PICICA: "A Alemanha de hoje é o verdadeiro Estado em crise da Europa; depois de fraturada em duas na esteira da catástrofe da Segunda Guerra, ela se reunificou para ser o motor da Europa universalizada e universalizante na figura da União Europeia: mas sua vida não é fácil, seu capital vive da moeda comum que lhe abre os mercados do continente e está pouco disposto a fugir ao parasitismo disso, sequer assumindo os riscos de financiar seus consumidores em tempos de crise. Quem está em crise, isto é, quem depende de um artificialidade, uma moeda igual para estados desiguais, é a Alemanha, não Portugal, Grécia ou Espanha."
A Alemanha como Epicentro do Terremoto Europeu
No
início, havia bárbaros decididamente livres, mas se os gregos
colonizaram seus dominadores romanos- o que fez tudo aquilo mais parecer
um ardil para enfim realizar, por meio de Roma, o projeto inacabado de Alexandre Magno -, os germânicos se dedicaram, dali em diante, em aprender a declinar
como nem mesmo todos os romanos faziam - dada a liberdade sem fim dos
seus muitos vulgares, dialetos vira-lata do latim que se tornaram nosso
jardim de latinidades -; precisava haver O alemão e era necessário que
ele fosse tão rigoroso quanto qualquer língua clássica. Os
alemães cometeram o erro de se pretenderem mais realistas do que o rei
e, dali em diante, uma série de equívocos foram cometidos.
A
Alemanha contemporânea nasce da cultura burocrática, militarista e
universalizante da velha Prússia - que, afinal de contas, subsumiu quase
todos os Estados germânicos em seu entorno. Pois então, a história da
ideologia alemã, e de seu desdita como Estado-nação, é mais do triplo H do que de Kant: Hegel, Heidegger e Habermas
- do culto ao Estado como realização do Homem à transcendência
comunicativa, que mascara o conflito social escondendo as assimetrias
diversas, passando pelo odioso projeto de refundar a filosofia ocidental
reterritorializando-a na pretensão de pureza nacional.
Não
que a Alemanha não tenha nos dado dois dos maiores pensadores de todos
tempos, dois iconoclastas tão opostos que chegam a se aliar no limiar de
sua radicalidade, Marx e Nietzsche, cada um apontando
para determinados aspectos das rachaduras do casco do navio que,
quisessem ou não, estavam a bordo - embora um tenha sido para sempre um judeu errante e o outro um inconfessavelmente eslavo.
O que me interessa na Alemanha, portanto, é o que há de mais
apaixonadamente maldito, resistente e alternativo na sua cultura, não
alguma coisa de sua tradição (enquanto ramo principal de seu pensamento e
ação) - não que a tradição me apaixone, ao contrário, mas eu já não
diria o mesmo nem mesmo dos EUA ou da Rússia, muito menos do Reino Unido
ou da França.
A
Alemanha de hoje é o verdadeiro Estado em crise da Europa; depois de
fraturada em duas na esteira da catástrofe da Segunda Guerra, ela se
reunificou para ser o motor da Europa universalizada e universalizante
na figura da União Europeia: mas sua vida não é fácil, seu capital vive
da moeda comum que lhe abre os mercados do continente e está pouco
disposto a fugir ao parasitismo disso, sequer assumindo os riscos de
financiar seus consumidores em tempos de crise. Quem está em crise, isto
é, quem depende de um artificialidade, uma moeda igual para estados
desiguais, é a Alemanha, não Portugal, Grécia ou Espanha.
É
a forma mansa, solidária e comunicativa do democratismo-cristão erigido
nos escombros do pós-guerra - a exemplo de um bem comportada
social-democracia - resolver seus problemas. Mesmo tendo a herança de
sua antiga banda oriental, que passou quase meio século presa nos
dilemas do socialismo real, entre a perversão burocrática e o desejo de
democratizar o socialismo, restando-se falida para viabilizar sua
absorção pela banda ocidental, em um movimento que teve mais haver com a
ponte área Bonn-Moscou do que se supõe - e o leste pobre, apesar de
preso ao jogo parlamentar, é a zona ainda mais esquerdista e rebelde do
país.
A
democracia-cristã governou longamente o país no pós-guerra, até o
influxo dos anos 60 que resultou, de 1969 a 1983, no gabinete misto de
social-democratas e liberais-democratas, voltou ao poder na reação dos
anos 80 até ser substituída pela (torpe) terceira via - verde e
social-democrata - durante o governo Schroeder para depois ascender com
Merkel em um clima de progressivo desinteresse pela política,
esgarçamento social e crescimento de movimentos de extrema-direita -
para governar burocrática e cruelmente. Se na Itália havia um velho
bordão de que a (falecida) democracia-cristã local invertia o anátema de
que se deveria agir "segundo o que o Padre diz, não como ele mesmo age"
- ao agir como ele age e não como ele diz -, podemos dizer algo
parecido de Merkel e os seus.
O
que quer Merkel, acossando os países periféricos da Europa por meio da
política de austeridade? Até que ponto ela não imagina que isso não vá
resvalar na sua Alemanha, seja por meio de um efeito bumerangue
econômico ou político? As recentes derrotas políticas que ela sofreu
podem ser menos terríveis, para si mesma, do que ela pensa, pior se
fossem efeitos econômicos propriamente ditos, o que não está, ao meu
pensar, fora de um horizonte de curto ou médio prazo se o arrocho não
destruir algum país, por menor e mais pobre do que ele seja. Uma vitória
social-democrata em nível nacional seria importante neste momento,
apesar de suas torpezas mil, mas a crise alemã é certamente mais
profunda e complexa para ser resolvida por uma mera mudança parlamentar.
Fonte: O Descurvo
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