PICICA: "Mais uma geografia do que uma história, “no sentido de que ela
considera o pensamento em suas diversas formas privilegiando a
constituição de dois espaços: os espaços da diferença e da
representação”. Assim o filósofo Roberto Machado define a filosofia de Gilles Deleuze na entrevista que concedeu com exclusividade, por e-mail, à IHU On-Line. Debatendo aspectos que irá aprofundar em sua conferência A geografia deleuziana do pensamento, no Ciclo de Estudos Filosofias da diferença - Pré-evento do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana,
Machado pontua que “a questão central da filosofia deleuziana é o
pensamento tal como se exerce não só na filosofia, mas também nas
ciências, nas artes, na literatura”. Além disso, “a filosofia de
Deleuze, em vez de supor que o pensamento tem uma história linear e
progressiva, como em Hegel, ou até mesmo uma história descontínua, como
em Foucault, privilegia a constituição de espaços ou de tipos”. A
influência de Espinosa, Nietzsche e Bergson também é objeto de análise
nessa entrevista."
A geografia deleuziana do pensamento
Um pensamento que privilegia a constituição de espaços ou tipos. Assim é a filosofia de Gilles Deleuze, destaca Roberto Machado
Por: Márcia Junges
Mais uma geografia do que uma história, “no sentido de que ela considera o pensamento em suas diversas formas privilegiando a constituição de dois espaços: os espaços da diferença e da representação”. Assim o filósofo Roberto Machado define a filosofia de Gilles Deleuze na entrevista que concedeu com exclusividade, por e-mail, à IHU On-Line. Debatendo aspectos que irá aprofundar em sua conferência A geografia deleuziana do pensamento, no Ciclo de Estudos Filosofias da diferença - Pré-evento do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana, Machado pontua que “a questão central da filosofia deleuziana é o pensamento tal como se exerce não só na filosofia, mas também nas ciências, nas artes, na literatura”. Além disso, “a filosofia de Deleuze, em vez de supor que o pensamento tem uma história linear e progressiva, como em Hegel, ou até mesmo uma história descontínua, como em Foucault, privilegia a constituição de espaços ou de tipos”. A influência de Espinosa, Nietzsche e Bergson também é objeto de análise nessa entrevista.Roberto Machado é graduado em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), mestre e doutor pela Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica, com a tese Science et savoir. La trajectoire de l'archéologie de Foucault. Cursou pós-doutorado na Universidade de Paris VIII, na França. É autor de Nietzsche e a verdade (2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1984); Deleuze e a filosofia (Rio de Janeiro: Graal, 1990); Zaratustra, Tragédia Nietzschiana (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997); Foucault, a filosofia e a literatura (Rio de Janeiro: Graal, 2000); O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006) e Deleuze, a arte e a filosofia (Rio de Janeiro: Zahar, 2009). É um dos autores de Danação da Norma. Medicina Social e A Constituição da Psiquiatria No Brasil (Rio de Janeiro: Graal, 1978). Em 01-04-2004, Machado abriu o evento Ciclo de Estudos sobre Michael Foucault, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos (IHU), com a palestra Foucault, a filosofia e a literatura.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que é a geografia deleuziana do pensamento?
Roberto Machado - Publiquei no final do ano passado um livro chamado Deleuze, a arte e a filosofia (Rio de Janeiro: Zahar, 2009) porque, apesar da importância que as ideias e as atitudes de Deleuze tiveram para mim, e muitos outros, considero seu pensamento extremamente difícil e ainda profundamente enigmático. Procurei, então, investigar em que consiste sua filosofia tomada em conjunto, o que é o sistema deleuziano de pensamento, ou, ainda melhor, qual é o procedimento que lhe possibilita criar seus conceitos filosóficos. Para responder a essa questão, parti da ideia de que a explicação da expressão “geografia do pensamento” é o melhor caminho para expor do modo mais elementar, ou mais geral, como Deleuze constrói sua filosofia, ou cria os conceitos de sua filosofia da diferença, e intitulei a introdução de meu livro “A geografia do pensamento”. Com isso quis dizer: primeiro, que a questão central da filosofia deleuziana é o pensamento tal como se exerce não só na filosofia, mas também nas ciências, nas artes, na literatura, de modo que todos esses saberes estão no mesmo nível, nenhum é superior ou inferior ao outro do ponto de vista da criação; segundo, e mais fundamentalmente, quis dizer que a filosofia de Deleuze, em vez de supor que o pensamento tem uma história linear e progressiva, como em Hegel , ou até mesmo uma história descontínua, como em Foucault, privilegia a constituição de espaços ou de tipos.
Se digo que a filosofia de Deleuze é mais uma geografia do que uma história, é no sentido de que ela considera o pensamento em suas diversas formas privilegiando a constituição de dois espaços: os espaços da diferença e da representação. Assim, para pensar filosoficamente, ele parte sempre do pensamento de determinados filósofos ou não-filósofos que privilegia, sem, no entanto, privilegiar de que época eles são. O importante para ele é se esses pensadores expressam a representação ou a diferença.
IHU On-Line - Em que medida essa geografia pode ser caracterizada como um espaço ontológico e trágico?
Roberto Machado - Não é a geografia que é um espaço. A geografia é um modo de pensar que privilegia o espaço, ou, no caso específico de Deleuze, que propõe a constituição de dois espaços não apenas diferentes, mas antagônicos. Isto é, ao privilegiar determinados filósofos, cientistas, literatos, cineastas e pintores para constituir sua própria filosofia, o objetivo de Deleuze é sempre contrapor dois tipos de espaços: um espaço do pensamento que ele chama “sem imagem”, no sentido de que é pluralista, heterodoxo, ontológico, ético, trágico, e um espaço da imagem do pensamento que é dogmático, ortodoxo, metafísico, moral, racional, que ele chama “pensamento da imagem”. O espaço do pensamento sem imagem é o espaço da diferença; o da imagem do pensamento é o da representação. O que interessa a Deleuze em todos seus estudos é construir um espaço onde seja possível criar — a partir de pensamentos passíveis de entrar em relação — conceitos que expressem um pensamento da diferença, ontológico e trágico, que funcione como alternativa ou como resistência ao pensamento da representação concebido como aquele que privilegia a identidade em detrimento da diferença. Assim, além de sua filosofia estar sempre criticando a subordinação da diferença à identidade, o que ele chama de “pensamento da representação”, o procedimento filosófico deleuziano pretende fundamentalmente dar conta da identidade da diferença, subordinar a identidade à diferença.
IHU On-Line - Analisando a obra de Deleuze como um todo, é correto falar em uma centralidade da geografia do pensamento? Por quê?
Roberto Machado - Considero a geografia do pensamento — no sentido que estou lhe dando de constituição de dois espaços antagônicos onde Deleuze situa os grandes pensadores — central no modo deleuziano de pensar porque acredito que é possível encontrá-la em todos os livros que escreveu. Pois essa posição de dois espaços antagônicos não se reduz ao pensamento filosófico. Ela serve para situar, de um lado, Platão , Aristóteles , Descartes , Hegel etc., filósofos que não são importantes para a constituição da filosofia deleuziana, e, de outro, Hume , Espinosa , Nietzsche , Bergson , Foucault etc., filósofos a partir dos quais ou com os quais ele pensa, e sobre os quais escreveu livros importantes. Mas essa maneira de pensar privilegiando espaços não é uma exclusividade de sua análise da filosofia; é uma propriedade da maneira como ele investiga o pensamento em geral, ou os mais variados saberes. É assim que ele privilegia, na literatura, Artaud , Blanchot , Beckett , Proust , Kleist , Kafka , Melville , Fitzgerald , no cinema, Ozu , Orson Welles , Renais , Godard , Duras , Straub, na pintura, Cézanne , Francis Bacon. E, para ele, o antagonismo entre duas maneiras de pensar existe até mesmo nas ciências, e o leva, por exemplo, a contrapor uma linguística do significante, de Saussure , e uma linguística dos fluxos, de Hjelmslev , que faz uma teoria puramente imanente da linguagem. É possível, portanto, dizer que essa ideia de geografia do pensamento existe desde seus primeiros livros, como Nietzsche e a filosofia ((Lisboa: Edições 70, 1985) e Proust e os signos (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987), do início da década de 60, é aprofundada no seu livro mais importante e mais sistemático, Diferença e repetição, de 68, e retomada nos dois grandes livros das décadas de 80 e 90, Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (São Paulo: Ed. 34, 1995-2004. 5 Vol) e O que é a filosofia? (Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993-1996)
IHU On-Line - Por que sua filosofia é classificada, muitas vezes, como uma filosofia do desejo, no sentido de vontade de potência nietzschiana? Em que Deleuze fundamenta a sua crítica à psicanálise freudiana?
Roberto Machado - Sua pergunta situa Deleuze em relação a Nietzsche e a Freud , um filósofo e um cientista. Isso é interessante, pois me parece que o modo como Deleuze pensa a psicanálise mostra que a relação com os outros saberes ou outras formas de pensamento, embora constitutiva, não é o aspecto determinante da interrelação conceitual por ele realizada. Quer dizer, acredito que, embora não haja superioridade ou preeminência de um saber sobre os outros, do ponto de vista do exercício de pensamento de Deleuze há prioridade da filosofia sobre os outros domínios, ou que o apelo aos saberes não filosóficos — onde funções científicas, perceptos e afetos artísticos lhe suscitam conceitos — funciona fundamentalmente como extensão ou prolongamento de uma problemática definida conceitualmente pela filosofia. Por exemplo, O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (Rio de Janeiro: Imago, 1976) critica a psicanálise por ela reduzir e até mesmo destruir o desejo ao ligá-lo intrinsecamente à representação, à lei, à falta, à privação, e defende que o desejo não se liga à lei nem se define por uma falta essencial; em vez de representação ele é máquina, processo de produção — máquina desejante, produção desejante, processo de autoprodução do inconsciente. Em suma, o livro defende que o inconsciente produz, é uma fábrica, e não uma cena de teatro onde se representa um drama, e que Édipo é o efeito da repressão social sobre a produção desejante.
Desejo como processo de produção
Mas como O anti-Édipo faz isso? Primeiro, ele não é uma rejeição ou uma crítica radical da psicanálise, pois grande parte do aparelho conceitual a partir do qual a análise é feita vem justamente da psicanálise: libido, inconsciente, desejo, esquizofrenia, objeto parcial... O mais importante, porém — e daí minha hipótese sobre o privilégio da filosofia no pensamento deleuziano —, é que a relação de Deleuze com a psicanálise só pode ser totalmente esclarecida a partir da relação que sua atividade filosófica estabelece com a própria filosofia. Neste sentido, penso que sua concepção do desejo como processo de produção — que lhe permite criticar não apenas a posição psicanalítica, mas até mesmo as concepções filosóficas do desejo como falta, como as de Platão e Hegel — tem como condição de possibilidade as filosofias de Espinosa e, sobretudo, de Nietzsche, interpretadas de uma perspectiva que os aproxima bastante, basicamente os conceitos espinosistas de afecção e afeto e o conceito nietzschiano de vontade de potência. Assim, se a esquizofrenia, descrita positivamente, isto é, apreendida como processo, é interpretada em termos de experiência intensiva, grau de intensidade, limiar de intensidade, como Deleuze o faz nesse e em outros livros, é a potência de Nietzsche e Espinosa que — não exclusivamente, mas em última análise — torna isso possível.
IHU On-Line - Quais são os filósofos que tiveram maior influência na filosofia deleuziana?
Roberto Machado - Quando se lê Platão, Descartes, Espinosa ou Kant não se encontra referência a outros pensadores, mesmo que esses autores estejam sempre dialogando com o passado. A meu ver, foi Hegel quem iniciou esse estilo de filosofia em que não há praticamente diferença entre filosofia e história da filosofia ou do pensamento. Apesar das diferenças evidentes, Heidegger e muitos outros estão em continuidade com esse estilo filosófico. Deleuze também está nesse caso. Creio ser possível dizer que atrás de todo pensamento deleuziano há sempre o pensamento de um outro. É nossa falta de cultura que não permite ver isso, e Deleuze é copioso nas referências de pé de página. A ideia de pensar a partir de intercessores é essencial para ele. Mas evidentemente nem todo pensador é um bom intercessor, nem todo pensador lhe serve. Lembro de Deleuze dizendo numa aula que filosofar é passear com um saco e, ao encontrar alguma coisa que sirva, pegar. Essa “alguma coisa” é essencial, pois mostra que é preciso um critério para integrar o pensamento de um outro ao seu próprio modo de pensar. Esse critério é a diferença. Se sua geografia do pensamento agrupa os filósofos em espaços antagônicos tomando como critério a representação e a diferença é porque considera que, além dos filósofos que estão excluídos do espaço em que ele pretende situar seu pensamento, existem filósofos ao lado de quem ele pensa. Ora, mesmo entre esses, alguns, mais do que outros, lhe fornecem instrumentos para pensar a diferença. Penso, portanto, que é sobretudo através de uma repetição diferencial de alguns filósofos por ele privilegiados que sua filosofia se constitui como um pensamento da diferença. Esses filósofos são Espinosa, Nietzsche e Bergson. E os principais conceitos a partir dos quais Deleuze elabora sua filosofia são: univocidade, imanência, intensidade, de Espinosa; vontade de potência, niilismo, eterno retorno, de Nietzsche; multiplicidade, tempo puro, diferença de natureza, gênese, virtual, atual, atualização, de Bergson.
Afirmação da diferença
Mas isso não significa dizer que, quando Deleuze retoma conceitos de outros pensadores, como no caso desses três grandes filósofos, ele esteja buscando sua identidade; o que ele está querendo é afirmar sua diferença. Coerente com o privilégio da diferença que sua filosofia institui, essa repetição se caracteriza por uma retomada criadora de pensamentos que ele relaciona e agencia por expressarem, em maior ou menor grau, a diferença. É, inclusive, esse procedimento de apropriação e modificação das ideias dos pensadores que ele toma por aliados que permite dar conta do diferencial próprio ao seu pensamento, ou do que constitui sua singularidade como filósofo. Neste sentido, a filosofia de Deleuze não só é uma filosofia da diferença; ela também é feita diferencialmente, sempre privilegiando a diferença em relação à identidade.
IHU On-Line - Quais aspectos fazem da filosofia deleuziana uma filosofia da diferença? O que seria uma filosofia desse tipo?
Roberto Machado - Analisando todos os livros de Deleuze, meu livro Deleuze, a arte e a filosofia procura mostrar que ele se insere especificamente nesse espaço do pensamento sem imagem de uma maneira bem precisa: privilegiando a questão da relação entre termos ou entre séries, ou seja, que é sempre a questão da relação que permite esclarecer a leitura deleuziana dos filósofos e dos não filósofos que ele utiliza como intercessores. Mas eu procuro, sobretudo, mostrar que para dar conta do que há de mais singular na sua maneira de pensar isso não basta, porque além de haver no pensamento de Deleuze um privilégio da relação em detrimento dos termos, há também o privilégio de um tipo de relação, a relação disjuntiva. Penso, portanto, que a filosofia de Deleuze é um pensamento da diferença porque, ao procurar responder à questão central de sua filosofia: “O que significa pensar?”, ele sempre privilegia a disjunção, ou, utilizando uma expressão que Kant usa para caracterizar o sublime, o “acordo discordante”. Em Diferença e repetição, por exemplo, quando se refere ao exercício superior das faculdades — que se opõe a seu uso representativo —, é a um exercício disjunto que Deleuze apela. O que ele chama de exercício superior é aquele em que, ao comunicar a uma outra faculdade a violência que a leva a seu limite próprio — a seu máximo de potência ou limiar de intensidade — cada faculdade produz um acordo discordante que exclui o privilégio da identidade. No exercício superior ou transcendente das faculdades é a diferença que articula ou reúne. O lugar onde essa ideia aparece elaborada com mais rigor e criatividade é Diferença e repetição — seu livro mais importante, sem a leitura do qual é impossível compreender sua filosofia. Mas esse é o tema de todos os seus estudos: sobre filósofos, artistas ou literatos. Assim, enquanto o aspecto crítico de sua filosofia tem sempre como alvo um tipo de relação que subordina a diferença à identidade, o procedimento filosófico deleuziano é fundamentalmente o projeto de afirmar a divergência ou a disjunção das séries para dar conta da identidade da diferença. Por isso, o objetivo mais ambicioso de meu livro Deleuze, a arte e a filosofia é apresentar a diferença como o invariante capaz de esclarecer as principais interpretações de filósofos, literatos, pintores e cineastas realizadas por Deleuze, para dar conta do que constitui a singularidade dessa filosofia instigante e sugestiva.
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Roberto Machado já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Confira:
• Nietzsche, Foucault e a loucura como experiência originária. Revista IHU On-Line, número 203, de 06-11-2006.
Fonte: IHU
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