PICICA: "Se todos os devires se efetivam por devir
minoritário, a mulher é certamente o melhor porto de partida. Minorias
que estão em maior número: trágico ou desafiador? “Todos os devires começam e passam pelo devir-mulher. É a chave dos outros devires”
(D&G, Mil Platôs 4). Deleuze e Guattari dão ao devir-mulher as
maiores honras e fazem dele um dos mais importantes. Não se entra em
devir sem antes passar pelo devir-mulher."
“Os homens eram todos iguais. Só as mulheres podiam aceder à diferença” – Valter Hugo Mãe, O Filho de Mil Homens
Se todos os devires se efetivam por devir
minoritário, a mulher é certamente o melhor porto de partida. Minorias
que estão em maior número: trágico ou desafiador? “Todos os devires começam e passam pelo devir-mulher. É a chave dos outros devires”
(D&G, Mil Platôs 4). Deleuze e Guattari dão ao devir-mulher as
maiores honras e fazem dele um dos mais importantes. Não se entra em
devir sem antes passar pelo devir-mulher.
Mas antes façamos uma breve visita ao
Homem, que não tem devir. O homem não entra em devir porque ele é um
modelo fixo que procura modelar e territorializar todas as outras forças
que o circundam. Para a forma homem, tudo está em segundo plano, tudo
veio depois dele. A mulher veio de sua costela, a criança é um homem em
formação, o animal é um ser irracional que deve ser domesticado. O homem
quer colocar o mundo aos seus pés, ele está fixado em um plano molar de
existência, vive no mundo das ideias.
O homem procura subordinar a forma
mulher, já a mulher, faz variar a forma homem. O devir-mulher abala as
estruturas do ser homem, por isso a linha molar traça um plano definido
de modelos dominantes: homem, branco, adulto, racional, heterossexual,
trabalhador, ocidental. Cada vez mais fixo, cada vez mais poder, cada
vez menos espaço para o fora, o indefinido, a vida. Deleuze e Guattari
definem o devir-mulher como a chave para todos os outros devires, ela é a
porta de entrada para qualquer devir minotirário, a mulher é a primeira
a desterritorializar o homem e fazer fugir suas formas binárias e
hierárquicas.
Entrar em devir não é imitar! Diremos
isso mil vezes. Um homem pode colocar um vestido e nada mudar, se
ficamos neste plano ainda estaremos tratando de imagens e não é isso que
queremos. Entrar em devir não é capturar o outro, isso já fazemos
cotidianamente: em vez de entender, procuramos engolir e digerir,
incluir perversamente. Uma mulher não tira seu devir-mulher das forças
molares que a constituem, não se aprende em uma cartilha da boa esposa
ou da boa dona de casa.
O devir trata-se de uma dupla captura, as
moléculas de meu corpo entram em uma zona de vizinhança de outro corpo,
começar a girar mais rápido e entram em variação. A força de um devir
está no que passa entre, no que escorre destas determinações de poder. O
devir-mulher contamina a forma homem e também a forma mulher.
Aceleração, velocidade, fluxos, o devir não se faz diante de nossos
olhos, mas em nossos corpos.
O que aterroriza nossa sociedade? O que
mais ela procura negar? Fluxos descodificados, tolerância com o que não
entende, mas só até certo ponto, depois disso, disciplina e controle. O
devir-mulher é a potência do múltiplo, é a força que faz variar, o
mistério do indefinível. Freud disse não haver entendido as mulheres,
mas é porque embaixo de uma casca masculina e feminina escondem-se
forças que simplesmente não podem ser dominadas, e nem podem ser
compreendidas porque são forças de criação.
Existe um feminino codificado, que se
deixa dominar tanto quanto o masculino codificado, e existem forças
femininas que são pura desestabilização da identidade! Por isso o devir
só pode ser feminino. Adeus mãe, adeus pai, adeus filho. A devir-mulher
são as linhas de fuga que escapam pelas fissuras de uma sociedade que
foi pensada pelos homens e para os homens.
A mulher racha todos os modelos para
abrir caminhos novos, novas subjetividades não capturadas. Isso é
importante: partir de moléculas femininas -> criar linhas de fuga
-> desfazer codificações e sobrecodificações -> criar movimentos e
afetos. É preciso saber jogar, é preciso uma nova suavidade,
é preciso ser malandro. O cristianismo diz: a mulher veio da costela do
homem, o patriarcado diz: a mulher deve respeitar o homem, Estado diz: a
mulher deve trabalhar (recebendo menos) e fazer dupla jornada. Para
tudo isso o devir-mulher responde: mas eu ainda não tive a chance de
experimentar quem eu sou, vocês me interpretaram demais e não me
deixaram experimentar.
Isso é imprescindível também para o
homem. Claro, o homem também precisa entrar em devir mulher: ser chefe?
ser pai? ser uma autoridade? ser reconhecido? O que quer o devir-mulher
que há em todo homem? Romper com os jogos essencialistas de identidades
atadas. Encontrar o que em mim há de feminino, quais potências em meu
corpo se afirmam em um devir-mulher, essa potência é muito mais efetiva
do que a forma mulher, que impede os homens de juntarem forças nesta
empreitada. Encontrar onde estão as forças de afirmação, não as formas
de reconhecimento. Atuar no molecular, não no molar. O devir-mulher
escorrega das teias do poder, sai do mundo das ideias e toca o chão. A
mulher dança para escapar do poder pelo puro prazer do movimento.
Claro, toda luta se faz com forças de
criação e conservação, é preciso entrar em devir sem se desfazer, é
preciso prudência. Por isso um devir-mulher não pode simplesmente
abandonar as lutas por direitos. Mesmo que vinculado ao Estado, as lutas
por reconhecimento são importantes. O que elas não podem é se tornar a
única bandeira de luta, porque assim correm o risco de se tornarem
ressentidas. Devir mulher é se afastar do homem na questão da não
efetuação, mas é importantíssimo aproximar-se em direitos, tomando
sempre o cuidado de não cair em uma armadilha: afastar-se quando
necessário para retomar a capacidade de diferir de si mesmo.
Nesse sentido, podemos dizer: Sim,
conscientização do câncer de mama, sim, delegacia da mulher, mas não se
pode parar em direitos concedidos pelo poder. Onde está o direito de
criar valores? Para isso é necessário fazer subir a força de uma
feminilidade criativa. O feminismo se torna ressentido quando passa a
usar as mesmas armas de seus opressores e perde-se em seu campo de
batalha, não queremos estar ao lado daqueles que nos oprimiram, mas
buscar lugares novos, onde eles ainda não chegaram, encontrar um mundo
de intensidades puras.
Onde está o corpo feminino? Não sabemos,
ele foi definido por homens. Onde está a essência feminina? É isso que
estamos tentando dizer, ela não existe, ela tentou ser definida por
homens, mas a mulher abre espaço para o fora, o indefinível, o devir. A
mulher não é um fim em si, ela é, usando uma analogia de Nietzsche, uma
corda estendida, entre o sedentário e o nômade, entre o homem e o
desconhecido. Um horizonte que se abre para todos os outros devires
minoritários. O devir-mulher é primeiro, ele dá início à resistência de
uma forma homem que fecha os fluxos de experimentação. Nasce um corpo
nômade aberto à variação, que se recusa a ficar no mesmo lugar e buscar
uma forma definida.
Emitir partículas de microfeminilidades,
longe da máquina dual que se opõe ao homem, isso todos nós podemos;
produzir uma mulher molecular, totalmente nova e desconhecida, isso
todos nós podemos; conquistar um corpo novo, uma história nova, afetos
novos, isso todos nós podemos; mas para esta importante tarefa é
imprescindível, felizmente, devir-mulher.
Admirava a liberdade que tinham para a expressão da sensibilidade, achava que era como uma permissão para ter a alma à solta, autorizada a manifestar-se pela beleza ou pelo espanto de cada coisa. Estava autorizada à sensibilidade que fazia da vida uma travessia mais intensa. As mulheres, pensava ele, eram mais intensas” – Valter Hugo Mãe, O Filho de Mil Homens
> Texto da série: Ética dos Devires <
Fonte: RAZÃO INADEQUADA
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