das
nossas vidas” (UCtelevision).
As fotografias de Sebastião Salgado funcionam como memento mori, “objetos de contemplação para aprofundar nosso senso de realidade” (Sontag). Ao olharmos suas fotos e vermos através
delas, temos um clarão da desigualdade e da miséria que nosso próprio
estilo de vida impõe sobre os outros. Suas fotos se enlinham para dentro
de nossa memória. É improvável que olhemos suas fotos e, então, as
esqueçamos e aquilo que representam. Essas fotografias nos lembram de
todos estamos “no mesmo mapa”, como diz Sontag, e acabam nos proibindo
de esquecermos que a dor está em todo lugar e que nós (todos) temos
participação nisso, dum jeito ou de outro.
SEBASTIÃO SALGADO: A DOR DOS OUTROS TAMBÉM É NOSSA*, pelo viés de Gianlluca Simi
gianllucasimi@gmail.com
*Este artigo é uma adaptação do trabalho de finalização da disciplina de Media Memories na Universidade de Nottingham (Reino Unido) em maio de 2011. O trabalho original (em inglês) pode ser acessado aqui.
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REFERÊNCIAS
HALBWACHS, M., 2007, ‘From collective memory’. In: Rossington, M., and Whitehead, A. ed. 2007, Theories of memory: a reader. Edinburgh: Edinburgh University Press. pp.139-143.MISZTAL, B. A., 2003, ‘The remembering process’. In: Misztal, B. A., 2003, Theories of social remembering. Berkshire: McGraw-Hill Education. Chapter 4.
SEM FRONTEIRAS, 1997, ‘Os excluídos na contraluz’, Sem Fronteiras, [online]. Available at
SONTAG, S., 2003, Regarding the pain of others. London: Penguin Books.
STURKEN, M., 1997, ‘Camera images and national meanings’. In: Sturken, M., 1997, Tangled memories: the Vietnam war, the AIDS epidemic, and the politics of remembering. Los Angeles: University of California Press. pp.19-43.
THE GUARDIAN, 2004, ‘Biography: Sebastião Salgado’, The Guardian, [online]. Disponível em
UCTELEVISION, 2008, Sebastião Salgado: the photographer as activist. [vídeo online] Disponível em
Todas as fotos publicadas aqui foram tiradas por Sebastião Salgado e pertencem à Amazonas Images. Elas estão disponíveis em
Fonte: O VIÉS
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