PICICA: "Devir é um dos principais conceitos
criados por Deleuze e Guattari e é essencial para entender como seu
pensamento funciona. Os devires se definem em um campo de
multiplicidade, desdobramento da diferença, onde as forças que
constituem o corpo entram em uma zona de vizinhança, fronteiriça, uma
co-presença: o barco deixa o porto seguro e encontra o mar (é para isso
que navios são feitos), algo se transforma ao se relacionar com este
oceano de forças. Há uma multiplicação de si no acontecimento, no
encontro."
Devir é um dos principais conceitos
criados por Deleuze e Guattari e é essencial para entender como seu
pensamento funciona. Os devires se definem em um campo de
multiplicidade, desdobramento da diferença, onde as forças que
constituem o corpo entram em uma zona de vizinhança, fronteiriça, uma
co-presença: o barco deixa o porto seguro e encontra o mar (é para isso
que navios são feitos), algo se transforma ao se relacionar com este
oceano de forças. Há uma multiplicação de si no acontecimento, no
encontro.
Para quem quer me seguir eu quero mais
Tenho o caminho do que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir
Invento o cais
E sei a vez de me lançar”– Milton Nascimento, Cais
Mas não podemos confundir o devir nem com
semelhança, nem com analogia. Ele é real, muito real, é possível
senti-lo em todas as células do corpo. O devir abre a forma homem para
modos não humanos de individuação. Seu objetivo é abrir para a criação
de novos territórios, abre para a criação de novas subjetividades.
Precisamos deste conceito de Deleuze e Guattari para pensar outros
processos de subjetivação pois nele encontramos uma originalidade para
as relações de velocidade e repouso que constituem o corpo.
O devir é sempre um ponto de partida, mas
que não se sabe necessariamente onde vai chegar. O devir-animal,
criança, mulher, são apenas os primeiros passos de uma dança sem
coreografia. Troca-se um céu por um deserto que deve ser povoado. Há de
se aprender a improvisar; uma arte dos encontros se faz a cada passo,
criações contínuas serão exigidas em cada curva deste caminho. Mas não
precisamos nos preocupar com a solidão, um devir acontece por expansão,
contágio, ou seja, ele sempre encontra companhias em sua viagem. Os
processos de devir encontram uma alegria enorme que retorna de sua
própria efetuação. A potência desta expansão não quer capturar o outro! A
liberdade começa a andar juntamente com a liberdade do outro! O caminho
torna-se a casa do nômade, um caminho mais livre e com mais companhias!
Que o devir funcione sempre a dois, que aquilo que se devém devenha tanto quanto aquele que devém, é isso que faz um bloco, essencialmente móvel, jamais em equilíbrio” – D&G, Mil Platôs 4, p. 112
Podemos pensar em uma tipologia dos
devires, para dar conta de algumas de suas possibilidades. Claro que não
conseguiríamos dar conta de todas as variações porque o devir
rapidamente cai em zonas desconhecidas. Suely Rolnik e Guattari falam de
um devir-cidadão, devir-negro, devir-índio, devir-homossexual e outros
dos quais não falaremos aqui. Há sempre mais modos de experimentar a
vida do que poderíamos descrever. Por isso todos os devires escapam das
representações, eles só podem indicar algumas trilhas, pouco usadas e
ainda desconhecidas pela maioria.
Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de devir, e através das quais devimos. É nesse sentido que o devir é o processo do desejo” – D&G, Mil Platôs 4, p. 67
Todo devir é minoritário. Um elemento de
variação que não se encaixa, que escapa, que se descola. Acelerar a
diferença é devir, deixando para trás o peso que impede os corpos de se
moverem. Por isso mesmo não há qualquer pretensão de universalidade. O inconsciente
opera por conexões, é aí onde está o acontecimento e se opera a
diferenciação, a diferença brota entre duas multiplicidades que se
encontram. A minoria é um elemento diferenciador da maioria, que nasce
destes encontros. Os dois não se definem pela quantidade, mas sim pela
qualidade. Só podemos pensar em um sujeito em devir se ele se descolar
entre a maioria.
Temos um padrão molar: homem, branco, ocidental, adulto, racional, heterossexual, habitante de cidades. “O
homem é majoritário por excelência, enquanto que os devires são
minoritários, todo devir é um devir-minoritário. […] Maioria supõe um
estado de dominação” (D&G, Mil Platôs). Este padrão estabelece
uma norma, um modelo cuja principal função é orientar o campo de forças
que constituem o homem, os agenciamentos que o produzem. Quando
estabelecemos uma ideia (estamos próximos de Platão aqui), que paira
sobre os homens, todas as relações são submetidas ao modelo
transcendente. O ser humano aprende a se conduzir para alcançar este
padrão. As estruturas são mantidas por analogia e imitação. Mas uma
imagem não tem devir! Deleuze e Guattari, ao criarem este conceito
procuram escapar destas formas de conduta, saindo pela tangente,
passando por entre os modelos. A verdadeira revolução acontece quando
abre-se espaço para a diferença não constrangida.
Os devires não são fenômenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela, núpcias entre dois reinos” – Deleuze & Parnet, Conversações, 66
Uma mulher está em relação secundária
para o homem, como esposa, mãe, dona de casa? A forma mulher talvez,
estabelecida pelo poder. Mas o devir-mulher consiste em pegar as
partículas interessantes de cada modelo colocadas em segundo plano. Da
forma mulher, que é contraposta à forma homem, o que destoa? Podemos
pegar essas pequenas linhas de fuga para desmontar a figura da mulher e
usar seus afetos e intensidades para escapar das identidades e ganhar
velocidade no processo, aumentar a potência. Implicação contínua do ser
com o fora.
Saindo da representação, não caímos na
armadilha da imitação e da analogia. Não se trata de uma imitação,
porque não há modelos, não fazemos tal qual uma criança, não queremos
voltar à pré-escola, não colocamos vestidos e passamos batom para entrar
em um devir-mulher, não uivamos para entrar em um devir-animal, não
quebramos vidraças para entrar em um devir-revolucionário. A imitação é
um fracasso. Ela pode servir para, em um primeiro momento, entrar em uma
zona de vizinhança, mas devir não é seguir um modelo, é uma relação
real para além de toda correspondência, sem semelhança, nem homologia.
Comprar uma máquina de escrever e sentar no Starbucks não é entrar em
devir-escritor.
Devir também não é analogia. Porque ainda
se está nas estruturas que conduzem os fluxos do desejo. O devir é um
fluxo que escapa, que cria buracos na estrutura e faz verter desejos que
estavam antes condicionados e canalizados. Não me comporto como o
lobo-alfa para, na minha empresa, entrar em devir-animal e ser
promovido; não me comporto de modo infantil para, no meu relacionamento,
entrar em devir-criança e ser amado. Nosso ponto de partida é a perda
de fundamento, o corpo não gira mais em torno de seu eixo, nem de outro
corpo maior. Agora ele passa entre, traça uma tangente.
É preciso começar a se pensar em uma ética dos devires que ponha fim à moral do ressentimento.
Estamos em uma luta constante para superar o niilismo e não cair nos
buracos subjetivos que são verdadeiras máquinas de ressentimento. Um
devir nunca se conclui ou se concretiza, ele é um processo de
agenciamento do desejo, um modo de vida que se conduz pelas
intensidades. Ele também não é unitário, são coletividades moleculares,
composições ativas! Queremos criar mapas de intensidade: “Sempre se tem de partir de alguma coisa, ou seja, sempre se tem que dispor de uma cartografia mínima”
(Guattari & Rolnik, Micropolítica). Todo devir é um rizoma, uma
abertura, uma conexão. Buscar uma ética dos devires é mover-se pelos
terrenos de uma ética do menor, mais solta, que resiste frente aos
padrões molares. Estabelecer novas alianças, não filiativas. Nem reprodução, nem assimilação: o devir é uma transvaloração.
Devires:
- Devir-mulher
- Devir-animal
- Devir-criança
- Devir-revolucionário
- Devir-imperceptível
- Devir-escritor
Todos os devires singulares, todas as maneiras de existir de modo autêntico chocam·se contra o muro da subjetividade capitalística” – Félix Guattari e Suely Rolnik, Micropolítica – Cartografias do Desejo, p. 50
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