PICICA: "A notícia, sempre uma mercadoria na
sociedade capitalista, com a rapidez das comunicações, precisa ser
imediata para valer mais, ter mais sabor, mesmo que a verdade se torne
apenas um detalhe desprezível. É assim que nasce a relação entre muitos
jornalistas e a polícia, entre os abutres que voam sobre a carcaça e os
lobos que a guardam.
As pessoas não sabem, mas muitos
jornalistas têm um contato íntimo com a polícia, pois é ela a
responsável por lhes passar informações sobre mortes, estupros,
latrocínios e toda essa gama de miséria que preenche cada página de
jornal e cada vazio intelectual dessa comunicação que é tudo menos
social.
O jornalismo policial anda pobre,
vivendo como abutres sobre o cheiro de sangue, rodeando as delegacias,
suplicando à polícia sobre informações acerca de mais um morto ou de
mais um valor a ser destruído.
Dessa promíscua relação a polícia também
tira proveito, pois pode filtrar cada informação, esconder o que não
pode ser dito e dissimular o que é vil. Um proveito duvidoso, porque a
polícia, ao enaltecer o seu próprio trabalho, às custas da miséria de um
novo crime, oculta igualmente o que não era para ocultar, suas péssimas
condições de trabalho, de salário e de vida."
Jornalismo de Porta de Cadeia – Por Luis Carlos Valois
Por Luis Carlos Valois - 04/08/2015
Todos sabemos, pela experiência, o
quanto mais fácil é destruir do que construir. O mesmo se passa com os
valores, e em todas sociedades decrépitas, quando já não se constrói
mais nada, os valores também vão sendo abandonados, destruídos em nome
de um sentimento de morte total.
Dizia CIORAN que “é pela afetividade que nos entregamos ao mundo dos valores, que projetamos vitalidade na categoria e nas normas”[1],
e, portanto, em caminho contrário, destroem-se as normas – o que pode
acontecer vulgarizando-as – para depois acabarem-se os valores, até a
própria afetividade perecer e a sociedade morrer, findar, podendo ou não
nascer outra desses restos.
A lei, que é ideologia, perde a
capacidade de camuflar a barbárie em que todos vivemos, para restar tão
somente o ódio e a destruição absolutos. Assim, “o homem já não vive na existência, mas na teoria da existência”[2], uma teoria fragilizada, incapaz de evitar o mais simples linchamento.
Dentro desse espectro de morte, surgem
os abutres, que precisam fazer seus voos sobre as carcaças apodrecidas,
arrancando-lhes os pedaços aos poucos. O vínculo entre dor, fome de dor,
prazer pela dor e curiosidade pela dor, precisa ser noticiado,
saboreado.
A notícia, sempre uma mercadoria na
sociedade capitalista, com a rapidez das comunicações, precisa ser
imediata para valer mais, ter mais sabor, mesmo que a verdade se torne
apenas um detalhe desprezível. É assim que nasce a relação entre muitos
jornalistas e a polícia, entre os abutres que voam sobre a carcaça e os
lobos que a guardam.
As pessoas não sabem, mas muitos
jornalistas têm um contato íntimo com a polícia, pois é ela a
responsável por lhes passar informações sobre mortes, estupros,
latrocínios e toda essa gama de miséria que preenche cada página de
jornal e cada vazio intelectual dessa comunicação que é tudo menos
social.
O jornalismo policial anda pobre,
vivendo como abutres sobre o cheiro de sangue, rodeando as delegacias,
suplicando à polícia sobre informações acerca de mais um morto ou de
mais um valor a ser destruído.
Dessa promíscua relação a polícia também
tira proveito, pois pode filtrar cada informação, esconder o que não
pode ser dito e dissimular o que é vil. Um proveito duvidoso, porque a
polícia, ao enaltecer o seu próprio trabalho, às custas da miséria de um
novo crime, oculta igualmente o que não era para ocultar, suas péssimas
condições de trabalho, de salário e de vida.
Policiais criam um círculo interno – também vicioso – de amizades, a ponto de quando “no
local do crime, o policial tentar conduzir o fluxo de informações para
os repórteres amigáveis, evitando o vazamento para outros que poderiam
inclusive questionar a conduta policial”[3].
Há uma espécie de barganha entre
policial e repórter, para que aquele consiga uma notícia favorável ao
seu trabalho, em detrimento da verdade, da vida de pessoas e de valores
construídos com muito custo – inclusive com mortes de bravos homens – em
uma época na qual a sociedade ainda acreditava na sua condição mesma de
sociedade.
Valores como presunção de inocência,
devido processo legal, dignidade da pessoa humana, privacidade, nada
importa em nome da notícia e do enaltecimento de mais uma
morte-mercadoria-notícia.
Manchetes de jornal valem mais do que
mil estatísticas. A culpa da criminalidade crescente recai naquele ser
malvado apresentado pela polícia. E tudo isso por causa do prazer da
notícia, que explora um voyeurismo macabro digno de uma sociedade em decomposição.
Ah, as vítimas. As vítimas se incluem em
igual banquete. Na violência geral, a preocupação com elas, as vítimas
de crimes, é uma preocupação com nós mesmos, porque as vítimas reais
jazem no chão, cercadas por lentes de celulares de uma população
sedenta, não tanto por notícia nesse caso, mas por fazer parte direta da
destruição, a forma mais fácil de se sentir útil atualmente.
Em volta do crime, abutres e lobos,
porque nada mais somos do que animais pretensiosos e arrogantes, fazem
um pacto. Cada qual tem um pedaço do resto de humanidade que apodrece
saborosamente no vazio de valores desse deserto devastador que nos
circula.
Aos jornalistas que vivem mendigando
notícias de policiais chamo de jornalistas de porta de cadeia, mas a
sociedade toda tem se tornado em uma sociedade de porta de cadeia, à
espreita de mais uma carcaça, porque a solidariedade, a compaixão,
enfim, a afetividade, estão morrendo junto com os valores e as normas.
Notas e Referências:
[1] Breviário de decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, 144.
[2] Idem, p. 148.
[3] Tradução livre de: “At the scene of a criminal activity, police try to steer the flow of information to friendly reporters, and to avoid the release to others who might also look at the conduct of the police”. CRANK, John P. Understanding police culture, 2015, p. 72.
CIORAN, E. M. Breviário de decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
CRANK, John P. Understanding police culture. Nova York, EUA: Routledge, 2015.
Luís Carlos Valois é Juiz da
Vara de Execuções Penais do Amazonas, mestre e doutorando em Direito
Penal pela Universidade de São Paulo, membro do Conselho Nacional de
Política Criminal e Penitenciária, membro da Associação de Juízes para a
Democracia – AJD, e membro da Law EnforcementAgainstProhibition
(Associação de Agentes da Lei contra a Proibição) – LEAP.
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Imagem Ilustrativa do Post: 20090727 king vulture wave // Foto de: schizoform // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/schizoform/3839652417/
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Fonte: Empório do Direito
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