Oleo do Diabo
Investment Grade X Socialismo
08 May 2008
Um amigo cobrou-me um post sobre o Investment Grade. Tenho deixado passar muitos assuntos importantes. Tentarei recuperar o tempo perdido. Vamos lá. Sobre o Investment Grade, os fatos falam por si mesmos. Trata-se de uma classificação importante no mercado internacional, que serve como referência para os fundos mais conservadores. Esses fundos, alguns soberanos (isto é, pertencentes a governos), movimentam trilhões de dólares, e têm um perfil sóbrio, procurando fazer investimentos seguros, éticos e com retorno de longo prazo.
Entretanto, não foi surpresa para quem acompanha de perto as lides nacionais que o investment grade fosse quase menosprezado por determinados espectros políticos. A imprensa tratou logo de vender a teoria de que o prêmio devia-se ao governo anterior, de FHC, e não ao governo Lula, que teria somente se beneficiado por ter dado continuidade às políticas tucanas.
Ora, muitos blogueiros e jornalistas já desmascararam essa história da continuidade. Mas como a mídia abusa da estratégia goeberiana de repetir inverdades até torná-las dogmas, nunca é demais repassar, nem que seja rapidamente, algumas mudanças efetivadas pelo governo atual. Aumento do salário mínimo; uso da verba do BNDES para empresas nacionais; expansão do crédito; desoneração tributária de setores estratégicos, como o de informática; redução dos juros; política fiscal mais rígida, reduzindo a relação dívida X PIB; pagamento da dívida externa; maior apoio à agricultura média e familiar, mas também ao grande, beneficiado pelo biodiesel e pela liberação de recursos federais; programas sociais redistributivos, que ativaram economias antes estagnadas; abertura de escolas técnicas; política industrial mais ousada; abertura de novos mercados ao Brasil, como África, Oriente Médio e a própria América Latina. Enfim, são dezenas de mudanças de rumo. O que era positivo, foi mantido. O que era para ser mudado, foi mudado ou tentou-se mudar.
No entanto, seria injusto atribuir tudo a Lula. Trata-se de uma conjuntura política e econômica, de que Lula é uma apenas peça. Não podemos esquecer que Lula está lá porque o povo votou nele. Se coisas boas acontecem ao Brasil, o mérito é do regime democrático brasileiro.
O mais notável, contudo, é que o investment grade representa a pá de cal sobre a histeria anti-comunista que, por incrível que pareça, ainda assola alguns setores midiáticos. Lembram da caçada de Ali Kamel contra os livros escolares? As acusações de que o governo se moveria por interesses "ideológicos", além de implicarem um preconceito ridículo, como se fosse possível haver política sem ideologia e como se possuir ideologia fosse um defeito de caráter, mostraram-se inconsistentes em face da realidade. Acusou-se o governo de, por motivos ideológicos, dar as costas para os EUA e priorizar relações políticas e comerciais com países pobres. Ora, o governo aprofundou as relações comerciais com os americanos, mas fomentou uma saudável diversificação dos mercados para os produtos brasileiros. Hoje, países como Angola, Arábia Saudita, Costa do Marfim, Líbano e Israel são importantes parceiros comerciais do Brasil e não resta dúvida de que essa diversificação, incentivada pelas viagens presidenciais, foi fundamental para atravessarmos incólumes a grave crise imobiliária dos Estados Unidos.
A histeria anti-esquerdista, portanto, revelou-se vazia. Lula ajudou a fortalecer e a consolidar o capitalismo brasileiro, através de uma política socializante que priorizou as massas trabalhadoras. Isso significa que Lula vendeu-se ao capitalismo? Que desistiu do socialismo? Bem, Lula sempre foi franco ao negar ser ou defender o socialismo. Em algumas entrevistas, afirmava que, no máximo, era um homem com tendências socialistas. Por que, então, a extrema-direita continua vociferando contra um suposto esquerdismo que estaria dominando o Brasil? Por que continua procurando comunistas no armário?
Porque é burra. Assim como há um setor da esquerda que não soube tirar lições da queda do socialismo real europeu e soviético, há uma direita que ainda não acordou para os novos tempos. O socialismo morreu? Não, o socialismo não morreu. Por que idéias não morrem. Transformam-se. Idéias não permanecem puras. O capitalismo puro, por exemplo, nunca existiu. O socialismo morreu enquanto forma autocrática de governo. Mas está mais vivo do que nunca enquanto ideal de luta contra a opressão econômica, ainda muito cruel nos países subdesenvolvidos.
O socialismo moderno tem uma grande vantagem sobre seu antecessor soviético. Ele não está sendo escrito por gênios encafuados em quartinhos clandestinos. Está sendo criado na prática, na luta diária de governos eleitos democraticamente contra seus opositores políticos, sempre apoiados pelas mídias corporativas. Muitas vezes, noto que há grande confusão sobre o que seria o socialismo. Um blogueiro (O Judas) resolveu, por exemplo, iniciar uma cruzada contra a esquerda e o socialismo. Tudo bem. O problema é que ele elegeu um socialismo que só existe na sua cabeça. É como se eu acreditasse que o único capitalismo do mundo é o que existe nas Ilhas Caymann, e iniciasse uma cruzada contra o capitalismo a partir do que vi por lá. Confunde-se circunstâncias históricas e idiossincracias nacionais com ideologias políticas. O socialismo moderno aceita o capital e a propriedade privada, mas o regula através de instituições públicas, de forma a evitar distorções que possam prejudicar o próprio sistema. Tudo dentro de regras constitucionais e feito com as ferramentas democráticas existentes. A culpabilização do dinheiro, por exemplo, é uma estupidez. Lembra o marido que, ao flagrar a esposa fazendo amor com outro no sofá da sala, põe a culpa no sofá. Por acaso no socialismo soviético não havia dinheiro?
Hoje li um artigo sobre 1968, no qual o autor explica que os estudantes da época, notadamente os franceses, estavam aborrecidos com os operários, porque esses teriam se "aburguesado", satisfazendo-se com melhores salários, em vez de continuarem buscando a revolução. Diante do velho dilema de Rosa Luxemburgo, reformismo ou revolução, optaram pela primeira alternativa. Ora, analisando retrospectivamente, percebemos que os operários mantiveram-se bastante coerentes consigo mesmos. Afinal, as inquietações nas fábricas não nasceram de ideologias concebidas em quartinhos escuros, mas de condições degradantes de trabalho. Se os operários conseguiram melhorar de vida, é pedante e até preconceituoso criticá-los por terem ficado satisfeitos. Sua revolta não era um capricho estudantil. Queriam uma vida digna, lutaram, e venceram. Hoje um operário alemão ganha mais que um engenheiro ou professor brasileiro.
As elites sempre preferiram a ideologia enquanto moda, enquanto elegánce, cantada por jovens esbeltos, de boas famílias, escritas por intelectuais chic, do que um discurso pragmático, duro, plebeiamente simples. O operário, no entanto, com seu bom senso simplório, revelou-se mais inteligente, democrático e visionário do que o estudante, o qual, apesar de suas boas intenções, confundia seus interesses sexuais e estéticos com as demandas reais da classe trabalhadora.
Não quero, todavia, condenar o estudante do maio de 1968. Sua loucura, seus erros, tinham sua razão de ser. Exigir perfeição ao ser humano é a pior forma de fascismo. Ademais, é ridículo, do alto do conforto do século XXI, podendo pesquisar qualquer informação no Google, condenar peremptoriamente as lutas dos anos 60. A política, como a arte, digere vitórias e fracassos com a mesma fome. Nessas horas, nunca me esqueço da frase do personagem de Lavoura Arcaica, obra-prima de Raduan Nassar: eu sinto, pai, que a minha loucura tem mais razão do que a sua sabedoria.
Fonte: Óleo do Diabo
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