abril 03, 2015

"A chuva secreta de Állex Leilla", por Henrique Wagner

PICICA: "O conto vem sendo muito mal tratado na Bahia – mas não só na Bahia, como se sabe. Penso que um dos motivos está na vontade dos jovens autores de hoje de escrever prosa, tão-somente, ou ainda, publicar um livro de prosa – vontade, não vocação. Talvez incomodados com a impopularidade da poesia, assim como com o status atualmente kitsch do poeta, ou ainda porque desejam contar um acontecimento, e, assim, acham que devem escrever. Mas não vêm escrevendo um conto. Nenhum tipo de conto. Há duas ou três exceções nas estantes, talvez." 


A CHUVA SECRETA DE ÁLLEX LEILLA
Henrique Wagner
         O conto vem sendo muito mal tratado na Bahia – mas não só na Bahia, como se sabe. Penso que um dos motivos está na vontade dos jovens autores de hoje de escrever prosa, tão-somente, ou ainda, publicar um livro de prosa – vontade, não vocação. Talvez incomodados com a impopularidade da poesia, assim como com o status atualmente kitsch do poeta, ou ainda porque desejam contar um acontecimento, e, assim, acham que devem escrever. Mas não vêm escrevendo um conto. Nenhum tipo de conto. Há duas ou três exceções nas estantes, talvez.

         Tenho lido, portanto, muitos trechos de um romance ruim. E como, assim me parece, não se acham apetrechados para uma aventura de maior fôlego, mantêm-se como “contistas”, o que dá a eles a nobre classificação de “escritor” – termo mais respeitado, atualmente, que o termo “poeta”, que, a rigor, não é considerado um escritor (e se não for o maior poeta do país ou pelo menos do Estado, não é ninguém). Importa ser algo, mais que fazer.

         O livro de contos Chuva Secreta, de Állex Leilla, lançado em 2013 pela Casarão do Verbo, é meu melhor argumento. Autora de outros volumes de contos e ainda de dois romances, Leila demonstra não ter sequer a ferramenta primária para escrever um conto: aquilo a que chamam os teóricos de “redação literária”. Sua escrita é prosaica (ela é da turma que faz prosa, não conto, de fato) e repleta de frases sem a menor função no desenvolvimento do plot – erro elementar, grave, em se tratando do gênero conto, algo como fugir ao tema, em redação de vestibular. Some-se a isso a falta de domínio do idioma (“resmungando o quanto os vivos estragam”, página 92; “aquela foi apenas uma entre as milhares de vezes”, página 90; “em arte só existe duas coisas”, página 90, “mas a gravidade dos ferimentos, desferidos ainda quando o professor estava dormindo”, página 45, dentre tantos outros ao longo do livro) e a imperícia na construção de um personagem narrador: todos falam do mesmo jeito, têm os mesmos hábitos lingüísticos, mesmos gostos musicais etc. Aliás, aproveito o ensejo para pedir a alguém que ensine a autora (doutora em Literatura Comparada) a usar os termos “quanto” e “quão” sem artigo, quando se trata de advérbio. É grande a recorrência desse erro elementar no livro.

         Chuva Secreta é ainda destituído de temas – ou motivos – atraentes (a bela capa do livro, aliás, merecia melhor motivo). É preciso ter o talento de um Tchekhov ou de sua entusiasta discípula Katherine Mansfield – tão entusiasta que chegou a imitar o mestre – para escrever um bom conto em torno do nada ou quase nada. Uma história deve despertar interesse ou pela trama ou pela linguagem. De preferência a partir de um acordo entre ambas.

         Alguns autores, em geral incipientes, demonstram em seus textos uma imensa vontade de fazer literatura. O texto, naturalmente, fica engessado ou maneirista. Leilla o faz a partir de uma matriz que foi cristalizada pela figura usurpadora de Caio Fernando Abreu, grande paixão da autora baiana: eu me refiro ao genial contista argentino Julio Cortázar, amplamente plagiado mundo afora, sobretudo na América Latina. Cortázar, no entanto, tinha muito o que contar. Todo conto do autor de “A casa tomada” guarda em si, de forma mais ou menos velada, uma história consistente, a segunda história, segundo os teóricos, uma vez que o conto deve contar duas (ou mais) histórias. Leila não tem uma história para contar, exatamente: tem vontade de escrever, leu contos muito bons, inspiradores e pronto. Não tem uma escrita literária, espontaneamente literária, de modo que seu texto, muito pobre, seu vernáculo anêmico, associado à falta de inspiração, produz períodos como o que segue abaixo:

         “Mania tem o mundo de fazer revistas inúteis. Mania minha de comprá-las na ilusão de que ao me ocupar do vazio delas não pensarei na tua ausência. Carma, dirão os mais espiritualizados. Carma, direi eu, dentro do tédio. Que se danem todos os carmas, dirá você.”

         Por trás de uma prosa de má qualidade costuma haver um pensamento frágil, ou mesmo nenhum. Nada que a leitura sistemática de um Othon M. Garcia não resolva – sistemática! Mas como a Inês é morta, segue abaixo abertura de um dos contos (“Conexo”):

         “Não fazia muito frio, mas havia um tanto de inverno no ar, talvez trazido pela chuva fininha na janela, talvez trazido pelas serras que jamais saem de nossas cabeças, posto que as serras são os mares de Minas, curvados, azul-cinzentos, a nos separar.”

         Ora, então mares não saem da cabeça das pessoas? No mínimo muito relativo. Tampouco o personagem é apresentado no conto como um “pensador marítimo”, um obcecado pelas águas salgadas. A outra leitura possível é a de que as serras são comparadas aos mares porque também elas trazem “um tanto de inverno no ar”. Mas aí, meu caro, adeus estilística com uma sintaxe dessas.

         E para fechar (o livro), não há um conto de Leilla, dentre os nove reunidos em Chuva Secreta, em que o narrador não use a expressão “dar de ombros”. Expressão das mais literárias, de modo que o leitor tem a impressão de que a autora deseja mostrar que é escritora (a questão do “ser”, já tratada aqui), como uma criança deseja, em muitos momentos, mostrar-se adulta – e aos cinco anos de idade já tem uma escrivaninha no quarto com máquina Remington profissional e caneta-tinteiro num dos escaninhos. O uso de um termo ou expressão em todos os contos de um livro causa ainda a sensação de inverossimilhança. É exatamente o que sente o leitor diante das palavras “miúdo”, “miudezas” e derivados, ubíquas no livro, alimentando, ao lado da já citada expressão “dar de ombros”, uma chuva indiscreta de palavras “más”.

         Dar de ombros é, portanto, um livro que reforça o pensamento constante da abertura deste texto: quase não há jovens contistas baianos, atualmente, mas “escritores”. E vale lembrar que a autora já não é mais tão jovem assim.

         Já asfixiou dois romances, inclusive. 

Um comentário:

Lucas disse...

Quanta besteira, meu Deus...