PICICA: "Por mais admirável que seja, a obra de Arendt opera uma insustentável despolitização do social e do econômico."
A impossível utopia política de Hannah Arendt
por Luciano Oliveira
Anos atrás, numa época em que estava lendo pela primeira vez Hannah Arendt (1906-1975) uma autora forte e desconcertante, a quem sempre volto , defrontei-me com uma cena que foi ao mesmo tempo a confirmação de um controvertido insight arendtiano sobre a política, mas também uma interrogação sobre a validade política de sua visão nas condições do mundo moderno. Relato a cena: num canteiro de obras, dois trabalhadores brasileiros misturavam o cimento vestidos de forma praticamente igual: pés descalços, calção e camiseta uma dessas camisetas que são distribuídas por políticos brasileiros em época de eleições. O que me chamou a atenção não foi essa miséria comumente partilhada, afinal tão trivial num país como o Brasil, mas o fato de que um dos trabalhadores vestia uma camiseta do PT, enquanto o outro vestia uma camiseta do extinto PFL. A cena, por um efeito de contraste, pareceu-me uma ilustração perfeita da concepção grega dapolis: um espaço onde vige a liberdade no qual os homens, libertos das necessidades da sobrevivência, aparecem, falam e agem como iguais. Os dois trabalhadores, apesar da igualdade existencial à qual estavam submetidos, eram obrigados a ostentar no próprio corpo duas mensagens políticas opostas, justamente porque, submetidos à pobreza, não eram livres o bastante para escolher o que vestir. Mas por que a referência à polis?
Porque Arendt adota a postura grega para avaliar e julgar! a política; e, como eles, considera a necessidade um fenômeno pré-político que, como tal, não deve adentrar o espaço público onde ela vige, para não conspurcar a liberdade que deve aí reinar. Uma questão ocorre de imediato a qualquer leitor sensato: mas se é verdade que os homens submetidos à miséria são privados da liberdade que o espaço público da política requer, por que não fazer da sua superação certamente não o único, mas sem dúvida um dos mais nobres objetivos da política? Arendt, que possuía o dom de enfurecer seus admiradores, respondia negativamente a essa questão! Não, evidentemente, no sentido de que pregasse a manutenção da pobreza, mas no sentido de que a sua superação relevaria de outra esfera que ela, não sem uma boa dose de arbitrariedade, chama de “social”. A postura parece tão reacionária para não dizer simplesmente “ingênua” (o juízo é de Claude Lefort) a um leitor moderno acostumado com a ideia de que a política existe exatamente para resolver a “questão social”, que o autor destas linhas pergunta a si mesmo que justificativa apresentaria para recomendar seu livro aparecido em 1963, Sobre a revolução, onde, mais do que em qualquer outro lugar na sua obra, Arendt desenvolve essa visão da política com especial obstinação, tomando as revoluções Americana (1776) e Francesa (1789) como estudos de caso, por assim dizer.
O essencial do livro consiste numa longa e erudita reflexão em torno do problema da fundação da liberdade que ela distingue da libertação , empresa que os americanos teriam realizado com sucesso, ao contrário dos seus contemporâneos franceses que, afogados no “despotismo da liberdade” de que falava Robespierre, fracassaram. E esse fracasso, para Arendt, explica-se pelo fato de ter a Revolução Francesa tentado realizar algo que não é da competência das revoluções: resolver a questão social! Arendt chega a classificar o fato de que o paradigma de revolução no mundo moderno tenha sido a Francesa, e não a Americana, como uma “triste verdade”. A tese que ela defende, mesmo que seja verdadeira, é incômoda: “Foi a necessidade, a carência premente do povo, que desencadeou o Terror e condenou a revolução à ruína”. Em compensação, o que salvou a revolução americana do terror foi o fato de que o país não conhecia a pobreza, pelo menos nas dimensões europeias: “É como se a Revolução Americana tivesse se realizado numa espécie de torre de marfim, em que jamais penetraram as vozes espectrais da pobreza extrema ou as visões terríveis da miséria humana”. Ou seja: os homens da Revolução Americana já estavam libertados e puderam assim fundar a liberdade. Evidentemente Arendt reconhece que “a ausência da questão social no cenário americano era, no final das contas, totalmente ilusória, pois a miséria sórdida e degradante estava ubiquamente presente sob a forma da escravidão”. Mas o que importa é que “a escravidão não fazia parte da questão social, de modo que, estivesse genuinamente ausente ou apenas oculta nas sombras, era inexistente para todas as finalidades práticas, e com ela fazia-se inexistente também a paixão mais forte e talvez mais devastadora que motivara os revolucionários [franceses], a paixão da compaixão”. Para Arendt, quando essa compaixão captura o domínio da política e, por meio dela, tenta modificar as condições materiais a fim de aliviar o sofrimento humano, “evitará os longos e cansativos processos de persuasão, negociação e acordo, que são os processos da lei e da política, e emprestará sua voz ao próprio sofrer, que deve reivindicar uma ação rápida e direta, ou seja, a ação por meio da violência”. Por isso, o rumo inicial da Revolução Francesa, que era “a fundação da liberdade e o estabelecimento de instituições duradouras” tarefas que ela considera o objetivo de todas as verdadeiras revoluções , foi desviado “pela imediaticidade do sofrimento”. Arendt está perfeitamente consciente de que “a libertação da necessidade, devido à sua premência, sempre terá prioridade sobre a construção da liberdade”. Mas se a necessidade não cabe no âmbito da política, a quem incumbe dela se ocupar?
Arendt desenvolve estranhamente para quem considerava a burocracia a pior forma de tirania, porque tirania de “ninguém” uma concepção tecnocrática dos problemas sociais, que considera “questões administrativas, a ser entregues às mãos de especialistas”. E, referindo-se aos revolucionários franceses, diz: “Os mesmos homens, plenamente capazes de agir na alçada política, fatalmente falhariam se fossem incumbidos de gerenciar uma fábrica ou atender a outras obrigações administrativas. Pois as qualidades do político ou estadista e as qualidades do gerente ou administrador não só são diferentes como muito raramente se encontram na mesma pessoa; o primeiro deve saber lidar com as pessoas num campo de relações humanas, cujo princípio é a liberdade, e o segundo deve saber gerir coisas e pessoas numa esfera de vida cujo princípio é a necessidade”. Nessa rota, Arendt chega a dizer coisas que lembram o tipo de inocência denunciada por Graham Greene como uma forma de insanidade como essa pérola que escreveu num texto de 1962, “A Guerra Fria e o Ocidente”: “O avanço das ciências da natureza e da tecnologia abriu possibilidades que tornam inteiramente provável que, num futuro de forma alguma distante, sejamos capazes de tratar todas as questões econômicas a partir de fundamentos científicos e técnicos, independentemente de toda consideração política.” Custa crer que alguém que conhecia tão bem o coração humano e os abismos de que ele é capaz (“ninguém, exceto Deus, pode ver (e talvez suportar ver) um coração humano desnudado”, diz ela), tenha podido escrever tal coisa.
Na verdade não há como nem por que evitar a constatação de que a obra de Hannah Arendt é, para dizer o mínimo, indiferente à questão social. Suas preocupações eram simplesmente outras. Judia assimilada numa Alemanha em que o antissemitismo, apesar da “emancipação dos judeus”, larvava, Arendt tornou-se uma judia errante com a ascensão do nazismo ao poder. Até então interessada em filosofia pura e até flertando com a teologia, Hannah começou a interessar-se por política depois do incêndio do Reichstag em Berlim, em 1933. Lúcida, pressagiou o que estava por vir, abandonou seu país e tornou-se uma apátrida, até que conseguiu a cidadania americana em 1951. Os sofrimentos por que passou e as reflexões que fez nessa época sobre o espaço público foram uma constante em sua obra até o fim da vida. Sem dúvida, ela sempre se preocupou menos com as condições materiais de vida do que com os direitos políticos e jurídicos. Essa postura já pode ser entrevista no seu primeiro grande livro, As origens do totalitarismo, onde observa que a tirania “geralmente deixa intactas as capacidades produtivas do homem”, quando não as exacerba. O nazismo, vale lembrar, se de um lado prometia ódio tribal, prometia também pleno emprego; e o comunismo, justamente, edificou-se sob a promessa de que, uma vez destruídas as relações capitalistas de produção, a riqueza “jorraria em mananciais inesgotáveis”, como antevira o próprio Marx. Já em relação à ação política, que precisa da liberdade para existir, ocorre o contrário, porque nenhuma tirania “poderia existir sem destruir a esfera da vida pública”. O totalitarismo, ademais, pareceu-lhe a pior forma de tirania, porque, pelo medo que dissemina entre os cidadãos, destrói também a vida privada, condenando os homens à solidão que, numa de suas fórmulas incomparáveis, ela descreve como a “experiência de não se pertencer ao mundo, uma das mais radicais e desesperadas experiências que o homem pode ter”. Sem dúvida, a experiência de judia errante podendo ser a qualquer momento deportada para seu país de origem, de onde seria enviada para um lugar sinistro chamado Auschwitz, está na raiz de sua convicção de que existem coisas piores do que a pobreza.
Vê-se que as diatribes a respeito da “questão social” presentes em Sobre a revolução não surgem do nada. No livro de 1958 que lhe antecede, A condição humana talvez o mais apaixonante texto que já se escreveu no terreno da filosofia política , Arendt desenvolve num plano especulativo o receio que o sonho da abundância material lhe inspirava. O livro trata do que chamou de vita activa, dentro da qual a atividade dolabor que partilhamos com todo ser vivo e que consiste na satisfação das necessidades do nosso corpo , apesar de ser ontologicamente a mais rasteira das atividades humanas, capturou o homem moderno e lhe impôs a sua “insaciável necessidade”. Arendt compôs um belo epíteto para essa figura: o animal laborans. O medo que ele lhe causa vem do fato de que, sendo as necessidades humanas em princípio infinitas, o ser onívoro em que nos tornamos é capaz de “consumir” o mundo inteiro. Com isso, e num nível filosófico e antropológico elevado, Hannah Arendt prenuncia a preocupação contemporânea com a sobrevivência do planeta, para ela ameaçado pelo consumismo que já naquela época começava a marcar nossas sociedades. Numa de suas frases cortantes, Arendt considera “a atitude do consumo” como aquela que “condena à ruína tudo que toca”.
Em termos políticos, o medo que Arendt tem da elevação da “questão social” à finalidade maior da política embasa-se na sua convicção de que a “ruptura totalitária” tem a ver com “a herança jacobina da revolução social” feita não para libertar o homem da tirania, mas para libertá-lo dos grilhões da necessidade pela abundância material. Constantemente ela adverte contra o “perigo de confundir a felicidade pública e o bem-estar privado”, e está sempre a repetir que as ações livres de que fala são aquelas que se dão no espaço dapolis, vale dizer, no espaço público; não se trata, assim, da mera felicidade privada do liberalismo, mas da “liberdade pública de participação democrática”, como lembra seu ex-aluno Celso Lafer. É evidente que ainda aqui pode-se insistir: “participação para quê?” A pergunta está longe de ser descabida porque a ação arendtiana teima em ser livre, isto é, liberada dos constrangimentos que impõem a resolução da questão social. É a volta à polis grega. Por isso que, na era moderna, as únicas experiências políticas que ela elogia estão muito próximas do que teria sido a ação política nas cidades-estados do mundo helênico: o sistema deconselhos que a partir da Revolução Francesa surgem e ressurgem com regularidade no bojo dos eventos revolucionários que se seguiram: a Comuna de Paris, as revoluções de 1905 e 1917 na Rússia, a Revolução Húngara de 1956 etc.
Apesar do fato de que todas essas formas de democracia direta fracassaram, Arendt recusa-se a fazer coro com os que consideram “impossível o povo conduzir diretamente os assuntos públicos nas condições modernas”; ao contrário, critica o “realismo” (as aspas são dela própria) dos que assim pensam, que ela acusa de “descrença nas capacidades políticas do povo”. É de chamar a atenção a auto-suficiência com que Arendt desdenha toda a discussão sociológica, que remonta pelo menos a Rousseau, sobre o problema da democracia direta nas condições do mundo moderno, formado por sociedades extensas e complexas como são as nossas. Ela nunca escondeu o desdém que sentia pela ciência política convencional, que, é verdade, assume um “realismo” muitas vezes rasteiro na análise do fenômeno político. Mas daí a desconsiderar, com o recurso a uma fórmula que é sem dúvida retórica as “capacidades políticas do povo” , todas as questões que a participação direta dos cidadãos comuns nos assuntos de governo levantam, vai um passo muito ousado. Tais questões não são fruto apenas do “realismo” dos cientistas políticos: para citar a título exemplificativo autores que não cabem nessa categoria pedestre, seria o caso de lembrar a distinção clássica de Benjamin Constant entre a liberdade dos antigos comparada à dos modernos, ou a questão weberiana da rotinização do carisma; para não falar de um autor que já viveu maior glória, Sartre, e o dilema que ele nunca resolveu entre o “grupo em fusão” das jornadas heroicas e o “prático-inerte” da vida cotidiana que faz com que o trabalhador que dois dias antes estava em greve esteja dois depois na fila do ônibus que o leva ao cativeiro da fábrica de onde tira seu sustento. Além do mais, o “povo” arendtiano parece também envolto numa “estilização” helênica: ela chega a afirmar e essa é mais uma de suas afirmações altamente discutíveis que “por toda parte os conselhos, à diferença dos partidos revolucionários, alimentavam um interesse infinitamente maior pelo aspecto político do que pelo aspecto social da revolução”. Desnecessário é dizer o quanto são fugazes as evidências empíricas que ela traz para sustentar tese tão temerária…
Por mais admirável que seja, a obra de Arendt opera uma insustentável despolitização do social e do econômico. A perspectiva grega, se tivermos a coragem de ser coerentes e almejarmos a um mínimo de realismo num mundo formado por sociedades extensas e complexas, só pode levar às democracias censitárias do século XIX! Mas essa “solução” pareceria aberrante à própria Arendt, que, como vimos, sempre demonstrou admiração pelas instituições de democracia direta que costumam aparecer em períodos revolucionários. Em que pese isso, a contrapartida da despolitização do social, a politização da ação e da palavra livres, tem muito a nos dizer. É mais uma vez contra o sombrio pano de fundo do totalitarismo e das ditaduras que brilha a reflexão arendtiana. Quaisquer que tenham sido seus exageros contra os vários projetos políticos de redimir a humanidade através da abundância material, ela, que como judia alemã passou pela dura experiência do totalitarismo nazista, tem muito a nos dizer a nós que, nos anos 70, passamos pela dura experiência da ditadura militar e, nos anos 80, assistimos, boquiabertos e desolados, ao fracasso dos regimes socialistas que tentaram essa remissão justamente à custa da liberdade. Os direitos e a liberdade são temas importante, válidos por si mesmos, e, finalmente, não podemos exigir dos autores inclusive daqueles que amamos que eles digam o que queremos ouvir, em lugar de ouvir o que eles têm a dizer.
De toda forma, causa certa espécie constatar a atual nomeada de que goza uma autora em muitos sentidos tão conservadora numa cultura tão sensível às teses mais progressistas como a nossa. Estaríamos diante de uma simples moda? Uma questão me ocorre: a vassalagem também tão comum nessa mesma cultura diante de obras e autores com alta cotação no exterior indicaria que o seu pensamento, como já aconteceu com tantos outros, passará entre nós sem deixar mossa nem bossa? É possível. Em todo caso, vale a pena aproveitar o atual interesse que sua obra desperta para iniciar o leitor num pensamento dos mais fortes e significativos do século XX. E se isso não fosse motivo bastante para lê-la, aduziria outra razão, muito embora, como argumento, ela seja bastante frágil porque releva, como todo juízo estético, da esfera da subjetividade. Refiro-me à beleza do texto arendtiano, em vários momentos comparável à mais sofisticada literatura. Dificilmente o leitor de Hannah Arendt terá conhecido um autor que, exercendo o seu ofício no terreno freqüentemente árido da filosofia política, tenha conseguido com igual maestria satisfazer a exigência de Roland Barthes do “saber com sabor”.
::: Sobre a revolução ::: Hannah Arendt (trad. Denise Bottmann) ::: Cia. das Letras, 2011, 416 páginas :::
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Professor de sociologia na UFPE e autor, entre outros, de Do nunca mais ao eterno retorno: Uma reflexão sobre a tortura(Brasiliense) e O enigma da democracia: O pensamento de Claude Lefort (Jacintha).
Fonte: Amálgama
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