junho 01, 2012

"Marcha das Vadias: Não encontrei uma só mulher correta entre elas", por Ana Rita Dutra

PICICA: "Quando vejo a sociedade se manifestando sobre a Marcha das vadias dizendo que: “Elas se vestem como vadias e depois não querem ser tratadas como uma”; vejo ser exposta a mais pura essência do machismo, a profunda raiz que divide as mulheres entre corretas, merecedoras do respeito, atenção e dedicação e as incorretas, as vadias, que podem ser humilhadas, agredidas, violadas, excluídas. Me inquieta a disseminação dessa frase, me inquieta que tantas pessoas não percebam a essencia horrorosa, cruel, assassina que esta por de trás disso. Quer dizer que existe uma forma de tratar vadias? Quer dizer que temos o direito de violentar uma mulher porque ela usa saia curta, porque ela esta nua numa esquina? É isso?" 

Publicado em 25/05/2012 por
A violência física contra a mulher é só o último estágio de uma série de violências verbais, simbólicas, psicológicas e morais que atingem as mulheres todos os dias. Homens que estupram e agridem mulheres não são doentes: são fruto de uma sociedade profundamente machista que a todo momento estimula comentários que menosprezam, depreciam e agridem as mulheres, de forma tão naturalizada que muitas vezes nem percebemos. Para acabar com o machismo na sociedade é preciso, antes de tudo, encarar o machismo em nós mesmas/os. É por isso que dizemos, sem medo ou constrangimento:

Se ser livre é ser vadia, somos todas vadias!



Marcha das Vadias: Não encontrei uma só mulher correta entre elas

Ardilosa, traiçoeira, imperfeita, costela de Adão, estrada por onde adentrou o pecado. A menstruação? Castigo! As dores do parto? Castigo! O ser mulher esta em volto em um misto de dor, vergonha e maldição.  Existe uma prece matinal que diz: “Abençoado seja Deus, Rei do universo que não nos fez mulher”.

Alguns grupos de jovens de comunidades religiosas promoveram aqui em Porto Alegre, uma série de ações de repudio a Marcha das Vadias, colocando que as mulheres não são vadias e sim princesas delicadas de deus, que são mães honradas. Poucas pessoas sabem, mas frequentei a Igreja Catolica até meus 17 anos. Fiz primeira comunhão, crisma, ia em grupo de oração, missa toda a semana e quando comecei a questionar algumas coisas fui colocada a parte… E que bom que fui colocada a parte!

Lembro que na minha adolescencia havia um seminarista muito “promissor” na igreja e este acabou se apaixonando por uma amiga, saiu do seminário e começaram a namorar. No dia que a noticia veio a tona, me recordo que fiquei horrorizada, pois essa moça tinha “desviado” o garoto. Lembro-me das senhoras comentando como ela tinha feito a cabeça dele, como ela tinha seduzido, como ela tinha lançado de artimanhas para corromper o pobre rapaz. Ela não era uma mulher correta.


Marcha das Vadias de Porto Alegre/2012. Foto de Ana Rita Dutra.

A culpa é um conceito central quando pensamos nessa mulher legitimada pela patriarcado. Ela tem culpa por ter nascido mulher, ela tem culpa pelo desvio do comportamento masculino, ela tem culpa sobre o seu corpo, ela tem culpa até pela violência que ela sofre. Ela é naturalmente inacabada e imperfeita. E, essa imagem de imperfeição dá o toque para a forma como se encaminha sua vida. Ela tem a mente inferior, ela precisa de um homem para tomar conta dela.

Quando converso com as mulheres sobre a forma como foi o período inicial de sua vida adulta, estas, em sua grande maioria, ouviam com frequencia que precisavam de um homem para controlar seas atos, para cuidar delas. Quando os namoros se prolongavam vinha a frase: mas quando ele vai te assumir? Não estou falando de conversas de 1960, falo aqui de conversas que acontecem em 2012.


Marcha das Vadias de Porto Alegre/2012. Foto de Ana Rita Dutra.

A Marcha das Vadias foi um dos assuntos mais comentados nos ultimos dias, e trouxe consigo um questionamento sobre a culpa da mulher, sobre esses conjuntos de concepções machistas, patriarcais que culpabilizam a mulher até pela violência que ela sobre. A Marcha das Vadias não é uma manifestação pura e simplesmente sobre sexo, é uma ação sobre violência, sobre a liberdade de ir e vir da mulher, sobre o direito da mulher sobre seu corpo. Corpo dela, corpo único, corpo belo.


Quando vejo a sociedade se manifestando sobre a Marcha das vadias dizendo que: “Elas se vestem como vadias e depois não querem ser tratadas como uma”; vejo ser exposta a mais pura essência do machismo, a profunda raiz que divide as mulheres entre corretas, merecedoras do respeito, atenção e dedicação e as incorretas, as vadias, que podem ser humilhadas, agredidas, violadas, excluídas. Me inquieta a disseminação dessa frase, me inquieta que tantas pessoas não percebam a essencia horrorosa, cruel, assassina que esta por de trás disso. Quer dizer que existe uma forma de tratar vadias? Quer dizer que temos o direito de violentar uma mulher porque ela usa saia curta, porque ela esta nua numa esquina? É isso?


Penso que, nas criações de meninos e meninas, reforçamos essa triste ideia. Reforçamos implicitamente que ela deve se comportar de tal forma, para não parecer uma vadia, pois se ela for uma vadia poderá ser agredida, e se isso acontecer? Não adianta chorar, ela que provocou. Castramos e retiramos das meninas toda e qualquer expressão que possa ter relação com a mínima sexualidade. Pois, a minima sexualização na mente inferior feminina pode culminar no nascimento de uma vadia, que um dia ainda vai envergonhar a família. Simone de Beavouir nos diz, na parte II do Segundo Sexo, como nos fala sobre a exaltação do pênis do menino e a anulação dos órgãos genitais da menina:
A sorte da menina é muito diferente. Nem mães, nem amas tem reverencia e ternura por suas partes genitais; não chamam a atenção para esse orgão secreto de que só o invólucro se vê e não se deixa tocar; em certo sentido, a menina não tem sexo. Não sente essa ausência como uma falha; seu corpo é evidentemente uma plenitude para ela, mas ela se acha situada no mundo de um modo diferente do menino e um conjunto de fatores pode transformar a seus olhos a diferença em inferioridade. (p.14)

Marcha das Vadias de Porto Alegre/2012. Foto de Ana Rita Dutra.

Essa mesma lógica que a Grande Simone de Beauvoir compartilha conosco em 1949, ainda esta presente em 2012. Ainda esta presente na idealização de uma mulher correta, uma mulher anulada totalmente de sua sexualidade. E, quando essa sexualidade existe ela deve ser vivenciada para o parceiro, dentro de uma relação fechada e que é aceita socialmente. Qualquer relação fora desta regra coloca a mulher como vadia e culpada por toda e qualquer violência que venha a sofrer.


Dia 27 de maio, aconteceu a Marcha das Vadias de Porto Alegre. Alguns veículos de comunicação estimam mais de 2 mil pessoas. Para algumas pessoas deve ter sido a maior quantidade de mulheres que merecem ser estupradas e são a vergonha da família por metro quadrado.


Marcha das Vadias de Porto Alegre/2012. Foto de Ana Rita Dutra

A organização do evento, em grande parte passando pelas redes sociais obteve uma grande resposta, uma resposta positiva. Na Marcha das Vadias do ano passado, creio que éramos menos de 100 mulheres. Lembro-me de ter ficado emocionada com a participação dessas pessoas levantando seus cartazes e dizendo: A culpa nunca é da vítima! Esse ano ocorreu a adesão de mais pessoas, e mesmo que se levante a questão de que algumas pessoas estavam ali sem estarem envolvidas realmente com a problemática, o que pude observar foi que a maioria dos participantes estavam engajados na luta pelo fim da violência contra a mulher, levantando suas bandeiras.


Entre tantos grupos que participaram do evento, destaco um grupo de mulheres defensoras do parto normal humanizado que participaram da Marcha com seus bebês no sling, trazendo cartazes lembrando que a violência obstétrica também é violência contra a mulher. Emocionou-me também as mulheres lésbicas, gritando bem alto: O amor não tem idade, sou lésbica na maturidade. Teve também um senhor, já de avançada idade, que acompanhou toda a Marcha e pedia para que alguns jovens o ajudassem com a bengala na hora em que todos gritavam: “Quem não pula é machista”. Este senhor estava lá querendo pular. Apoiando a luta por um mundo com muito mais liberdade, respeito e sem violência.

Não tenho como citar aqui todos os grupos que participaram, que se engajaram na realização da Marcha de Porto Alegre, mas posso colocar para o resto do Brasil que foi um momento muito importante, emocionante, onde o feminismo tomou as ruas e mostrou a sua força. Mostrou para que veio.


Não encontrei uma só mulher correta entre todas elas… Que bom! Que bom que o que é considerado incorreto em um sistema opressor, violador, esta tomando as ruas. E que cada vez mais possamos ressignificar palavras. Possamos agir e lutar para manter os direitos já conquistados e revindicar novos direitos.


Coloque mais feminino no seu feminismo!

[+] Tumblr – Marcha das Vadias Porto Alegre

Ana Rita Dutra

Pesquisadora, educadora, especialista em Memória Social e Identidades Culturais Blogueira e feminista! Defensora dos direitos sexuais e reprodutivos, da liberdade religiosa, dos direitos das mulheres e meninas! Lutadora e sonhadora! Acredito sim num mundo melhor agora!!!


Fonte: Blogueiras Feministas

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