março 09, 2016

Devir-Mulher, por Rafael Trindade (RAZÃO DESNECESSÁRIA)

PICICA: "Se todos os devires se efetivam por devir minoritário, a mulher é certamente o melhor porto de partida. Minorias que estão em maior número: trágico ou desafiador? “Todos os devires começam e passam pelo devir-mulher. É a chave dos outros devires” (D&G, Mil Platôs 4). Deleuze e Guattari dão ao devir-mulher as maiores honras e fazem dele um dos mais importantes. Não se entra em devir sem antes passar pelo devir-mulher." 


Os homens eram todos iguais. Só as mulheres podiam aceder à diferença” – Valter Hugo Mãe, O Filho de Mil Homens
Se todos os devires se efetivam por devir minoritário, a mulher é certamente o melhor porto de partida. Minorias que estão em maior número: trágico ou desafiador? “Todos os devires começam e passam pelo devir-mulher. É a chave dos outros devires” (D&G, Mil Platôs 4). Deleuze e Guattari dão ao devir-mulher as maiores honras e fazem dele um dos mais importantes. Não se entra em devir sem antes passar pelo devir-mulher.

Mas antes façamos uma breve visita ao Homem, que não tem devir. O homem não entra em devir porque ele é um modelo fixo que procura modelar e territorializar todas as outras forças que o circundam. Para a forma homem, tudo está em segundo plano, tudo veio depois dele. A mulher veio de sua costela, a criança é um homem em formação, o animal é um ser irracional que deve ser domesticado. O homem quer colocar o mundo aos seus pés, ele está fixado em um plano molar de existência, vive no mundo das ideias.

O homem procura subordinar a forma mulher, já a mulher, faz variar a forma homem. O devir-mulher abala as estruturas do ser homem, por isso a linha molar traça um plano definido de modelos dominantes: homem, branco, adulto, racional, heterossexual, trabalhador, ocidental. Cada vez mais fixo, cada vez mais poder, cada vez menos espaço para o fora, o indefinido, a vida. Deleuze e Guattari definem o devir-mulher como a chave para todos os outros devires, ela é a porta de entrada para qualquer devir minotirário, a mulher é a primeira a desterritorializar o homem e fazer fugir suas formas binárias e hierárquicas.

Entrar em devir não é imitar! Diremos isso mil vezes. Um homem pode colocar um vestido e nada mudar, se ficamos neste plano ainda estaremos tratando de imagens e não é isso que queremos. Entrar em devir não é capturar o outro, isso já fazemos cotidianamente: em vez de entender, procuramos engolir e digerir, incluir perversamente. Uma mulher não tira seu devir-mulher das forças molares que a constituem, não se aprende em uma cartilha da boa esposa ou da boa dona de casa.

O devir trata-se de uma dupla captura, as moléculas de meu corpo entram em uma zona de vizinhança de outro corpo, começar a girar mais rápido e entram em variação. A força de um devir está no que passa entre, no que escorre destas determinações de poder. O devir-mulher contamina a forma homem e também a forma mulher. Aceleração, velocidade, fluxos, o devir não se faz diante de nossos olhos, mas em nossos corpos.

- por Alexandra Levasseur
– por Alexandra Levasseur

O que aterroriza nossa sociedade? O que mais ela procura negar? Fluxos descodificados, tolerância com o que não entende, mas só até certo ponto, depois disso, disciplina e controle. O devir-mulher é a potência do múltiplo, é a força que faz variar, o mistério do indefinível. Freud disse não haver entendido as mulheres, mas é porque embaixo de uma casca masculina e feminina escondem-se forças que simplesmente não podem ser dominadas, e nem podem ser compreendidas porque são forças de criação.

Existe um feminino codificado, que se deixa dominar tanto quanto o masculino codificado, e existem forças femininas que são pura desestabilização da identidade! Por isso o devir só pode ser feminino. Adeus mãe, adeus pai, adeus filho. A devir-mulher são as linhas de fuga que escapam pelas fissuras de uma sociedade que foi pensada pelos homens e para os homens.

A mulher racha todos os modelos para abrir caminhos novos, novas subjetividades não capturadas. Isso é importante: partir de moléculas femininas -> criar linhas de fuga -> desfazer codificações e sobrecodificações -> criar movimentos e afetos. É preciso saber jogar, é preciso uma nova suavidade, é preciso ser malandro. O cristianismo diz: a mulher veio da costela do homem, o patriarcado diz: a mulher deve respeitar o homem, Estado diz: a mulher deve trabalhar (recebendo menos) e fazer dupla jornada. Para tudo isso o devir-mulher responde: mas eu ainda não tive a chance de experimentar quem eu sou, vocês me interpretaram demais e não me deixaram experimentar.

Isso é imprescindível também para o homem. Claro, o homem também precisa entrar em devir mulher: ser chefe? ser pai? ser uma autoridade? ser reconhecido? O que quer o devir-mulher que há em todo homem? Romper com os jogos essencialistas de identidades atadas. Encontrar o que em mim há de feminino, quais potências em meu corpo se afirmam em um devir-mulher, essa potência é muito mais efetiva do que a forma mulher, que impede os homens de juntarem forças nesta empreitada. Encontrar onde estão as forças de afirmação, não as formas de reconhecimento. Atuar no molecular, não no molar. O devir-mulher escorrega das teias do poder, sai do mundo das ideias e toca o chão. A mulher dança para escapar do poder pelo puro prazer do movimento.

Claro, toda luta se faz com forças de criação e conservação, é preciso entrar em devir sem se desfazer, é preciso prudência. Por isso um devir-mulher não pode simplesmente abandonar as lutas por direitos. Mesmo que vinculado ao Estado, as lutas por reconhecimento são importantes. O que elas não podem é se tornar a única bandeira de luta, porque assim correm o risco de se tornarem ressentidas. Devir mulher é se afastar do homem na questão da não efetuação, mas é importantíssimo aproximar-se em direitos, tomando sempre o cuidado de não cair em uma armadilha: afastar-se quando necessário para retomar a capacidade de diferir de si mesmo.

Nesse sentido, podemos dizer: Sim, conscientização do câncer de mama, sim, delegacia da mulher, mas não se pode parar em direitos concedidos pelo poder. Onde está o direito de criar valores? Para isso é necessário fazer subir a força de uma feminilidade criativa. O feminismo se torna ressentido quando passa a usar as mesmas armas de seus opressores e perde-se em seu campo de batalha, não queremos estar ao lado daqueles que nos oprimiram, mas buscar lugares novos, onde eles ainda não chegaram, encontrar um mundo de intensidades puras.

Onde está o corpo feminino? Não sabemos, ele foi definido por homens. Onde está a essência feminina? É isso que estamos tentando dizer, ela não existe, ela tentou ser definida por homens, mas a mulher abre espaço para o fora, o indefinível, o devir. A mulher não é um fim em si, ela é, usando uma analogia de Nietzsche, uma corda estendida, entre o sedentário e o nômade, entre o homem e o desconhecido. Um horizonte que se abre para todos os outros devires minoritários. O devir-mulher é primeiro, ele dá início à resistência de uma forma homem que fecha os fluxos de experimentação. Nasce um corpo nômade aberto à variação, que se recusa a ficar no mesmo lugar e buscar uma forma definida.

Emitir partículas de microfeminilidades, longe da máquina dual que se opõe ao homem, isso todos nós podemos; produzir uma mulher molecular, totalmente nova e desconhecida, isso todos nós podemos; conquistar um corpo novo, uma história nova, afetos novos, isso todos nós podemos; mas para esta importante tarefa é imprescindível, felizmente, devir-mulher.

- por Alexandra Levasseur
– por Alexandra Levasseur

Admirava a liberdade que tinham para a expressão da sensibilidade, achava que era como uma permissão para ter a alma à solta, autorizada a manifestar-se pela beleza ou pelo espanto de cada coisa. Estava autorizada à sensibilidade que fazia da vida uma travessia mais intensa. As mulheres, pensava ele, eram mais intensas” – Valter Hugo Mãe, O Filho de Mil Homens
> Texto da série: Ética dos Devires <

Fonte: RAZÃO INADEQUADA

Nenhum comentário: