abril 02, 2012

"Pró-vida de quem?", por Talita R. da Silva


Pró-vida de quem?



PICICA: "(...)o Estado laico propaga a proteção e o respeito às diversidades religiosas e, também, ao ateísmo. Logo, não consigo imaginar por que alguém seria contrário a uma proposta de harmonização sem imposição dogmática. Dessa forma, acredito que os opositores ao Estado laico estão desinformados acerca do que signifique laicidade ou, anti-democraticamente, esperam poder controlar políticas públicas a partir de crenças individuais, tal como ocorre em movimentos político-religiosos largamente atacados mundo afora por desrespeitar direitos humanos e incentivar atentados de ódio."


Uma onda conservadora está ganhando força em nosso Congresso e manifestações populares. Homens como quaisquer outros empunham frente a nosso corpo político um livro incoerente, que contradiz a si mesmo, fruto de uma construção histórica para suprir as demandas de controle político, econômico e social. São homens que desejam impor seus dogmas pessoais a demais homens. Deus não fala! Deus não se manifesta! Ninguém sabe mais do que o outro o que Deus espera da humanidade. Ninguém é representante de Cristo, com aval santificado reconhecido pelo cartório divino, para governar o corpo e os desejos alheios. O fato é que nenhum homem é melhor ou mais eleito do que outro, por isso sugiro que guardemos nossos livros fantasiosos apenas para nós mesmos!

Lembram-se da teoria dos conjuntos? Estado laico contém todas as crenças possíveis! Imagem: Fonte: D. Barrett & T. Johnson, World Christian Trends, 2001. Versão Brasileira: Ted Limpic, SEPAL 2005
Grande parte dos pró-vida acreditam que estão representando Deus, mas o único Deus a que prestarão contas é a própria consciência, assim como ocorre com todos nós. Porque Deus não é uma entidade a ser possuída, que precise ser representada por um bando de pessoas incoerentes em suas próprias vidas. Se Ele é tão poderoso e supremo quanto algumas crenças pregam, não deveria impor qualquer espécie de manifestação pró-vida, uma vez que seria plenamente capaz de nos fazer seguir o caminho que melhor nos condiz. Por isso, vamos todos vestir a capa do respeito e da humildade! Tiremos, de uma vez por todas, a cruz posta em nossos ventres! Ou seja, a imposição do Estado laico atrelada ao reconhecimento de que as mulheres são detentoras de autonomia volitiva parecem ser premissas para compreendermos a problemática da legalização do aborto.
O Estado laico é o espaço que permite a harmonia, porque não beneficia qualquer sistema teológico. O cristianismo é uma religião com bastantes seguidores no Ocidente, mas não é e nunca será a única forma de crença. Apenas quando retirados todos os filtros religiosos, poderemos nos questionar racionalmente: somos pró-vida de quem?
Contudo, quando pensamos que certos conceitos estão muito claros, descobrimos que alguns debates  devem ser retomados. Houve pessoas, por exemplo, que vieram me dizer que “Estado Laico não pode ser confundido com Estado Ateu” (sic) e isso demonstra que elas, realmente, não sabem o que significa laicidade. A proposta de implantar um Estado laico (o que ainda não ocorre no Brasil) não é reprimir, de forma alguma, qualquer manifestação ou vivência religiosa, mas sim respeitar as crenças individuais, o que inclui, obviamente, respeitar o ateísmo. O Estado laico, portanto, aceita o ateísmo, mas jamais o imporia, assim como não deve impor o cristianismo ou o budismo ou a umbanda, etc…
Em suma, o Estado laico propaga a proteção e o respeito às diversidades religiosas e, também, ao ateísmo. Logo, não consigo imaginar por que alguém seria contrário a uma proposta de harmonização sem imposição dogmática. Dessa forma, acredito que os opositores ao Estado laico estão desinformados acerca do que signifique laicidade ou, anti-democraticamente, esperam poder controlar políticas públicas a partir de crenças individuais, tal como ocorre em movimentos político-religiosos largamente atacados mundo afora por desrespeitar direitos humanos e incentivar atentados de ódio.
No que diz respeito ao direito de decisão da mulher, há muito tempo, o movimento feminista vem se atendo a uma ideia radical, isto é, de que mulheres são gente. O que significa ser gente? Grosso modo, poderíamos dizer que ser gente é ser um sujeito biológico, social e político, capaz de elaborar vivências autônomas. O feto não é um ser constituído de forma autônoma tanto biológica quanto social/judicialmente, portanto não constitui um corpo político. Assim sendo, por que sua vida deve ser mais importante do que a da mulher? Por que nós, mulheres, precisamos nos submeter ao privilégio de vida de um ser que ainda não existe de forma independente? Por que muitas mulheres precisam morrer em práticas de verdadeira carnificina? Nada disso deveria ocorrer em um Estado laico, isto é, que desse primazia a decisões racionais e tomasse tanto homens quanto mulheres como seres autônomos.

Imagem: Grupo Gênero Con Classe
Não me interessa discutir quando a vida começa nem em termos científicos, tampouco metafísicos. Não importa o que o aparelho de ultrassonografia mostre, o feto não tem grandes chances de sobreviver longe do útero antes do 6º mês de gestação. Portanto, ele não existe sem a permissão da mulher e esta, por sua vez, não deveria ter (embora a lei diga que ela tenha!) a obrigação de atuar como uma incubadora natural.
Todos falam sobre o feto, mas se esquecem de pensar na mulher que é obrigada a gerá-lo. Quem é essa mulher? Quais são seus planos? O que ela sofre ao “alugar” parte de seu corpo a um ser que ela não deseja como membro de sua vida?
Alguns falam na possibilidade da adoção, como se esta fosse a solução premiada tanto para a mulher, alienada de seu corpo durante a gestação, quanto para o bebê, que comporá um mar de enjeitados desejosos de um lar. Essa parece ser a possibilidade que acalma o espírito santificado de alguns pró-vida. Lutam, desesperadamente para que a criança exista, mas não se importam com o que esse mundo lotado e ingrato, até para quem foi amado e desejado, fará com/por ela. A agressão seguida de chantagem emocional tende a findar quando a criança se materializa em um ser merecedor mas nem sempre receptor de atenção, cuidados e afetos. Então, cá do lado do meu ateísmo, pergunto-me se esse é o mundo da caridade que Jesus imaginou.
Por fim, recomendo o vídeo do humorista, comediante, cara esperto George Carlin, sem perder a questão que nos move: “Pró-vida de quem?”.


Talita R da Silva

Linguista apaixonada/inebriada/devotada. Viciada em literaturas e debates filosóficos/antropológicos/sociológicos. Nacionalista, por isso crítica com relação à nossa cúpula política. E, claro, feminista em processo eterno de aprendizagem!

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