PICICA: "O lobo do mar de signos estanques,
aparentemente lançados à revelia, mas cuja cola é a erudição, está de
volta. Do alto dos seus oitenta e cinco anos, Jean-Luc Godard lança
“Adeus à Linguagem”, um misto de todas as abordagens de outros de seus
filmes. Versa sobre liberdade, democracia, política social e econômica,
sociedade e Estado, História Filosofia etc… tudo isso costurado pelo
tema central: linguagens."
Adeus à Linguagem
Adeus à Linguagem (Adieu au Langage). (Drama); Elenco: Héloïse Godet, Kamel Abdeli, Richard Chevalier, Zoé Bruneau, Christian Gregori; Direção: Jean-Luc Godard; Suíça/França, 2014. 70 Min.
“Eu não vim para explicar, eu vim para confundir”
(Abelardo Barbosa – Chacrinha)
Introdução:
O lobo do mar de signos estanques,
aparentemente lançados à revelia, mas cuja cola é a erudição, está de
volta. Do alto dos seus oitenta e cinco anos, Jean-Luc Godard lança
“Adeus à Linguagem”, um misto de todas as abordagens de outros de seus
filmes. Versa sobre liberdade, democracia, política social e econômica,
sociedade e Estado, História Filosofia etc… tudo isso costurado pelo
tema central: linguagens.
Godard fala do acordo/convenção que as
linguagens representam desconstruindo seu conceito e misturando, para
variar, todas elas: a literatura, a música, a pintura e a
cinematografia. Divide esta empreitada em três partes que se sobrepõem: a
natureza, a metáfora e a linguagem. Em seguida a decompõe – a natureza 1
e 2; a metáfora 1 e 2; Adeus e Ah! Deus; e linguagem e Ah! linguagem –
Mas esta brincadeira não fica por aí. Na linguagem cinematográfica
Godard subverte a modalidade 3D, decompõe e justapõe o 3D (que já são
imagens sobrepostas para dar o efeito de profundidade) traçando o grande
mote da obra: os modos de ver. E é , possivelmente, sobre isso que
Godard versa: O que vemos, o que não vemos e as diversas formas de ver,
da literatura à cinematografia.
Para fundamentar as considerações aqui
postas, sem dar a sensação de “viagem”, já que as obras de Jean-Luc
Godard são abertas e passíveis de um mundo de ilações e fabulações, a
estrutura textual passa pelo cineasta e o conceito de linguagem em sua
filmografia, pelas possíveis conexões dos signos em “Adeus à linguagem”,
como uma das possibilidades de ver, entender/assimilar seu contexto e
as considerações finais.
Sobre Godard e a linguagem:
“A linguagem é rei no nosso pobre
país, é quem fala, quem realmente comanda. E ela, apenas ela, com a sua
percepção que faz as coisas se moverem” (Detetive – 1985)
A linguagem sempre foi tema recorrente na filmografia de Godard. Em “Alphaville”
(1965) a versação é sobre o poder que se exerce sobre o outro através
da supressão da linguagem. O cineasta faz um passeio pelas
várias linguagens: os quadrinhos, o muralismo, as artes plásticas, o
cinema, a literatura; e se detém na censura à poesia e ao seu poder de
mobilidade linguística, que é o ponto nevrálgico do longa. Em “Duas ou
Três Coisas que Eu Sei Dela” (1967), Godard afirma: “Dizem que os
limites da linguagem são os limites do mundo, os limites da minha
linguagem são os limites do meu mundo. E quando eu falo eu limito o
mundo, eu concluo isso. E num inevitável e misterioso dia a morte virá e
vai eliminar esses limites e não haverá mais perguntas ou respostas,
tudo se tornará uma sombra. Mas se houver uma chance das coisas se
tornarem focalizadas novamente, isso poderá ser feito com o advento da
consciência. Tudo seguirá a partir daí”. As reflexões sobre a(s)
linguagem(s) e os limites dela(s) sempre foram alvo nos filmes de Godard
juntamente com a forma de abordagem e os assuntos (política, guerra,
amor, sociedade etc…). Em ” Nossa Música” (2004) a arbitrariedade da
linguagem é dada a partir do próprio arcabouço da obra: a literatura – a
divina comédia de Dante Alighieri – e é posta em discussão: “Dizem que a linguagem faz um recorte arbitrário dos objetos na realidade”. Em“La chinoise”(1967) Godard fala sobre a palavra e sua mutabilidade “Eu
queria ser cego, porque para falarmos melhor um com o outro
prestaríamos mais atenção, usaríamos a linguagem de forma diferente. Em
dois mil anos as palavras mudaram de significado. Então, conversaríamos
mais seriamente um com o outro, isso significa que enfim os significados
mudariam as palavras…sim, é verdade…falar como se as palavras fossem só
som e matéria…e são”. Godard sempre questionou a convenção da linguagem: “Foi
como se descobríssemos a origem da linguagem…sabia que antes que ela se
formasse na Suméria para se falar do passado usava-se a palavra
‘depois’ e para se falar do futuro usava-se a palavra ‘antes’? (Nossa
Música – 2004).
Sobre a linguagem cinematográfica, neste
mesmo longa (Nossa Música- 2004) Godard (ele mesmo), dá uma palestra
sobre a ‘leitura’ da imagem em filmes, e diz: “O princípio do cinema é ir até à luz e aponta-la para nossa escuridão” e aí temos a primeira semente do poder da tecnologia na pergunta de uma aluna…“As câmeras digitais poderão salvar o cinema?… O
silêncio é proposital e cavalar, possivelmente, respondido agora com
“Adeus à Linguagem”. Ainda sobre o cinema, no filme “Pra sempre Mozart”
(1986) que, ao contrário do que se possa imaginar não é sobre musica, é
um filme sobre fazer um filme, Godard Diz: ” O cinema substitui o nosso olhar por um mundo que corresponde aos nossos desejos “.
O cineasta do também, (que se desenha como um lugar privilegiado em que
se pode entender de tudo e mais alguma coisa, de acordo com as redes de
conhecimentos de cada um, em conformidade com o rastro de signos) se
confessa assim quando diz sobre sua própria obra, que metaforiza toda a
sua filmografia, em “Masculino-Feminino” (1966) “Este filme poderia se chamar os filhos de Marx ou da Coca-Cola, entendam como quiserem”.
Quanto à literatura – outra linguagem
bastante usada na filmografia de Godard – possivelmente, ninguém tenha
ousado mais que ele: Racine, Rilke, Solzhenitsyn, Balzac e tantos outros
que fizeram a costura, em texto, do que ele queria dizer com a imagem. E
com isso, selecionava/seleciona público no aprofundamento do
entendimento do que se quer dizer.
Quanto à pintura, sempre expõe quadros de
pintores importantes para suas épocas, e usa suas obras para dizer de
um tempo, de uma política ou de qualquer outro aspecto de abordagem que
desejasse, por exemplo, em “Film Socialism” (2010) questionando o
capitalismo e os valores monetários a que um quadro poderia chegar, e a
essência das coisas, põe um menino com um quadro de Renoir no colo,
retocando, completando, remendando Renoir, e ainda diz: “O idiota não viu tantas coisas”.
Em suma, Godard sempre se questionou
sobre linguagens de uma forma geral. Logo, não é surpresa que faça um
filme que se dedique exclusivamente a elas e que seja seu tema
principal.
Sobre “Adeus à Linguagem” (Contém Spoilers)
“Tudo o que vemos é o abismo, uma
névoa que nos impede de ver mais longe. A esse ponto do quadrículo, não
pintamos o que vemos porque não vemos nada, nem o que podemos ver.
Porque não temos que pintar só o que vemos, mas a pintura que não vemos”
(Claude Monet – In: Adeus à linguagem)
A palavra mágica de “Adeus à Linguagem” é
sobreposição. A sobreposição de assuntos, de diálogos, de sons, de
pintura com imagem em movimento e de imagens entre si. Assim como em
“Acossado” (1959) em que Godard quebra a linguagem cinematográfica
inovando na maneira de filmar, na edição, na continuidade, na forma de
encenação, na inserção de contextos antropológicos e de cotidiano, para
além da história contada, inaugurando o movimento Nouvelle Vague; em
“Adieu au Langage” (no original) ele continua sua forma de abordagem de
assuntos, tendo como tema central diretamente as linguagens, seu
conceito, sua convenção, sua aceitação, seu limite, seus usos e sua
ruptura. E é aí que Godard dá um banho e inova pela segunda vez. Ele
brinca com a modalidade 3D e desconstrói o conceito de linguagem como
uma convenção. Godard sobrepõe duas cenas inteiras em movimento e outras
duas estáticas, obrigando o espectador a ver com um olho de cada vez, e
para cada olho uma cena diferente. Com os dois olhos abertos não vemos,
não é legível (simplesmente, bárbaro!). São cenas que se completam e
que se correspondem, desvinculadas, decompostas na modalidade
tridimensional. E essa divagação imagética e filosófica, nos remete a
tantos diálogos e citações de Daguerre em sua filmografia sobre a parte e
o todo. De que não existe todo sem a parte, mas que cada parte contem o
todo. Ele mantém essa reflexão sem discurso…somente na imagem, rompendo
com uma convenção tecnológica de linguagem, sobrepondo imagens
sobrepostas em sua origem e decompondo-as em duas diferentes ( em 2D
só é possível ver uma das cenas, a outra é só audível, por isso sua
exigência de que se veja em 3D).
Nesse turbilhão de querências de dizeres Godard
junta tudo o que já disse em outros filmes e joga em “Adeus à
linguagem”. O longa inteiro é entrecortado com uma aquarela enegrecida
que vai se expandindo e mostra outras cores ao final; entrecortado
também pelo barulho de água (um signo permanente em todos os seus
filmes), água em todos os seus usos, o da banheira, o do chuveiro, o do
rio, o da cachoeira , o do mar, que lava a aquarela, que lava as mãos,
que leva o cão e que se comunica, sem que saibamos seu código: “E a
agua lhe falou com uma voz profunda e grave. Assim Roxi [o cachorro] se
pôs a pensar. Esta tratando de falar comigo e tem tentado falar conosco
através do tempo. Dialogando com ela mesma quando não havia nada para
escutar. Portanto, sempre se tratando de comunicar suas notícias aos
demais. Alguns deles uma certa verdade do rio. O rio segue sendo,
dormindo em uma mesa de sonho. Vemos que não é melhor de como se vê a si
mesmo. Aqui já é o rio. Mas, lá não se pode ver mais”. Godard monetiza (dá
tons de Monet ) na natureza mostrada – que é o mundo do índio apache –
que é diferente do nosso, pelo seu modo diferente de ver. A sociedade e o
Estado representados por um homem e uma mulher, que no banheiro são,
apenas, um homem e uma mulher. Um cão que se comunica, é entendido e
entende, mesmo que esta comunicação não tenha código específico. As
inserções de assuntos que são todos dependentes de convenções são feitos
pelos teóricos abordados: Alexander Solzhenitsyn, Vladimir Zworykin
-pioneiro da tecnologia da televisão, que não por acaso passeia toda a
película como uma linguagem contido dentro da linguagem cinematográfica e
que dialoga com a cena e termina sem sinal e com duas cadeiras vazias –
Nicolau Maquiavel, Cardeal Richilieu, Otto Von Bismark. Tudo isso para
se falar de politica, do estado, de absolutismo e de acordos e contratos
que foram ultrapassados pelo tempo. O polegar opositor que deixou de
ser marcador de evolução, mas que evolui em seu uso mostrando que as
coisas não estão paradas, estão em movimento, e por aí vai.
Godard ainda convida-nos a refletir sobre
a produção de um conceito ( a linguagem é um conceito cuja
matéria-prima é a formação de conceitos). E insere ruídos na
comunicação: o grasnar de pássaros, os sons do cotidiano, diálogos
sobrepostos sobre assuntos diferentes, retira legendas de algumas falas e
nem a linguagem matemática escapa: a teoria de Bernhard Riehmann – a
dos zeros não-triviais – está lá. A linguagem dos corpos na natureza é
um capítulo á parte. A apresentação da possibilidade de igualdade é dada
no banheiro, local onde as conversas sinceras fervem, e onde somos nós
mesmos despidos de todos os personagens que nos são impostos.
A literatura é inserida com as citações
de Lord Byron e Mary Shelley, respectivamente poeta inglês e a autora de
“Frankstein” que faz uma metáfora da linguagem como uma construção de
vários pedaços de coisas e que podem ser subvertidos, a escrita range.
Depois de dizer que está em busca da pobreza da linguagem, divagar
sobre deus, quebrar a modalidade 3D do cinema moderno, Godard termina
seu longa com o balbucio de uma criança e o ganido de Roxy. Quem disse
que isso não é linguagem? Se até a matemática, que é ciência exata, tem
sua possibilidades de se volatilizar em seus conceitos, quem somos nós
para não alargarmos os limites da linguagem? A construção do arcabouço
do mais recente filme de Godard é feito de perguntas. Não por acaso a
força-motriz do mundo.
Considerações finais:
“Eu vou em busca da pobreza da linguagem” (Adeus à linguagem)
“Adeus à linguagem” recebeu o prêmio do
Juri do festival de Cannes 2014 e melhor filme da Associação Nacional
de Críticos (USA). E o responsável técnico pela façanha do 3D foi
Fabrice Aragno do documentário “Luchando Frijoles – Cuba de Um Dia a
Outro” (1997) e ficou em terceiro lugar no prêmio do Camerimage (2014).
Nos filmes de Jean-Luc Godard, na maioria
das vezes, o que menos importa é a história (vício ao qual estamos
acostumados) e sim o que há nas entrelinhas, ditos pelos livros, a
história de seus autores, as citações, os efeitos de câmera – no bloco
da linguagem Godard põe uma cena inteira de cabeça para baixo, que é a
nossa forma original de enxergar – sons estridentes e dissonâncias. O
nome de Godard é dissonância – de cores, de sons, de atuação, de
contexto e condução de um tema.
A subversão de Godard é epistemológica
quando aventa a possibilidade da linguagem estar para além das
convenções. Quando Godard suprime a legenda, seleciona quem conhece o
código, mas diz para quem não conhece que é possível entender
pela interação de outros códigos: a leitura corporal, a entonação, a
expressão, a trilha sonora, os sons ambientes, os silêncios ( a película
é repleta de silêncios), que estão na cena. Godard nos diz que o acordo
da linguagem é pobre, frágil, quebrável e põe Wittgeinstein e Bakhtin
na geladeira. E que existe algo muito maior que não entrou na conta, e
que comunica do mesmo jeito, que não é blindado por um código e não tem
convenção fechada, e que temos condições de driblar o instituído. Nada
está pronto, fechado e estanque, tudo é devir e está esperando para se
desconstruído, basta termos olhos de ver, ouvidos de ouvir e sensores de
sentir. Brilhante!
Filmografia:
Alphaville – Jean-Luc Godard (1965)
Masculino-Feminino JLG (1966)
Duas ou Três Coisas que Eu Sei Dela – JLG (1967)
A Chinesa – JLG (1967)
Detetive – JLG (1985)
Para Sempre Mozart – JLG (1986)
Nossa Música – JLG (2004)
Filme Socialismo – JLG (2010)
About Sonia Rocha
Editora do Blog Cinema e Movimento, crítica cinematográfica, professora de filosofia e história, mestranda em educação (ProPed/UERJ) e pesquisadora de cinema e educação (UERJ)
Fonte: Cinema & Movimento
Nenhum comentário:
Postar um comentário