agosto 05, 2015

Jornalismo de Porta de Cadeia – Por Luis Carlos Valois (EMPÓRIO DO DIREITO)

PICICA: "A notícia, sempre uma mercadoria na sociedade capitalista, com a rapidez das comunicações, precisa ser imediata para valer mais, ter mais sabor, mesmo que a verdade se torne apenas um detalhe desprezível. É assim que nasce a relação entre muitos jornalistas e a polícia, entre os abutres que voam sobre a carcaça e os lobos que a guardam.

As pessoas não sabem, mas muitos jornalistas têm um contato íntimo com a polícia, pois é ela a responsável por lhes passar informações sobre mortes, estupros, latrocínios e toda essa gama de miséria que preenche cada página de jornal e cada vazio intelectual dessa comunicação que é tudo menos social.

O jornalismo policial anda pobre, vivendo como abutres sobre o cheiro de sangue, rodeando as delegacias, suplicando à polícia sobre informações acerca de mais um morto ou de mais um valor a ser destruído.

Dessa promíscua relação a polícia também tira proveito, pois pode filtrar cada informação, esconder o que não pode ser dito e dissimular o que é vil. Um proveito duvidoso, porque a polícia, ao enaltecer o seu próprio trabalho, às custas da miséria de um novo crime, oculta igualmente o que não era para ocultar, suas péssimas condições de trabalho, de salário e de vida."


Jornalismo de Porta de Cadeia – Por Luis Carlos Valois



Por Luis Carlos Valois - 04/08/2015


Todos sabemos, pela experiência, o quanto mais fácil é destruir do que construir. O mesmo se passa com os valores, e em todas sociedades decrépitas, quando já não se constrói mais nada, os valores também vão sendo abandonados, destruídos em nome de um sentimento de morte total.


Dizia CIORAN que “é pela afetividade que nos entregamos ao mundo dos valores, que projetamos vitalidade na categoria e nas normas”[1], e, portanto, em caminho contrário, destroem-se as normas – o que pode acontecer vulgarizando-as – para depois acabarem-se os valores, até a própria afetividade perecer e a sociedade morrer, findar, podendo ou não nascer outra desses restos.


A lei, que é ideologia, perde a capacidade de camuflar a barbárie em que todos vivemos, para restar tão somente o ódio e a destruição absolutos. Assim, “o homem já não vive na existência, mas na teoria da existência”[2], uma teoria fragilizada, incapaz de evitar o mais simples linchamento.


Dentro desse espectro de morte, surgem os abutres, que precisam fazer seus voos sobre as carcaças apodrecidas, arrancando-lhes os pedaços aos poucos. O vínculo entre dor, fome de dor, prazer pela dor e curiosidade pela dor, precisa ser noticiado, saboreado.


A notícia, sempre uma mercadoria na sociedade capitalista, com a rapidez das comunicações, precisa ser imediata para valer mais, ter mais sabor, mesmo que a verdade se torne apenas um detalhe desprezível. É assim que nasce a relação entre muitos jornalistas e a polícia, entre os abutres que voam sobre a carcaça e os lobos que a guardam.


As pessoas não sabem, mas muitos jornalistas têm um contato íntimo com a polícia, pois é ela a responsável por lhes passar informações sobre mortes, estupros, latrocínios e toda essa gama de miséria que preenche cada página de jornal e cada vazio intelectual dessa comunicação que é tudo menos social.


O jornalismo policial anda pobre, vivendo como abutres sobre o cheiro de sangue, rodeando as delegacias, suplicando à polícia sobre informações acerca de mais um morto ou de mais um valor a ser destruído.


Dessa promíscua relação a polícia também tira proveito, pois pode filtrar cada informação, esconder o que não pode ser dito e dissimular o que é vil. Um proveito duvidoso, porque a polícia, ao enaltecer o seu próprio trabalho, às custas da miséria de um novo crime, oculta igualmente o que não era para ocultar, suas péssimas condições de trabalho, de salário e de vida.


Policiais criam um círculo interno – também vicioso – de amizades, a ponto de quando “no local do crime, o policial tentar conduzir o fluxo de informações para os repórteres amigáveis, evitando o vazamento para outros que poderiam inclusive questionar a conduta policial”[3].


Há uma espécie de barganha entre policial e repórter, para que aquele consiga uma notícia favorável ao seu trabalho, em detrimento da verdade, da vida de pessoas e de valores construídos com muito custo – inclusive com mortes de bravos homens – em uma época na qual a sociedade ainda acreditava na sua condição mesma de sociedade.


Valores como presunção de inocência, devido processo legal, dignidade da pessoa humana, privacidade, nada importa em nome da notícia e do enaltecimento de mais uma morte-mercadoria-notícia.


Manchetes de jornal valem mais do que mil estatísticas. A culpa da criminalidade crescente recai naquele ser malvado apresentado pela polícia. E tudo isso por causa do prazer da notícia, que explora um voyeurismo macabro digno de uma sociedade em decomposição.


Ah, as vítimas. As vítimas se incluem em igual banquete. Na violência geral, a preocupação com elas, as vítimas de crimes, é uma preocupação com nós mesmos, porque as vítimas reais jazem no chão, cercadas por lentes de celulares de uma população sedenta, não tanto por notícia nesse caso, mas por fazer parte direta da destruição, a forma mais fácil de se sentir útil atualmente.


Em volta do crime, abutres e lobos, porque nada mais somos do que animais pretensiosos e arrogantes, fazem um pacto. Cada qual tem um pedaço do resto de humanidade que apodrece saborosamente no vazio de valores desse deserto devastador que nos circula.


Aos jornalistas que vivem mendigando notícias de policiais chamo de jornalistas de porta de cadeia, mas a sociedade toda tem se tornado em uma sociedade de porta de cadeia, à espreita de mais uma carcaça, porque a solidariedade, a compaixão, enfim, a afetividade, estão morrendo junto com os valores e as normas.



Notas e Referências:

[1] Breviário de decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, 144.

[2] Idem, p. 148.

[3] Tradução livre de: “At the scene of a criminal activity, police try to steer the flow of information to friendly reporters, and to avoid the release to others who might also look at the conduct of the police”. CRANK, John P. Understanding police culture, 2015, p. 72.


CIORAN, E. M. Breviário de decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.


CRANK, John P. Understanding police culture. Nova York, EUA: Routledge, 2015.


Valois
Luís Carlos Valois é Juiz da Vara de Execuções Penais do Amazonas, mestre e doutorando em Direito Penal pela Universidade de São Paulo, membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, membro da Associação de Juízes para a Democracia – AJD, e membro da Law EnforcementAgainstProhibition (Associação de Agentes da Lei contra a Proibição) – LEAP.
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Imagem Ilustrativa do Post: 20090727 king vulture wave // Foto de: schizoform // Sem alterações

Fonte: Empório do Direito

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