Mulheres de Olho
Estado laico, democracia e direitos humanos: a importância do debate
08 May 2008
Promovido pela Comissão de Cidadania e Reprodução, o seminário “Estado laico, democracia e direitos humanos” reuniu na sede do Cebrap, em São Paulo, um importante grupo de pensadores que analisou, debateu e refletiu sobre as conseqüências da influência dos valores religiosos na vida política brasileira. O objetivo era pensar sobre como, num estado democrático, a garantia da plularidade religiosa deve ser valorizada, respeitada e considerada, sem que com isso se perca de vista a importância da laicidade do estado, conquista relativamente recente na história política do país e, por isso mesmo, ainda tênue e constantemente ameaçada.
Logo na abertura, em mesa mediada pela demógrafa Elza Berquó, o juiz Roberto Lorea mostrou como as primeiras constituições forjaram o Brasil como “a maior nação católica do mundo”, qualificação obtida, em grande medida, com batizados obrigatórios. “Foi uma maioria obtida por violências e perseguições”, disse ele, numa fala que seria confirmada na segunda mesa pelo sociólogo Flávio Pierruci, que defendeu a liberdade religiosa como uma espécie de aperfeiçoamento da democracia brasileira. A queda no percentual de católicos – registrada em dados do IBGE a partir da década de 1980, quando crescem os fiéis das denominações religiosas neopentecostais – seria, assim, o início de um bem-vindo pluralismo religioso.
O risco, no entanto, é de que esse pluralismo seja obtido com a migração cada vez maior de fiéis a um tipo de religião muito mais rigorosa no que diz respeito à experiência cotidiana. “A prática do catolicismo é muito mais light”, lembrou Flavio, acentuando o que se vê em pesquisas de opinião: há uma grande distância entre o que prega a hierarquia da Igreja Católica e o modo de vida de seus fiéis. O que, se por um lado aponta para uma das muitas crises que a IC vive hoje, por outro reforça o discurso do papa Bento XVI, que assumiu o pontificado afirmando que não se importa com a redução dos católicos no mundo, desde que o fiel professe sua crença na vida cotidiana.
A socióloga Maria José Rosado, professora da PUC-SP e presidenta de Católicas pelo Direito de Decidir, lembrou que a convicção sobre o argumento da laicidade do estado ainda está distante da cultura política brasileira, na medida em que faz parte da história recente do Brasil a intervenção da Igreja Católica nos debates políticos a favor da redemocratização do país. Ela apontou, assim, para a contradição a ser superada pelos atores que defendem o que foi a importante contribuição de uma parte da Igreja na resistência ao regime autoritário.
Maria José evocou a necessidade de enfrentar o fato de que a naturalização da maternidade ainda não foi um tema exaustivamente debatido com a sociedade. “A natureza não é mais uma ordem, essa é a grande revolução da qual não nos damos conta”, disse ela, lembrando o pioneirismo das mulheres ao afirmar “nosso corpo nos pertence”, numa experiência que arrancou em pouco tempo gerações de mulheres da submissão e do “destino de gravidezes sucessivas”. Mas, na concepção da Igreja Católica, é a moral que salvará o mundo, não a política. Essa percepção justificaria a presença da IC no debate sobre temas que os movimentos sociais entendem como políticos – os direitos sexuais e reprodutivos – e que a igreja compreende como do campo moral.
Também esteve na mesa o coordenador do programa de pós-graduação em Bioética da UnB, Volnei Garrafa, veemente defensor da criação de um Conselho Nacional de Bioética, que seria responsável, a exemplo do que acontece na França e em outros países da Europa, por elaborar propostas para questões como a autorização para pesquisa com células-tronco embrionárias, hoje em debate no STF.
Pêndulo caótico
O que está em questão é o papel da mulher na sociedade, da mesma forma como se debatia o papel da Terra no tempo de Galileu. (…) Hoje se discute se o papel da mulher é de plenos direitos, ou deve permanecer como o da mulher à imagem de Nossa Senhora, que paira sobre a ordem social, de modo a dar-lhe uma função que a Igreja acha importante na sociedade. Dar cidadania plena à mulher ainda é uma batalha não resolvida. Com essas idéias o físico Ennio Candotti, ex-presidente da SBPC, começou sua apresentação, recheada de informações importantes para o debate que se daria ao longo de todo o dia. Segundo ele, é uma questão de tempo que a próxima geração de medicamentos “desdramatize” o aborto. “Com isso, a Igreja Católica perderá força no debate”, aposta ele. Permanecerão, no seu entender, visões de mundo totalmente diferentes: de um lado, a ciência que, para obter resultados, interfere e modifica a natureza, e de outro, a profunda desatualização da Igreja Católica, que faz uma leitura parcial, fragmentada, incompleta da Ciência, que “os expõe a enorme fragilidade”, disse.
Na sua perspectiva, deverá crescer, nos próximos anos, a discussão entre evolução e criacionismo. “A Igreja Católica não aceita o conceito de evolução porque 70% das vezes em que um espermatozóide encontra um óvulo, simplesmente não dá em nada. Dizer que a vida começa aí é primário”, argumenta ele. Para demonstrar sua hipótese de que os comportamentos são aleatórios, Candotti fez uso de um pêndulo caótico, mostrando como descrevia um comportamento diferente a cada vez que era posto em movimento pelo físico. “Tudo que está ao alcance da tecnologia pode ser realizado. Seria uma pena que fosse a Igreja Católica a nos dar esse limite. Deveríamos alcançá-lo nós mesmos”, concluiu.
O papel da imprensa
A primeira mesa na parte da tarde tinha como tema central o papel da mídia no embate entre as religiões e a ciência. Mediada pela jornalista Laura Greenhalgh, editora do jornal Estado de S.Paulo, teve como palestrantes o também jornalista Hélio Schwartzman, da Folha de S.Paulo, e a socióloga Maria Teresa Citeli, da Unicamp. Comentaram o professor da USP e coordenador da área de Filosofia do Cebrap, José Arthur Giannotti, e a secretária-executiva das Jornadas pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, Dulce Xavier. “Nesse embate, são as posições mais tolerantes que vão sobreviver”, argumentou Hélio, depois de uma exposição em que defendeu o laicismo do estado como direito fundamental. Já a socióloga Maria Teresa Citeli, valendo-se da teoria ator-rede, questionou o quanto os movimentos sociais estão conseguindo ser mediadores eficientes no tema da relação mídia-religião-ciência.
A religiosidade, e não as igrejas, são o nosso grande inimigo. Essa religiosidade é o que faz com que as pessoas acreditem que estão ‘na’ verdade. Diante de um tema como o aborto, estamos sempre numa situação limite. O inefável nos toca. Não temos como negar isso. Assim Giannotti conduz seu raciocínio, para afirmar que a grande questão é em que sociedade queremos viver, enfatizando o aspecto político das questões debatidas ao longo de todo o dia. Já Dulce insistiu na necessidade de construir com a grande mídia um tipo de relacionamento que seja de maior alcance, chegando aos meios de comunicação mais populares como o rádio e a TV.
Plural, contraditória e desobediente
Coube à socióloga Lúcia Ribeiro uma exposição demonstrando que há brechas, dentro da Igreja Católica, para o diálogo com atores e vozes dissonantes que discordam do discurso oficial da hierarquia. Segundo ela, encontra-se pelo menos três posições sobre o direito ao aborto: os mais ortodoxos, totalmente contra, os moderados, contrários ao direito mas respeitando as posições dos que defendem, e os que mantêm uma postura de abertura e de reconhecimento do direito. “Surge na Igreja Católica uma posição teológica afirmativa que abre novas possibilidades”, afirmou ela.
Na mesma mesa estava o médico Cristião Fernando Rosas, responsável pela implantação do serviço legal no Hospital do Jabaquara, que demonstrou, apontando dados do Ministério da Saúde e da OMS, o tamanho do problema do aborto legal no país, diretamente associado ao da mortalidade materna, mas ainda assim ignorado por aqueles que se dizem defensores do “direito à vida”. Para ilustrar sua apresentação, ele projetou o quadro “Enterro da moral extrema”, do artista plástico Irán Lomeli, que ilustra esse texto.
Angela Freitas/ Instituto Patrícia Galvão
PL 1135 rejeitado, noticia portal do Cfemea
08 May 2008
Era esperado o resultado da votação de ontem, na Comissão de Seguridade Social e Família, hoje noticiado nos prinicipais jornais do país. Reproduzimos a seguir matéria publicada hoje, 08, pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria:
“Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara rejeita projeto que descriminaliza o aborto”
A Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) rejeitou nesta quarta-feira, 7 de maio, o projeto de lei 1135/1991, que retirava do Código Penal o artigo 124, descriminalizando a prática do aborto no país. A proposta está apensada ao PL 176/1995, do deputado José Genoíno (PT-SP), que permite a interrupção da gravidez até 90 dias e obriga a rede hospitalar pública a realizar o procedimento. Mesmo rejeitado na CSSF, o projeto vai agora para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC), onde terá mérito, constitucionalidade e judicialidade analisados, e depois para o Plenário da Casa.
Em seu parecer, o deputado Jorge Tadeu Mudalen (DEM-SP) nega qualquer modificação no Código Penal de 1940, que prevê pena de um a três anos de detenção para as mulheres que provocarem aborto em si mesmas ou consentir que outro/a faça. É a afirmação de que a única resposta que o Estado pode dar ao problema é a punição dessas mulheres.
De acordo com pesquisa realizada pelas Universidades de Brasília (UnB) e Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), cerca de 1,5 milhão de procedimentos inseguros são realizados no Brasil a cada ano. Isso mostra que a legislação punitiva não consegue coibir a prática. A criminalização, por sua vez, impede que se desenvolvam políticas públicas para enfrentar o a questão em seu aspecto epidemiológico.
A sessão que decidiu pela aprovação do relatório de Mudalen foi marcada pela falta de acordo em relação à discussão da proposta. Quatro parlamentares - Cida Diogo (PT-RJ), Doutor Pinoti (DEM-SP), Paulo Rubem Santiago (PDT-PE), Pepe Vargas (PT-RS), Janete Pietá (PT-SP) e Doutor Rosinha (PT-PR) - saíram do plenário antes da votação em protesto pela falta de diálogo. Os dois primeiros chegaram a apresentar voto em separado, revelando posição favorável à descriminalização do aborto. Os outros 33 integrantes da comissão continuaram no plenário e votaram pela aprovação do relatório.
O presidente da CSSF, Jofran Frejat, e outros integrantes da comissão afirmaram que os 17 anos de tramitação do projeto eram suficientes para o amadurecimento das opiniões. Esse argumento - na opinião da diretora do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) Guacira César de Oliveira - não se sustenta. “Há outras matérias como a taxação de grandes fortunas ou a equiparação de direitos das trabalhadoras domésticas que tramitam há mais tempo ainda e não são votados”, destacou.
“Esse resultado não representa os anseios das brasileiras”, afirma a assessora técnica do CFEMEA Kauara Rodrigues. Ela lembra que as duas Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres - ocorridas em 2004 e 2007 - deliberaram pela revisão da legislação punitiva do aborto. Recentemente, a Conferência Nacional da Juventude, realizada em Brasília no final de abril, também decidiu pela mudança.
Posto que uma em cada 15 mulheres brasileiras já fez aborto, e que a criminalização nunca foi solução para o problema, não é pelo fato da CSSF ter decidido por manter tal situação que a questão está esgotada. Pelo contrário, continua em pauta. E há disposição para lutar e ampliar o apoio da sociedade para que o aborto seja tratado não no âmbito do direito penal, mas sim na esfera da saúde pública e dos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres. O que se defende é que haja educação sexual nas escolas e acesso amplo à informação e aos métodos contraceptivos para evitar gravidezes indesejadas. Se mesmo assim elas ocorrerem, as mulheres que não quiserem levá-las adiante não devem ser criminalizadas e devem ter direito a um atendimento digno e seguro na rede pública de saúde.
(***)
Leia também a carta assinada por 31 organizações da sociedade civil e entregue antes da sessão, destacando os compromissos nacionais e internacionais assumidos pelo país, que foram literalmente ignorados pelos 33 parlamentares da CSSF que votaram pela manutenção da punição do aborto:
Carta aos/ às parlamentares
Fonte: Mulheres de Olho
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