Geoglifos da Terra
Parte I. Desertos do real
"Na própria precisão com que outras passagens lembradas se oferecem, de entre impressões confusas, talvez se agite a maligna astúcia da porção escura de nós mesmos, que tenta incompreensivelmente enganar-nos, ou, pelo menos, retardar que perscrutemos qualquer verdade" (Guimarães Rosa).
Geoglifos são rastros, marcas deixadas na terra e nas pedras. Constituem desenhos, figuras geométricas, podendo representar formas humanas ou animais. Podem expressar sinais de povos antigos, muitos datam de milhares de anos do tempo terrestre. Não importa como os vejamos, a partir dos muitos olhares que venham representar, nos ajudam a navegar no mapa de nossas histórias, ancestrais ou contemporâneas. Diferentemente de outras geometrias da natureza, os Geoglifos são resultados de muitos outros que aqui estiveram antes de nós, em toda sua riqueza, variedade e possibilidades sempre abertas.
Nos tempos em que vivemos, estamos a desenhar sob nosso interior, nas paisagens da natureza e nas novas pedras que temos erguido, novos rastros, novas geometrias, novos geoglifos. Que mundo é este, que conforma esta nossa existência? Que sentido temos dado aos nossos fazeres-existir-pensar e sentir? Como decifrar os novos geoglifos de nossas pegadas? Onde estão nossos imaginários que nos ajudaram a descobrir lugares, sujeitos, continentes, diversidades de existências, saberes, cores de tantos sabores que ao longo das eras nos permitiram reconhecer este mundo como um lugar cheio de sentidos?
Já não temos as certezas de antes. As indeterminações e dúvidas, mesmo as sinceras, se tornaram fumaça pálida, o que vemos à frente são os olhos da Devastação em curso, fazendo-se nas coisas e das coisas, nos seres, vivos e inanimados, na folha e na flor, na pequenina gota d'água ou no curso de majestosos rios. O nada, este imenso vazio, já não nos espreita, ele está instalado e pronto para seguir sua programação, isso apesar da engenhosidade humana, de suas memórias e capacidades criadoras de fazer e constituir o belo, o coletivo. Ainda assim, nessa encruzilhada chegamos ao deserto do real que lançou seus tentáculos a cada recanto da existência humana.
Tudo foi convertido, toda a vida, não apenas a Humana. Mais que isso, àquilo que nos tornava mais humanos e não mera coisa cedeu lugar ao medo do Outro, vivemos num constante estranhamento. O legado dos Geoglifos inscritos em nossa ancestralidade é eliminado por representações que não são verdadeiras, que nos desumaniza e nos faz estranhos em um mundo que não mais reconhecemos, ou somos reconhecidos. Nosso imaginário, que alçava o invisível, é sobreposto por espelhos sem reflexos, tudo é opacidade. Esses são rastros que estamos escrevendo, na terra, nos ares, na água e em nós mesmos. Somos marcados.
O que não temos feito? Constituir a luta contra todas as formas de opressão, portanto contra o Capital, com centralidade estruturante, contra o Real existente em todo o esplendor dos monstros que ele cria. Não estamos a gritar um JÁ BASTA! Seguimos apenas, ilhados em posições "progressistas", silenciosas e macabramente fragmentadas,ausentes, tão ao gosto da inércia sistêmica cobrada pelo capital. Se por um lado "nada temos feito", tocamos nossas vidas reflexivas, alguns escrevendo, empilhando livros na estante, até mesmo àqueles que jamais serão úteis para todos e todas desde abaixo e à esquerda. Nosso coração cêntrico, as Utopias, foram empurradas para os cantos miúdos e obscurecidos de nossas vidas, esquecidas, tornadas invisíveis, sem cor, forma e sem cheiro, sem as substâncias que tornam este coração vivo. Agora estamos a navegar em vagas memórias, sob um tempo e espaço que já não nos pertence. O Deserto do real nos torna exilados de nosso fazer - existir, apagando nossos sonhos e horizontes. Fragmentados num mar de constelações de mini combates (Fightings Gadgets) sem avaliar as possibilidades contínuas com as quais o capital intervém. Toda essa trama está tecida na cotidianidade, no ethos de todos e de cada um/uma de nós. Na franja deste biopoder navegamos ora perplexos, noutros casos imaginando que não é mais preciso organizar um outro cotidiano, com outros fazer/fazedores, tudo se desvanece e, no limite, deixamos de travar o bom combate, inclusive em face do crescente nilismo, travestido de novidade teórica. Enquanto isso, no andar de baixo.....
Seria arrogante pensar nessas linhas um "Que fazer?", mas está claro que é preciso (dês) pensar o pensamento vigente, só assim teremos o solo para pensarmos um mundo "onde caiba todos os mundos", como ensina a palavra zapatista e de tod@s @queles que antes de nós e para além deste tempo, sentem a necessidade de uma existência.
Os sinais são mais que evidente, o sistema dá sinais fraturas e doenças incuráveis, é um bio monstro aterrador, mas com chagas à mostra. O curto circuito não é mais aparente,os reguladores já não controlam a economia política do capitalismo, os negócios virtuais modificaram a qualidade e o caráter constitutivo do controle que o capital exercia sobre diversos movimento no interior do sistema, no além mar, grandes corporações (Bill Gates, a Fundação Rockefeller, Monsanto e a Syngenta) se uniram em torno da construção daquela que já está sendo chamada de "A caverna das sementes do juízo final" (F. William Engdahl). Eles estão a perceber os sinais e farejam oportunidades, ou uma disfunção ainda mais aguda no "programa da matrix", num armagedon do qual nem eles mesmo possam controlar. E nós, o que fazer para cobrir de esperanças e dignidades esta Terra, aqui e no hoje e para o futuro da Humanidade?
A cada ano, as terras dos povos ancestrais são encurtadas, cedendo espaço seja para o cultivo das OGMs, da bovinocultura, cana e de todo um vasto cardápio de "oportunidades" de negócios transacionados em tempo informacional, via mercados financeiros. Mundializa o Capital e, na mesma onda, a degradação de povos, natureza, de nossa casa, a Terra.
Vertigem. As cenas transcorrem na exceção, a barbárie e o caos sistêmico do biopoder do Capital, normatiza a devastação de territórios, culturas, identidades e de toda a pluralidade de existências. Os Geoglifos da Devastação já não se referem às crises conjunturais, tampouco, "exceções tácitas" e, sim, de um verdadeiro estado e "doutrina de choque". É dizer, o capitalismo, para se reproduzir e seguir em sua lógica de acumulação parteja crises econômicas, desastres ecológicos nem tanto mais "naturais", conflitos étnicos engendrados numa tal geopolítica de poder. Tudo é enunciado como "efeitos colaterais", inclusive com o auxílio abnegado de centros de pesquisas e intelectuais engajados na "nova ordem". No fim, já o sabemos, atravessamos um momentum do mundo capital, aquilo que Naomi Klein denomina de "terapia de choque", um tipo específico e funcional do biopoder do capitalismo que busca desativar, ou amortecer, toda e qualquer dissidência. Deserto do Real!
Buscamos a pílula vermelha ou a azul? Ficamos assim, ensimesmados num fora-dentro ilusório, pois não existe este um fora, estamos tod@s conectados, borboleteando pelos ares de mundo que se faz de chumbo e guerras terceirizadas, diásporas criadas há todos os instantes, fome, exílio com e contra todos, mas, especialmente, contra os de abaixo. Esses Geoglifos da Devastação vão sendo erguidos, um a um, às centenas, sem paradas ou descanso, vão configurando esta longa noite dos horrores que querem nos vender como a nova configuração do poder global do capital. Assim, o mundo se configura num sem número de mecanismos de controle, um real estado exceção. Cenário Shmittiano, temperado pela ciência, convertida em força de trabalho, conjurando artefatos biológicos, nucleares e afins. O poder global se assenhora de mentes, corações e espíritos.
Como Mães órfãs de filhos e de si mesmas, esses Geoglifos são cavados fundos, erguidos como barricadas diuturnas nos sujeitos, no pensar e nos fazeres humanos, no medo, de si e do outro, catalizando ameaças reais face ao diverso. Este é nosso mundo e nossa encruzilhada final. Podemos seguir caminhando inertes ou, perguntar caminhando, constituindo não gestos grandiosos e epopéias heróicas, mas lutar tecendo redes, malhas, ir fiando novelos simples, semear grãos miúdos, replantar esperanças humanas, lembrarmo-nos de lembrar que a Terra e as criaturas que habitam aqui e neste tempo, podem construir um destino povoado de cores, longe do "Deserto do Real" que pode ser superado, semeado de flores e de outros sentidos para nossos existências.
Carlos Araújo
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