abril 01, 2015

"A democracia hoje é selvagem. O exemplo espanhol." Por Toni Negri e Raúl Sanchez Cedillo

PICICA: "A “autonomia do político” pode tornar-se uma teoria perniciosa se, sobrevalorizando a instituição e a eficácia do poder estatal, negar a gênese e a legitimidade materiais do fundamento do político. A representação que separa os representantes dos representados, a “vontade geral” (chame-a “povo” ou “unidade popular”), que cria um fundamento místico e inapelável dos representantes, nada disso é o que interessa aos movimentos. Não. O importante passa por (re)criar um fluxo de movimento político, um sistema aberto de governança desde baixo que mantenha unidos — mediante o debate constituinte constante e uma contínua extensão desse debate aos cidadãos — movimento e governo. É possível construir essa ponte, esse conjunto — se todos se rendem à necessidade que se chama “ser maioria”. Este é o empoderamento decisivo."

A democracia hoje é selvagem. O exemplo espanhol.

Por Toni Negri e Raúl Sanchez Cedillo, no dominiopublico.es| Trad. UniNômade


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Dizem os companheiros que deram vida ao Podemos: temos conseguido sair positivamente dos limites da horizontalidade do movimento, tão rica quanto infrutífera. Temos conseguido isso com um gesto político de autoconstituição, de organização e representação. Temos havido a inteligência para compreender que o espaço entre as eleições municipais e as gerais, entre maio e o final do ano, é o único que poderia permitir “romper o cadeado de 78″: no período eleitoral, o adversário se vê obrigado a dispersar-se em seu território; as garantias constitucionais funcionam melhor do que noutras condições e, consequentemente, se tornam zonas possíveis de ruptura do regime atual, profundamente desacreditado e dividido. Além disso, no final de 2015, a frente capitalista talvez esteja em condições de empenhar-se mais na preparação de seu ataque, reorganizando-se depois de ter reagido, e eventualmente demolido, ferozmente, a nossa resistência. Destarte, depois do final deste ano, a janela histórica de oportunidade voltaria a fechar-se por muito, demasiado tempo.

Tudo isso admitimos. Os companheiros de Podemos são os únicos que, na Europa, se atreveram a sério a dar esse passo e construir um eixo vertical, a partir de um movimento com uma potência e uma novidade inauditas, organizando dessa maneira, sem demagogia nem subterfúgios, um caminho de saída para o “democratismo de base” — finalmente impotente ante o que os tempos exigem, para além da contemplação de sua própria horizontalidade. Somente o barão de Münchhausen se jactava de ter conseguido sair sozinho do atoleiro, puxando-se pela gola do casaco até levitar…o Podemos conseguiu.

Apesar disso, para seguir ganhando, não apenas é necessário pensar no adversário, em como derrotá-lo, desarticulando-o e levando-o a perder todo o peso político e constitucional; é preciso estar certo de que o que se está fazendo nessa direção, seja feito na mesma escala majoritária e radicalmente democrática de onde ela nasceu. Nesse processo, não pode haver estreitezas, nem espaciais nem temporais. Apenas para dar um exemplo: o Partido Comunista Italiano, a que tão frequentemente os teóricos de Podemos fazem referência, perdeu toda a sua força junto com a cabeleira, capturado que foi pelo inimigo: no caso do PCI, a estreiteza se chamava “autonomia do político”.

A estreiteza não tarda em converter-se num nó corrediço que vai capturando os dedos de quem colocar a mão — ou o pescoço. Sobre isso, a crítica à moda politóloga do partido político, elaborada há pelo menos mais de um século, é meridianamente clara: não somente sobre os limites da burocratização da estrutura-partido (sobre o que insistiam aqueles teóricos, denunciando, como homens de direita que eram, a nascente força dos partidos operários), como também, e sobretudo, acerca das características do poder de mando, da direção, da liderança, do “carismático” que a autonomia do político determina. Era uma análise correta de tendência, assim como de uma ameaça (uma a mais entre mil outras, mas particularmente atinada), que se somava à luta daqueles politólogos contra os partidos do operariado.

Até aqui, ficamos nos limites do que tínhamos chamado estreitezas “espaciais”. Quanto às “temporais”, se vinculam à questão da “autonomia do político”. É bom deixar claro desde já que nós não nos contamos entre aqueles que negam a possibilidade de aproveitar, da melhor maneira, os tempos da crise, sejam eles eleitorais ou sociais; nem entre aqueles que negam a necessidade de golpear num elo fraco da cadeia de poder de mando, sobretudo se é possível fazer isso no momento em que as forças de protesto social dos cidadãos estão mais fortes. Mas cuidado: um governo é difícil de exercer. Não é algo que alguém possa fazer sozinho. Com maior razão ainda se pensarmos nos regimes atuais de governança, em que a continuidade da ação não apenas deve manter-se durante um longo ciclo temporal, como também está constituída por uma série de atos pontuais. É preciso antecipar a capacidade de o adversário (direita nacional-popular e/ou o “PPSOE”, projetos nacionalistas de capital catalão, Troika europeia e global etc) sobrestar o contra-ataque indefinidamente. Ante esse adversário, na dimensão temporal, “estar dentro” dos movimentos é essencial para a ação contínua de um governo conquistado por Podemos.

Os companheiros bolivianos entenderam isso perfeitamente quando conseguiram que convivessem durante uma longa temporada governo e assembleia constituinte. Foi uma balbúrdia — mas esbanjou força e vitalidade.

O problema do exercício do governo “no tempo” não está apenas em sua eficácia, senão sobretudo na irreversibilidade de suas conquistas. Quem se coqueteia com a “autonomia do político” termina pensando que o desenvolvimento da democracia de base é secundário. Em certas ocasiões, pode chegar a imaginar formas de poder de mando energizadas de uma eficácia exclusivamente carismática: tragicamente, é o que sucede de vez em quando. Mas não é o nosso caso, estamos trabalhando para sair em definitivo dos dilemas weberianos do poder de mando burguês, que até agora tão somente legitimaram soluções autoritárias aos conflitos sociais que as lutas levaram à altura do político.

Sem embargo, voltemos ao problema central que abordamos aqui: da horizontalidade à verticalidade; da agitação e resistência de movimento ao governo. Podemos pede a toda/os a/os companheira/os que raciocinem partindo deste nível. Um nível de governo central? Talvez. Isso se apresenta mais próximo e possível. Por acaso, não seria certo que: somente se encaminhar a ação de todos os cidadãos para uma renovação poderosa do governo das cidades, somente nesse caso, se pode dar o exemplo próximo, palpável, de um projeto constituinte eficaz? Pensamos que sim. Porque a cidade e o município, a vida cidadã e suas formas de encontro podem plasmar figuras sólidas de administração e iniciativa constituinte. As acampadas na metrópole, as cidades e inclusive os pequenos povoados têm sido um lugar de encontro constituinte. Eles têm demonstrado que os modos de vida metropolitanos são modos políticos e produtivos em termos gerais. Fazendo com que interajam democracia e (re)produção da cidade teremos a possibilidade de articular o político, quer dizer, unir a vontade de ganhar e a capacidade de decisão num tecido amplo, plural e ativo de presenças militantes e produção de programas de transformação. O político se joga no interior disto tudo. Aí se faz carne e osso o problema foucaultiano de “como queremos ser governados?”

E acima de tudo, a partir daí, das administrações metropolitanas e municipais, se dá a possibilidade de construir o governo no plano estatal, tijolo sobre tijolo. Num regime biopolítico (a saber, em que o poder de mando, vida, produção, afetos e comunicação se entrelaçam e se confundem como num labirinto), os saltos são difíceis quando não impossíveis — na velha política também se davam assim as coisas, e quando havia saltos, às vezes heroicos, quase sempre era necessário retroceder, cobrindo de instituições artificiosas um terreno atravessado com pressa demais.

Verticalizar a horizontalidade não apenas significa conquistar as capacidades de decisão geral, governo, gestão segundo uma “guerra de movimento”, senão também e sobremaneira ter-se elevado a uma visão mais ampla desde cima: e aqui é quando se compreende que a guerra de movimento não compensa se as posições conquistadas, as frentes defendidas não possam se manter, consolidando-se e desenvolvendo-se gradualmente.

O governo deve garantir o poder das organizações cidadãs — assim se dizia não faz tanto tempo na América Latina, quando o movimento progressista era ganhador — porque somente em tal caso, o governo central se coloca a salvo de capotagens repentinas e/ou organizadas. Por quem? Podemos responder: já não somente pelo adversário que conhecemos, por essas forças reacionárias que enfrentamos, senão por uma hierarquia muito mais forte, que através de Europa se desdobra até as cúspides do governo do capital financeiro.

Não cabe minimizar o reconhecimento de que não temos medo e que é possível ganharmos dessas forças. Mas é preciso tomar cuidado de não tentar o diabo que ainda pode surgir da profundeza do enfrentamento. A nossa força segue sendo as acampadas, os municípios, as mareas, os movimentos — dito de outra maneira, o que o 15-M tornou possível e praticável. Às vezes nos dá a impressão que, para os promotores do Podemos, o “poder” é uma dimensão à parte. Não está certo: o poder é um incremento da capacidade de atuar, é uma perspectiva de ação sobre e nas relações políticas, enquanto “Poder” e “Político”, com maiúsculas, não existem. Não há senão graus diferentes e múltiplos de contrapoder. Mas quase todos os dirigentes do Podemos reiteram, dentro e fora da organização, o mesmo lema: “primeiro tomas o poder, e depois aplicas o teu programa”.

A “autonomia do político” pode tornar-se uma teoria perniciosa se, sobrevalorizando a instituição e a eficácia do poder estatal, negar a gênese e a legitimidade materiais do fundamento do político. A representação que separa os representantes dos representados, a “vontade geral” (chame-a “povo” ou “unidade popular”), que cria um fundamento místico e inapelável dos representantes, nada disso é o que interessa aos movimentos. Não. O importante passa por (re)criar um fluxo de movimento político, um sistema aberto de governança desde baixo que mantenha unidos — mediante o debate constituinte constante e uma contínua extensão desse debate aos cidadãos — movimento e governo. É possível construir essa ponte, esse conjunto — se todos se rendem à necessidade que se chama “ser maioria”. Este é o empoderamento decisivo.


Fonte: UniNômade

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