março 05, 2016

Negacionistas. POR Bernardo Carvalho (BLOG DO IMS)

PICICA: "O negacionista costuma negar os fatos enquanto ainda pode contar com a ignorância a seu favor. Quando nega a existência das câmaras de gás nos campos de concentração, por exemplo, é porque conta com a sobrevivência do antissemitismo entre seus leitores e ouvintes. Ao contrário do louco, é um calculista. E quando não é apenas burro, é basicamente um covarde que só age enquanto vê alguma chance de manipular a opinião pública e de tirar algum proveito disso."
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"É fácil gritar inconsequências por mero oportunismo, quando ainda se pode contar com o respaldo da ignorância ambiente, e depois sair de fininho. Difícil é investir contra os fatos com a força dos loucos."


Negacionistas

POR Bernardo Carvalho 

Bernardo Carvalho | 02.03.2016


No final dos anos 80, quando eu tinha acabado de ser contratado como repórter pela Folha de S. Paulo, a editora de ciência decidiu publicar um grande artigo com o virologista Peter Duesberg, que defendia que a causa da aids não era o HIV e sim o comportamento dos doentes. Um amigo francês, de passagem pelo Brasil, ficou de queixo caído que um jornal daquele porte publicasse um artigo daqueles, com tamanho destaque, o que, no melhor dos casos (e com bastante benevolência), podia ser lido como uma provocação infantil e irresponsável. Não era preciso ser nenhum cientista para entender o moralismo e a precariedade científica da lógica de Duesberg. Imagine se você fosse portador do HIV e depois de ler o artigo passasse a acreditar, aliviado, que bastava se comportar bem (seja lá o que isso queira dizer do ponto de vista científico) para não desenvolver a doença.


Penguins e meio a geleiras derretidas (AP/N. Pisarenko)
Lembrei do caso por conta de uma amiga que, apesar de muito inteligente, acredita em quase tudo o que lê na internet, aliás como a maioria das pessoas. Como não uso Facebook nem Twitter, só posso supor, pelo que ela de vez em quando não resiste em me repassar, as barbaridades das quais tenho sido poupado. A última que recebi da minha amiga foi a de uma internauta que, apoiada em um suposto relatório médico, garantia não só que o surto de microcefalia nada tinha a ver com o vírus zika (a relação entre uma coisa e outra, de fato, ainda não está cientificamente provada, embora seja bastante provável), mas que era antes consequência de mais uma política desastrada do governo, uma vacina bichada distribuída à população de grávidas etc.

Meses antes, alguém me repassou um texto postado no Facebook por uma mulher indignada depois de o The New York Times ter publicado, em editorial, que era melhor para o Brasil tentar vencer a crise com Dilma do que se atolar no lodaçal de um processo de impeachment que se estenderia pelo resto de seu mandato. “Gente!”, escrevia a internauta, “Vocês não estão vendo que a matéria não é assinada? É matéria paga com o nosso dinheiro!”

Há uma linha muito tênue entre a má fé e a burrice no negacionismo. Mas há casos em que as consequências são irreparáveis, como na propagação irresponsável de teses como a de Duesberg, que acabou sendo investigado por má conduta e conflito de interesse. Quem paga pela provocação infantil (ou interessada) de pôr fogo na casa? Se o argumento dos céticos negacionistas é se sublevar contra a hegemonia da mentira, por que acabam se calando e desaparecendo quando o consenso se torna mais irrefutável? Não seria o momento de gritar ainda mais alto contra a cegueira generalizada? Não é essa a coragem própria da dissidência? Não lutavam pela verdade? Ou será que entendi errado?

O negacionista costuma negar os fatos enquanto ainda pode contar com a ignorância a seu favor. Quando nega a existência das câmaras de gás nos campos de concentração, por exemplo, é porque conta com a sobrevivência do antissemitismo entre seus leitores e ouvintes. Ao contrário do louco, é um calculista. E quando não é apenas burro, é basicamente um covarde que só age enquanto vê alguma chance de manipular a opinião pública e de tirar algum proveito disso.

Quando eu era correspondente em Nova York, às vésperas da guerra capitaneada pelos Estados Unidos contra o cigarro, comecei a ser convidado de modo insistente por grandes fabricantes da indústria do tabaco, primeiro para jantar nos melhores restaurantes da cidade, depois para visitar, em primeira mão, exposições e outras atividades culturais patrocinadas por eles e por fim para assistir a palestras de médicos e biólogos que provavam por A mais B que fumar não fazia mal à saúde. Onde foram parar esses cientistas?

E onde foram parar os céticos do aquecimento global? Os que garantiam até outro dia que a associação entre queima de combustível fóssil e efeito estufa era uma fraude? Calaram-se? Cansaram de gritar tanta verdade? Gente! Vamos unir essa força! Não esmoreçam, continuem a dar a cara a tapa! É essa a hora! Ou não é? Onde estão os que diziam que o HIV era apenas um detalhe da aids? Sumiram? Mas logo agora, depois de o coquetel de antivirais ter salvado tantas vidas? Será que o preço da má fé e da burrice é só o esquecimento?

Pois eu acho que não se deve esquecer essa gente nunca. Quem acha (ou achou) que o HIV não tem nada que ver com a aids e quem acha (ou achou) que a queima de combustível fóssil não tem nada que ver com o aquecimento global devia continuar achando e dizendo o que acha em alto e bom som, até o fim, nem que fosse para provar sua coragem e que acredita mesmo no que diz. É fácil gritar inconsequências por mero oportunismo, quando ainda se pode contar com o respaldo da ignorância ambiente, e depois sair de fininho. Difícil é investir contra os fatos com a força dos loucos. Para quem cultiva o espírito desinteressado da contradição, o oportunismo dos negacionistas chega a ser aviltante. Afinal, se o dissenso era mesmo tão íntegro, por que abrir mão dele tão rápido? Só para passar a gritar a próxima barbaridade na lista? 



Bernardo Carvalho

Bernardo Carvalho é escritor e jornalista, autor dos livros Nove noites, O filho da mãe e Reprodução, entre outros.

Fonte: BLOG DO IMS

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