novembro 02, 2015

Duas cartas e sete perguntas para Drummond (Parte 2), por Christiane Brito (OBVIOUS)

PICICA: "“Talvez. O certo é que nunca.” Este verso do poeta define o meu estado de espírito em relação ao mistério que envolveu meu reencontro póstumo com ele, em 1988. O “talvez” tornou-se uma assombração que me visitou algumas vezes até que o “nunca”, enfim, falou com meu coração."

Duas cartas e sete perguntas para Drummond (Parte 2)


“Talvez. O certo é que nunca.” Este verso do poeta define o meu estado de espírito em relação ao mistério que envolveu meu reencontro póstumo com ele, em 1988. O “talvez” tornou-se uma assombração que me visitou algumas vezes até que o “nunca”, enfim, falou com meu coração. 


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O ano era 1988, não sei a data ao certo, mas me lembro de cada momento naquele dia. Amanheci no Rio depois de uma viagem de ônibus. Às seis da manhã estava em Copacabana na casa de uma prima folheando a lista telefônica em busca do telefone do Carlos Drummond de Andrade. Encontrei, como se ele nunca tivesse partido da rua Conselheiro Lafayette, onde recebeu minhas cartas. 

Liguei pouco depois. O plano era entrevistar “Dolores”, a viúva do poeta: “Ela nunca falou com a imprensa, quem sabe você consegue alguma coisa?” A proposta foi feita por um editor que sabia das minhas cartas trocadas com o Drummond e jamais publicadas. Ele sabia também que eu ia para o Rio ter uma conversa com o Walter Salles Junior, como repórter da Elle, e propôs que eu fizesse a tentativa, quem sabe, conseguia uma matéria com a viúva.

Dolores não me atendeu, mas uma mulher gentil explicou que quem falava com a imprensa era o Pedro, o neto mais novo, deu-me o telefone. Liguei, ele marcou nossa entrevista para o fim da tarde do mesmo dia, na rua Barão da Torre, Ipanema. Pelo que eu sabia da leitura de jornais, aquele era o endereço onde havia morado Maria Julieta, a filha única do Drummond, mãe do Pedro. 

Ainda tive tempo de ir à praia, corpo ao sol, cabeça no relógio. Uma da tarde eu estava na Chácara do Céu, bem diante do Walter, naquela época Waltinho. Ele me recebeu com a maior boa vontade apesar de ocupadíssimo, gravando comercial de moda para a Riachuelo. Parou só para cortar rapidamente o cabelo – chegava quase aos ombros, pela falta de tempo de ir ao barbeiro – e falou-me do seu primeiro longa-metragem, ainda projeto, “A grande arte”, baseado em livro do Rubem Fonseca. Queria um rosto novo para a protagonista, estava negociando com a Sílvia Pfeifer, quase desconhecida na época, mas ela havia gravado um comercial que fez muito sucesso, o que o deixou com dúvidas quanto à escolha. 

Se ele tinha dúvidas, eu, nenhuma. Precisava sair correndo para estar em Ipanema às 16. Assim foi.

Vinho derramado

Pedro Augusto Graña Drummond conversou comigo sem reservas, como um velho conhecido. Jovem como eu, pareceu-me bem resolvido em relação à perda da mãe e do avô há menos de um ano, embora comovido em vários momentos. 

Para variar, como nas cartas para o Drummond, eu não tinha pauta e tudo foi se improvisando graças à gentil colaboração do Pedro. Ele reconstituiu os 12 dias de agosto de 1987, entre a morte da sua mãe e a do seu avô.

O Carlos recebeu a família (genro atual, acho que também o ex-genro, pai dos três netos, e os três netos: Carlos Manuel, Luís Maurício e Pedro Augusto) e amigos íntimos após o enterro da filha no seu apartamento, estava completamente arrasado. Pegou uma garrafa de vinho, safra especialíssima, para mostrar a alguém e ela se arrebentou no chão: “Estava sendo guardada para uma ocasião feliz, que fosse muito especial... o Carlos sabia que essa ocasião jamais viria e talvez por isso a tenha quebrado sem querer”, explicou-me o Pedro.

Drummond com taça na cabeça.jpeg

Carlos chamou Pedro para um canto e disse que ele seria o testamenteiro intelectual da família, guardião da obra -- Drummond tinha acabado de organizar um livro, “Farwell” para publicação, e havia ainda muito material inédito sem destino certo. 

Mal conhecendo o Drummond como era o meu caso, apesar disso, intuía que um autor que queimara diários para não se expor certamente se preocupava com inéditos esparsos que ficariam para a posteridade.

O poeta em sonhos

Carlos havia sido internado já em 1986, estava muito doente, provavelmente seu único plano agora era esperar a morte depois de viver o contrassenso de enterrar a filha, fechar seus olhos: “Tinha que ser o contrário”, declarara incansavelmente à imprensa, que o cercava em busca de sensacionalismo. 

Drummond no enterro da filha.jpg Drummond no enterro da filha; Pedro é o primeiro, da esquerda para a direita, amparando a avó

Pedro contou que, com a morte de Maria Julieta, Carlos logo piorou e voltou para o hospital. O neto o visitava e levava um gravador com fita de música clássica; fazia-lhe algum bem, já que consolo não havia.

Quase duas semanas depois – Maria Julieta morreu no dia 5; Carlos, no dia 17 – os netos, acompanhados da avó, Dolores, refizeram a longa caminhada pelo cemitério São João Batista até o túmulo da família. Pedro me pareceu bem desamparado ao recordar, disse que reparara no túmulo da Carmen Miranda e que ela morrera no mesmo dia da sua mãe: 5 de agosto.

Se o Drummond, com 84 anos e longa familiaridade com a literatura e a fama, não parecia saber muito bem o que fazer com os textos que sobreviveriam a ele, imagino as dúvidas do Pedro.

Tive, novamente, dificuldades para fazer perguntas, assim como nas cartas trocadas com Drummond. Não perguntei sobre Dolores, se estava doente e era por esse motivo que não poderia assumir o legado do marido nem falar com a imprensa. Calei tudo porque o que mais me interessava era mesmo ouvir.

Drummond e Dolores 1942-OK.jpg Dolores e Drummond em "idílio", segundo a dedicatória para a filha (1942)

Pedro contou-me que era agnóstico e tinha uma visão da morte como a do livro “O pássaro azul” --- Drummond traduziu a linda fábula "L'Oiseau bleu", de Maurice Maeterlink, em 1962. 

Na história, as crianças, protagonistas, buscam o pássaro e, no percurso fantástico, reencontram os avós já falecidos exatamente na casa em que moravam quando vivos, adormecidos como se esperassem os netos despertá-los do sono do esquecimento. Ao final da visita, pedem: “Pensem em nós para que possamos despertar outras vezes”. 

“Penso muito no Carlos, faço perguntas para ele e muitas vezes ele as responde em sonhos”, explicou Pedro. Percebi ali um canal de comunicação aberto, verdadeiro. Os incrédulos que me perdoem, mas “há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonham nossas vãs filosofias”. 

Eu e a namorada do Carlos

Foi assim que chegamos ao mistério da vida do Carlos. Pedro disse que, na próxima vez em que eu fosse ao Rio, me levaria ao escritório do avô para ver tudo (meu coração disparou com a perspectiva) e acabou pedindo meu telefone e endereço, queria enviar-me alguns poemas inéditos para eu colocar na matéria. Revelou com toda naturalidade do mundo: “A namorada do Carlos tem muitos, alguns já estão reunidos para um livro de poemas eróticos”.

Falou dela com intimidade, pareceu-me que se frequentavam, que a situação era perfeitamente familiar. Não tive, confesso, vontade de perguntar nada. Ele não me pediu segredo, mas contou com tanta naturalidade que certamente se sentiu seguro. A repórter em mim retirou-se definitivamente da cena, por pudor, ética, susto, não sei.

Voltei para São Paulo, onde morava e moro; alguns dias depois o Pedro me ligou. Achei que teria novidades para a matéria, mas não. Falamos sobre tudo, começamos uma amizade. 

A essa altura, eu já havia escrito a matéria, mas não agradara o editor. Simplesmente porque lhe contei, extraoficialmente, sobre a namorada do Carlos e esse passou a ser o único tema de interesse do jornalista. Era um cara querido, que eu respeitava muito, e que talvez estivesse certo na insistência comigo. Dizia que eu tinha um furo em mãos, que o Pedro não pedira segredo e que só me cabia escrever a respeito.

Talvez

Conforme prometera, Pedro me enviou inéditos, em especial o último poema de Carlos: “Elegia a um tucano morto”. Escrito em janeiro de 1987, foi dedicado ao Pedro (por conta de um tucano que ele ganhara de uma ex- namorada e que havia morrido havia poucos dias) e lido “à sobremesa” no jantar de aniversário do neto (Pedro nasceu em 30 de janeiro de 1960).

É um poema triste, não só porque fala de morte, mas porque se refere a “um caderno de frustrações desta vida”, com o qual Carlos certamente estava se havendo, já que não podia fazer nada contra a doença que a filha enfrentava.

Mas os inéditos -- entre eles, um poema erótico do livro “Amor Natural”, que só seria publicado em 1992 --- não bastaram. Nada, nada tinha mais importância – para o editor -- do que a namorada do Drummond. Eu reescrevi muitas e muitas vezes a matéria, que afinal foi para a gaveta. O editor e eu continuamos amigos até o fim da vida dele (uns 15 anos depois), apesar da minha recusa em revelar publicamente o segredo do Carlos.

casal ombro seio.0K.jpg Ilustração de Milton Rodrigues Dacosta, no livro Amor Natural (1992, Editora Record)

Não me arrependo: a morte não enterrou a discrição que poeta cultivou em vida; amigos e parentes sempre a respeitaram. Uma única vez, muitos anos depois, a namorada foi revelada, pela própria, com plenos direitos já que era protagonista como Drummond desse amor, mas foi só. 

Sem dúvida, há os poemas eróticos que ela guardou e que foram publicados, mas passam galáxias distante da banalidade de um evento pessoal. São universais como a poesia em máximo esplendor. 

Como definiu Affonso Romano de Sant’Anna, “as palavras às vezes copulam semanticamente”, e o que encontramos nestas páginas -- trecho da apresentação do livro -- “é o êxtase poético de um autor que, ao mergulhar fundo em suas próprias sensações, desnuda também o leitor, que se vê frente a frente com suas próprias contradições ao pensar nos limites entre o erótico e o pornográfico, o sexo e o amor.”

Após saber da namorada, a Lygia, passei a entender melhor o poema “Quarto em desordem”, no qual Drummond diz que “na curva perigosa dos 50”, derrapou no amor (apaixonaram-se em 1951). 

Ouvi ou li em algum lugar que ela o fascinou com suas saias pregueadas que deixavam antever as “coxas brancas” quando subia em escadas para alcançar livros no alto das estantes.

Drummond amou tanto, da família aos amigos, dos conhecidos à humanidade, que só poderia morrer de amor demais pela filha. Já havia perdido um filho, ainda bebê, Carlos Flávio, em 1927, pelo qual sofrera imensa e quase irremediavelmente não viesse a Maria Julieta para a sua vida em 1928. 

Só que nunca

O Pedro começou a me escrever: cartão de feliz ano novo enviado diretamente de Buenos Aires (onde nasceu e onde passava férias), postais de relançamentos do Drummond (criados pelo próprio Pedro, que é artista plástico e gráfico; na época, também atuava, no Teatro Tablado, e fazia cenários para o Miguel Falabella) e livros relacionados ao Drummond, como “Lição do Amigo”, as cartas do Mário de Andrade, que Drummond organizou e publicou originalmente em 1982. A reedição, de 1988, foi talvez a segunda coisa que o Pedro me enviou por correio, depois dos poemas inéditos. 

É logico que devorei o livro para não ser devorada por todo aquele enigma de presenças-ausências: Carlos, Dolores, namorada do Carlos, Pedro... Nas cartas, Mário exalta o dom de crer da juventude na juventude de Carlos e alivia a melancolia e pessimismo do poeta, que ainda trazia marcas do “caldeirão de fritar sonhos”: o internato em Itabira de onde foi expulso por “insubordinação mental”.

Carlos e Mário foram grandes amigos, debateram intimamente os mais difíceis assuntos, mas poucas vezes se encontraram na vida. Pedro, que julgava o Carlos como “patrono da nossa amizade”, temia que tivéssemos o mesmo destino.

Em um dia inesquecível, recebi uma aquarela que ele pintou para mim. Era um lápis de cor que decolava como “espaçonave” da terra para as estrelas e, no verso, uma dedicatória com o desejo de que nossa amizade também voasse longe.

A guerra do Irã-Iraque acirrou, tive medo de que o mundo acabasse antes que nos conhecêssemos melhor, mas não. A guerra acabou, o muro de Berlim caiu, nossa amizade seguiu. Embora sem reencontros, exatamente como Carlos e Mário. 

Pedro costumava vir a São Paulo por conta do seu trabalho com o teatro, mas coincidia sempre com os meus fechamentos malucos de jornalista. Nunca mais nos vimos a não ser rapidamente, quando ele me deu convites para eu assistir "A partilha" (de 1991), peça do Falabella com cenário do Pedro que rodou o mundo. 

Em uma das últimas vezes em que nos falamos, por telefone, não sei se em 1994, 1995, ele havia acabado de fazer o site do Carlos. Ditou-me o endereço, achei complicadíssimo aquele “http” seguido de três dáblius. Maravilhoso mundo novo no qual o poeta ingressou pioneiramente por obra e graça do neto. 

Um dia nunca mais nos falamos. Pedro é discreto e afável como o Carlos e em nosso relacionamento, embora um pouco mais longo, repeti o das minhas cartas com o seu avô: sem perguntas e com admiração. 

Ele não sabe que me inspirou no meu último reencontro, póstumo, com Drummond: resolvi consultar o próprio poeta em relação a revelar a existência da Lygia. E ele me disse “não”, respondendo-me do mesmo modo como respondia às questões do Pedro: em sonho, só que de olho aberto. 

Em 1988, vi, revi, li, reli Drummond e tive a mesma certeza que tenho hoje, de que ele rejeita toda a publicidade em torno do seu nome, boa ou má. E, no que se refere à intimidade, já disse tudo na sua poesia. Inclusive sobre a Lygia. Termino justamente com o poema “A moça mostrava a coxa”, que está em “Amor Natural” (Editora Record, 1992). Certeza absoluta de que escreveu pensando na namorada, não tenho, mas tendo a acreditar que sim.

Marta Penter  best best.PNG Obra sobre fotografia de Marta Penter, artista plástica gaúcha

A moça mostrava a coxa

A moça mostrava a coxa,

a moça mostrava a nádega,

só não me mostrava aquilo

— concha, berilo, esmeralda —

que se entreabre, quatrifólio,

e encerra o gozo mais lauto,

aquela zona hiperbórea, misto de mel e de asfalto,

porta hermética nos gonzos

de zonzos sentidos presos,

ara sem sangue de ofícios,

a moça não me mostrava.

E torturando-me, e virgem

no desvairado recato

que sucedia de chofre

à visão dos seios claros,

sua pulcra rosa preta

como que se enovelava,

crespa, intata, inacessível,

abre-que-fecha-que-foge,

e a fêmea, rindo, negava

o que eu tanto lhe pedia,

o que devia ser dado

e mais que dado, comido.

Ai, que a moça me matava

tornando-me assim a vida

esperança consumida

no que, sombrio, faiscava.

Roçava-lhe a perna. Os dedos

descobriam-lhe segredos

lentos, curvos, animais,

porém o máximo arcano,

o todo esquivo, noturno,

a tríplice chave de urna,

essa a louca sonegava,

não me daria nem nada.

Antes nunca me acenasse.

Viver não tinha propósito,

andar perdera o sentido,

o tempo não desatava

nem vinha a morte render-me

ao luzir da estrela-d’alva,

que nessa hora já primeira,

violento, subia o enjoo

de fera presa no Zoo.

Como lhe sabia a pele,

em seu côncavo e convexo,

em seu poro, em seu dourado

pêlo de ventre! mas sexo era segredo de Estado.

Como a carne lhe sabia

a campo frio, orvalhado,

onde uma cobra desperta

vai traçando seu desenho

num frêmito, lado a lado!

Mas que perfume teria

a gruta invisa? que visgo,

que estreitura, que doçume,

que linha prístina, pura,

me chamava, me fugia?

Tudo a bela me ofertava,

e que eu beijasse ou mordesse,

fizesse sangue: fazia.

Mas seu púbis recusava.

Na noite acesa, no dia,

sua coxa se cerrava.

Na praia, na ventania,

quanto mais eu insistia,

sua coxa se apertava.

Na mais erma hospedaria

fechada por dentro a aldrava,

sua coxa se selava,

se encerrava, se salvava,

e quem disse que eu podia

fazer dela minha escrava?

De tanto esperar, porfia

sem vislumbre de vitória,

já seu corpo se delia,

já se empana sua glória,

já sou diverso daquele

que por dentro se rasgava,

e não sei agora ao certo

se minha sede mais brava

era nela que pousava.

Outras fontes, outras fomes,

outros flancos: vasto mundo,

e o esquecimento no fundo.

Talvez que a moça hoje em dia…

Talvez. O certo é que nunca.

E se tanto se furtara

com tais fugas e arabescos e tão surda teimosia,

por que hoje se abriria?

Por que viria ofertar-me

quando a noite já vai fria,

sua nívea rosa preta

nunca por mim visitada,

inacessível naveta?

Ou nem teria naveta…

(Carlos Drummond de Andrade)

Christiane Brito

Não sou confiável porque já passei dos 30, prefiro que riam comigo do que me levem a sério..

Fonte: Obvious

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