PICICA - Blog do Rogelio Casado - "Uma palavra pode ter seu sentido e seu contrário, a língua não cessa de decidir de outra forma" (Charles Melman) PICICA - meninote, fedelho (Ceará). Coisa insignificante. Pessoa muito baixa; aquele que mete o bedelho onde não deve (Norte). Azar (dicionário do matuto). Alto lá! Para este blogueiro, na esteira de Melman, o piciqueiro é também aquele que usa o discurso como forma de resistência da vida.
PICICA: "São Petersburgo, 1860. Um membro da família imperial é assassinado.
Alguns dias depois, o escritor Fyodor Michailovitch Dostoiévski se
encontra com Gusiev, um jovem homem comprometido com um hospital
psiquiátrico. Gusiev confessa que ele participou do plano terrorista e
revela que seus amigos conspiradores estão planejando matar outro
parente do Czar.
O jovem homem também dá para Dostoévski o
endereço de Alexandra, sua líder. O escritor precisa encontrá-la e
convencê-la a cancelar a nova tentativa de assassinato. Dostoévski está
no limite de sua sanidade mental, sob tremenda pressão de seus credores e
o prazo final para entrega de um novo livro se aproximando rapidamente
enquanto ele sofre de ataques de epilepsia.
Durante o dia, com a
ajuda de Anna Grigorjevna, uma jovem estenógrafa, ele edita "O
Jogador". A noite, ele continua sua extenuante busca pelo grupo
terrorista."
Filme — Os Demônios de São Petersburgo — Fiódor Dostoiévski
PICICA: "Para esta palestra fora escolhido pelo autor o título “Foucault,
Nietzsche e a Crítica da Modernidade”, no entanto, poderia ter sido
escolhido apenas “Foucault e Nietzsche” já que, na década de sessenta, a
temática e as questões que norteiam as investigações de Foucault são
expostas fundamentalmente nas obras do filósofo alemão Friedrich W.
Nietzsche. Além de elucidar essa temática fundamental o filósofo Roberto
Machado — professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro — explica também a
dinâmica metodológica foucaultiana e seus sucessivos deslocamento em
relação a epistemologia, que se devem ao profundo interesse do filósofo
francês na filosofia nietzschiana, sobretudo no que diz respeito à
"razão" e "modernidade" — os dois temas básicos desta palestra."
Foucault, Nietzsche e a Crítica da Modernidade — por Roberto Machado
PICICA: " Tem circulado nas redes sociais um texto intitulado “Descoberta a
provável causa do vício. E não é o que você pensa” de Johann Hari,
falando sobre como a ideia que todos temos sobre as dependências
químicas está equivocada.
Li
o texto e assisti à palestra do autor no TED (disponibilizada com
legendas ao final deste post). Achei tudo o que ele fala realmente muito
interessante e esclarecedor. No entanto, apresento algumas ressalvas
para que os menos avisados não tirem conclusões precipitadas das
informações que ele apresenta."
Tudo o que você sabe sobre drogas está errado
Raphael Mestres
Tem circulado nas redes sociais um texto intitulado “Descoberta a
provável causa do vício. E não é o que você pensa” de Johann Hari,
falando sobre como a ideia que todos temos sobre as dependências
químicas está equivocada.
Li
o texto e assisti à palestra do autor no TED (disponibilizada com
legendas ao final deste post). Achei tudo o que ele fala realmente muito
interessante e esclarecedor. No entanto, apresento algumas ressalvas
para que os menos avisados não tirem conclusões precipitadas das
informações que ele apresenta.
A grande sacada de Hari foi demonstrar que a dependência química
não é tão “química” quanto pensamos. Para isso ele faz algumas
observações simples e perturbadoras:
Médicos administram grandes quantidades de diamorfina (heroína)
para pacientes que sofreram acidentes e fraturas graves. Os pacientes
não saem do hospital “viciados”. 20% dos soldados americanos na Guerra
do Vietnã consumia muita heroína. Ao término da guerra, quase todos eles
voltaram aos seus lares e pararam o consumo naturalmente. Ratos se
matavam de overdose em gaiolas isoladas quando tinham acesso a uma
mistura de água com cocaína ou heroína. Quando foram colocados em
gaiolas cheias de estímulos e companheiros para se divertir,
praticamente ignoraram essa mistura.
Esses fatos realmente contradizem a nossa ideia de que as drogas
possuem componentes químicos que prenderão para sempre seus
usuários e nos apontam para outros fatores responsáveis pelas
dependências químicas.
Parece que a química das drogas perde seu poder frente a uma
família amorosa torcendo pelo paciente fora do hospital ou frente a uma
esposa ansiosa esperando o marido voltar da guerra. Perde seu poder até
frente a uma gaiola cheia de estímulos e companhias para ratos, que se
matavam de overdose quando estavam em gaiolas isoladas.
Com isso, Hari conclui que o principal fator responsável pela
dependência não são os componentes químicos das drogas, mas a escassez
de vínculos e conexões positivas. Ter um trabalho que você ama, uma
família para encontrar ao final do dia, relacionamentos saudáveis e
recompensadores fazem com que optemos por manter a sobriedade para
desfrutar destas benesses que a vida proporciona.
O erro cometido atualmente por nós e apontado por Hari é que,
na tentativa de recuperar os dependentes químicos, acabamos dificultando
ainda mais a criação de vínculos e conexões deles com a sociedade. Os
isolamos, os rotulamos e fazemos com que se sintam envergonhados. Na
verdade, os punimos pela doença que têm, quando as evidências apontam
que a saída seria justamente o contrário: favorecer a criação de
vínculos e conexões saudáveis para que eles não precisem do vínculo com
as drogas.
Hari também cita como exemplo Portugal, que melhorou muito seus
índices de dependências químicas ao descriminalizar todas as drogas e
investir o dinheiro usado para medidas repressivas na reconexão dos
dependentes químicos à sociedade.
E aqui pode ser que alguém chegue a duas conclusões perigosas:
1) “Já que é uma questão de vínculos, o tratamento para
dependências químicas, com medicação, psicoterapia e internação não tem
sentido” e
2) “Bom, se é assim, a saída socialmente ideal é descriminalizar todas as drogas, como foi feito em Portugal”.
Cuidado, não podemos ignorar a outra parte dos fatos.
O erro apontado por Hari de que “isolamos, rotulamos,
envergonhamos e punimos os dependentes” não diz respeito à necessidade
ou não de tratar a dependência química, mas à forma como nós,
individualmente, enxergamos o dependente e nossa postura diante dele.
Também serve como crítica a alguns tratamentos fragmentados feitos por
profissionais não capacitados, que adotam uma visão moralista, e não
científica, das dependências químicas.
O tratamento da dependência química, nas suas diferentes formas,
deve contribuir para a capacidade do paciente de reconstruir vínculos
saudáveis.
O próprio dependente químico, em seu processo de adoecimento, vai se
desconectando dos vínculos positivos que possuía e vai se conectando com
a droga. Hari aponta que a conexão com a droga é um tipo de alívio para
a incapacidade do indivíduo de conectar-se com os outros, seja por
causa de traumas, isolamento ou dificuldades da vida.
Quando surgem as doenças psiquiátricas decorrentes do uso abusivo
de drogas essa desconexão do dependente se cristaliza ainda mais
tornando muito mais difícil a criação de vínculos saudáveis. O
tratamento, com medicação, psicoterapia, grupos e terapias alternativas,
contribui para recuperar e desenvolver no dependente a capacidade de se
vincular novamente.
O “isolamento” em comunidades terapêuticas, muitas vezes, é
importante para cortar os vínculos destrutivos que o dependente
estabelece com traficante, com outros usuários ou até com a própria
família codependente, para que viva a possibilidade de estabelecer novas
conexões saudáveis, seja com os profissionais, com os colegas de
internamento, com os grupos religiosos e com o trabalho, dentro e fora
da comunidade, na reinserção social.
Portanto, o tratamento da dependência química tem todo o sentido
de existir, principalmente para facilitar as conexões necessárias para a
recuperação.
A
importância dessas descobertas é no sentido de sabermos que não adianta
medicação, psicoterapia e todo o resto se as conexões e vínculos não
estiverem sendo estimulados e criados a partir disso.
Usando como analogia a experiência dos ratos, não adianta fazer
tudo o que fazemos no tratamento se a gaiola continuar vazia e isolada.
Usar droga vai ser a única coisa a fazer. O tratamento deve se ocupar de
“encher a gaiola” de atrativos e companhias saudáveis. É preciso
enriquecer a vida do dependente.
Quanto à conclusão de que a descriminalização é a saída
socialmente ideal e que Portugal é um exemplo disso, podemos analisar
tal como o tratamento. O ponto chave está no investimento em reconectar
os dependentes à sociedade e em oferecer conexões saudáveis para os
cidadãos.
Não foi a descriminalização que funcionou em Portugal, mas o
investimento em criação de empregos para dependentes em recuperação,
microempréstimos para que pudessem começar seus negócios, incentivos a
empresas para que os contratassem. Foi o objetivo de que “cada
dependente em Portugal tivesse algo pelo qual sair da cama todo dia de
manhã” que fez a diferença.
A descriminalização foi apenas um meio de arrecadar fundos para
esses novos investimentos e não a solução para o problema.
Johann Hari afirma ao fim da sua palestra: “o contrário da
dependência química não é sobriedade. O contrário da dependência química
é conexão”. Isso poderia ser um mantra repetido incansavelmente nos
tratamentos.
E nas discussões sobre a legalização, embasadas nas críticas à
“Guerra às drogas” eu sugeriria uma adaptação desse mantra: “o contrário
da Guerra às drogas não é a legalização ou descriminalização, mas criar
oportunidades de conexão”.
Afinal de contas, conceitos brilhantes como esse devem ser usados sem medo de errar.
PICICA: "Faz cem anos que as drogas foram proibidas pela primeira vez -
e, ao longo desse século de guerra contra as drogas, professores e
governos nos contaram histórias de vício. Essas histórias estão
enraizadas em nossas mentes. Elas parecem óbvias, verdades evidentes.
Até três ano atrás, quando comecei uma jornada de 50 000 quilômetros para escrever meu novo livro, 'Chasing The Scream: The First and Last Days of the War on Drugs'
(Perseguindo o grito: os primeiros e os últimos dias da guerra contra
as drogas, em tradução livre), eu também acreditava nisso. Mas o que
descobri em minhas viagens é que quase tudo o que nos contaram sobre o
vício está errado - e existe uma história muito diferente à nossa
espera, se estivermos prontos para ouvi-la.
Se realmente
absorvermos essa nova história, teremos de mudar muito mais que a guerra
contra as drogas. Teremos de nos transformar."
Descoberta a provável causa do vício. E não é o que você pensa
Johann HariAutor de ‘Chasing The Scream: The First and Last Days of the War on Drugs’
Faz cem anos que as drogas foram proibidas pela primeira vez -
e, ao longo desse século de guerra contra as drogas, professores e
governos nos contaram histórias de vício. Essas histórias estão
enraizadas em nossas mentes. Elas parecem óbvias, verdades evidentes.
Até três ano atrás, quando comecei uma jornada de 50 000 quilômetros para escrever meu novo livro, 'Chasing The Scream: The First and Last Days of the War on Drugs'
(Perseguindo o grito: os primeiros e os últimos dias da guerra contra
as drogas, em tradução livre), eu também acreditava nisso. Mas o que
descobri em minhas viagens é que quase tudo o que nos contaram sobre o
vício está errado - e existe uma história muito diferente à nossa
espera, se estivermos prontos para ouvi-la.
Se realmente
absorvermos essa nova história, teremos de mudar muito mais que a guerra
contra as drogas. Teremos de nos transformar.
Aprendi com uma
mistura extraordinária de pessoas que conheci na estrada. Dos amigos de
Billie Holiday, que me ajudaram a entender como o fundador da guerra
contra as drogas a perseguiu e ajudou a matá-la. De um médico judeu que
foi tirado às escondidas do gueto de Budapeste quando era bebê, para
depois destravar os segredos do vício quando adulto.
De um
transexual traficante de crack do Brooklyn que foi concebido quando sua
mãe, uma viciada em crack, foi estuprada pelo pai dele, um policial de
Nova York. De um homem que foi mantido preso no fundo de um poço durante
dois anos por uma ditadura para depois emergir e ser eleito presidente
do Uruguai, começando os dias finais da guerra contra as drogas.
Tinha
uma razão bastante pessoal para sair em busca dessas respostas. Uma das
minhas primeiras lembranças da infância é tentar acordar um parente,
sem sucesso. Desde então, venho pensando sobre o mistério do vício - o
que faz algumas pessoas se fixar em uma droga ou um comportamento a
ponto de não conseguir parar? Como ajudamos essas pessoas a voltar para a
gente? Ao envelhecer, outro parente próximo ficou viciado em cocaína, e
eu me envolvi com uma pessoa viciada em heroína. Acho que me sinto em
casa perto de viciados.
Se você me perguntasse lá atrás o que
provoca o vício em drogas, te olharia como se você fosse um idiota e
diria: "Drogas. Dã." Não é difícil entender. Achei que tivesse visto
isso acontecer na minha própria vida. Qualquer um consegue explicar.
Imagine se eu, você e as próximas 20 pessoas que passarem na rua
tomássemos uma droga potente por 20 dias. Existem agentes químicos
fortes nessas drogas, então no vigésimo-primeiro dia nossos corpos
precisariam desses químicos. Teríamos uma necessidade urgente deles.
Estaríamos viciados. Esse é o significado de vício.
Essa teoria
foi estabelecida por meio de experimentos com ratos - experimentos que
foram injetados na psique americana nos anos 1980, em um famoso anúncio
da Partnership for a Drug-Free America.
Você talvez se lembre. O experimento é simples. Coloque um rato numa
gaiola, sozinho, com duas garrafas d'água. Uma delas tem só água. A
outra tem água misturada com cocaína ou heroína. Em quase todas as vezes
que você fizer esse experimento, o rato vai ficar obcecado com a água
com drogas. Ele vai tomá-la até morrer.
O anúncio explica: "Só uma
droga é tão viciante, nove de dez ratos de laboratório vão usá-la. E
usá-la. E usá-la. Até a morte. É chamada cocaína. E ela pode fazer o
mesmo com você".
Mas, nos anos 1970, um professor de psicologia de Vancouver chamado Bruce Alexander percebeu
algo estranho nesse experimento. O rato está sozinho na gaiola. Ele não
tem nada para fazer além de usar a droga. O que aconteceria se
tentássemos algo diferente? Então Alexander criou o Rat Park. É uma
gaiola sofisticada, onde os ratos têm bolas coloridas e túneis para
brincar, vários amigos e a melhor das comidas: tudo o que um rato
poderia desejar. Alexander queria saber o que iria acontecer. No
Rat Park, todos os ratos tomaram água das duas garrafas, é claro, porque
não sabiam o que elas continham. Mas o que aconteceu depois foi
surpreendente.
Os ratos nessa vida boa não gostavam da água com
drogas. Eles basicamente a ignoravam: consumiam menos de um quarto dessa
água, em comparação com os animais isolados. Nenhum deles morreu. Todos
os ratos que estavam sozinhos em suas gaiolas se tornaram dependentes
da droga, mas isso não aconteceu com nenhum dos animais do Rat Park.
Inicialmente,
achei que isso fosse meramente uma idiossincrasia dos ratos, até
descobrir que havia - na mesma época do experimento do Rat Park - um
equivalente humano em andamento. Era a Guerra do Vietnã.
A
revista Time relatou que, entre os soldados americanos, usar heroína
estava se tornando um hábito tão corriqueiro quanto mascar chiclete, e
existem evidências sólidas para sustentar tal afirmação: cerca de 20%
dos soldados americanos ficaram viciados em heroína no Vietnã, segundo
um estudo publicado no Archives of General Psychiatry. Muita gente ficou
compreensivelmente aterrorizada; elas achavam que com o fim da guerra
um enorme número de viciados voltaria para casa.
Mas, na
realidade, cerca de 95% dos soldados viciados - segundo o mesmo estudo -
simplesmente pararam de usar heroína. Alguns poucos foram para clínicas
de recuperação. Eles passaram de uma gaiola aterrorizante para uma
agradável, e não queriam mais usar drogas.
Alexander argumenta que
essa descoberta é uma contestação profunda tanto da visão direitista,
segundo a qual o vício é uma fraqueza moral causada por uma vida de
festas e hedonismo, quanto da visão liberal, que diz que o vício é uma
doença que existe num cérebro quimicamente sequestrado. Na verdade,
segundo Alexander, vício é adaptação. Não é você. É a gaiola.
Depois
da primeira fase do Rat Park, Alexander levou seu teste além. Ele refez
os primeiros experimentos, nos quais os ratos se tornavam usuários
compulsivos de drogas. Ele os deixou usar a droga durante 57 dias - se
tem um jeito de ficar viciado, é esse.
Então ele tirou os animais
do isolamento e os colocou no Rat Park. Alexander queria saber se, uma
vez viciado, o cérebro estava sequestrado e não havia maneira de
recuperá-lo. As drogas assumem o controle? O que aconteceu - de novo -
foi impressionante. Os ratos pareciam exibir alguns tremores de
abstinência, mas logo pararam de usar as drogas pesadamente e voltaram a
ter uma vida normal. A gaiola boa os salvou. (As referências completas de todos os estudos que estou mencionando estão no livro.)
Quando
soube disso, fiquei encucado. Como seria possível? Essa nova teoria é
um ataque tão radical ao que nos contaram que não parecia ser verdade.
Mas, quanto mais cientistas entrevistava, quanto mais estudos lia, mais
descobria coisas que não pareciam fazer sentido - a menos que você leve
em conta essa nova abordagem.
Eis um exemplo de experimento que
acontece à sua volta, e pode inclusive acontecer com você um dia desses.
Se você for atropelado e quebrar a bacia, provavelmente vão te dar
diamorfina, o nome médico para heroína.
No hospital, haverá muita
gente tomando heroína por longos períodos, para aliviar a dor. A
heroína que o médico te der vai ser muito mais pura e potente que aquela
usada pelos viciados, que compram uma droga adulterada pelos
traficantes. Então, se a velha teoria do vício estiver certa - a culpa é
da droga; ela faz seu corpo precisar dela -, é óbvio o que vai
acontecer. As pessoas sairão do hospital e irão direto procurar um
traficante para comprar heroína.
Mas eis o que é estranho: isso virtualmente nunca acontece. Como me explicou o médico canadense Gabor Mate
os usuários de heroína médica simplesmente param, apesar de meses de
uso. A mesma droga, usada pelo mesmo período, cria viciados nas ruas,
mas não afeta os pacientes de hospitais.
Se você ainda acredita,
como eu acreditava, que o vício é causado por agentes químicos, isso não
faz sentido. Mas, se você acredita na teoria de Bruce Alexander, a
imagem começa a entrar em foco. O viciado da rua é o rato da primeira
gaiola, isolado, sozinho, com uma única fonte de conforto. O paciente do
hospital é o rato da segunda gaiola. Ele vai para casa, para uma vida
em que está cercado pelas pessoas que ama. A droga é a mesma, mas o
ambiente é diferente.
Isso nos dá um insight muito mais profundo
que a necessidade de entender os viciados. O professor Peter Cohen
argumenta que os seres humanos têm uma necessidade profunda de
estabelecer laços e conexões. É como nos satisfazemos. Se não
conseguirmos nos conectar uns com os outros, vamos nos conectar com o
que encontrarmos - a bolinha pulando na roleta ou a ponta da agulha de
uma seringa. Ele diz que deveríamos simplesmente parar de falar em
"vício": deveríamos falar em "ligação". Um viciado em heroína criou uma
ligação com a droga porque não conseguiu estabelecer outras conexões.
O oposto de vício, portanto, não é sobriedade. É conexão humana.
Quando
soube disso tudo, fui sendo persuadido gradualmente. Mas restava uma
dúvida incômoda. Será que os cientistas estão dizendo que a parte
química do vício não faz diferença nenhuma? Me explicaram - você
pode se viciar em jogo, mas ninguém vai achar que você vai injetar um
baralho nas veias. Você pode ser viciado, mas não há o lado químico. Fui
a uma reunião dos Viciados em Jogos Anônimos em Las Vegas (com a
permissão de todos os presentes, que sabiam que eu estava lá apenas como
observador). Eles eram tão viciados quanto os usuários de cocaína e
heroína que conheci. Mas uma mesa de pôquer não tem químicos.
Ainda assim, perguntei: a química desempenha algum papel? Um experimento tem a resposta precisa, que descobri no livro The Cult of Pharmacology (o culto da farmacologia, em tradução livre), de Richard DeGranpre.
Todos
concordam que fumar cigarros é um dos processos mais viciantes que
existem. Os químicos do tabaco vêm da nicotina. Quando foram inventados
os adesivos de nicotina, no começo dos anos 1990, houve uma grande onda
de otimismo - os fumantes poderiam satisfazer suas necessidades químicas
sem o resto dos efeitos imundos (e mortais) do cigarro. Seria a
libertação.
Mas o Ministério da Saúde descobriu que apenas 17,7%
dos fumantes conseguem parar de fumar usando adesivos de nicotina. É
claro que não é pouca coisa. Se os químicos respondem por 17,7% do
vício, como mostra esse dado, ainda temos milhões de vidas arruinadas
globalmente. Mas o que ele revela, mais uma vez, é que a história que
nos contaram sobre as causas químicas do vício é real, mas só uma parte
pequena de uma fotografia muito maior.
Isso tem enormes
implicações para a secular guerra contra as drogas. Essa guerra massiva -
que, como vi, mata gente dos shoppings mexicanos às ruas de Liverpool -
é baseada na afirmação de que precisamos erradicar fisicamente uma
vasta gama de químicos, pois eles sequestram cérebros e provocam o
vício. Mas, se as drogas em si não são as causadoras do vício - se, na
verdade, é a desconexão que causa o vício --, então nada disso faz
sentido.
Ironicamente, a guerra contra as drogas na verdade
potencializa esses causadores de vício. Por exemplo: fui a uma prisão no
Arizona - "Tent City"
--, onde os detentos ficam presos em minúsculas celas de pedra ("O
Buraco") por semanas a fio se usarem drogas. É a versão humana mais
próxima que consigo imaginar das gaiolas de isolamento dos ratos. Quando
os presos saem da cadeia, não conseguirão emprego, porque têm ficha
criminal - garantido um isolamento ainda maior. Vi exemplos assim no
mundo inteiro.
Existe uma alternativa. Você pode criar um sistema
desenhado para ajudar os viciados a se reconectar com o mundo - e,
assim, deixar o vício para trás.
Isso não é teoria. Está
acontecendo. Vi com meus próprios olhos. Cerca de 15 anos atrás,
Portugal tinha um dos piores problemas de drogas da Europa - 1% da
população era viciada em heroína. Os portugueses tentaram a guerra
contra as drogas, mas o problema só piorava. Então decidiram fazer algo
radicalmente diferente. Resolveram descriminar todas as drogas e usar o
dinheiro gasto para prender os viciados em programas de reconexão - com
seus sentimentos e com a sociedade. O passo mais crucial é garantir
moradia e empregos subsidiados, para que eles tenham propósito na vida,
algo que os faça sair da cama pela manhã. Em clínicas acolhedoras, vi os
viciados aprendendo a se reconectar com seus sentimentos, depois de
anos de trauma e de um silêncio forçado causado pelas drogas.
Um
exemplo que observei foi um grupo de viciados que recebeu um empréstimos
para começar uma empresa de coleta de lixo. Repentinamente, eles eram
um grupo, todos conectados entre si e com a sociedade, cuidando uns dos
outros.
Agora se conhecem os resultados disso tudo. Um estudo independente do British Journal of Criminology descobriu
que, desde a total descriminação, o vício caiu e o uso de drogas
injetáveis teve redução de 50%. Repito: o uso de drogas injetáveis teve
redução de 50%. A descriminação foi um sucesso tão grande que
pouquíssima gente em Portugal defende uma volta ao antigo sistema. O
maior opositor dessa política em 2000 era João Figueira, o principal
policial da força antidrogas. Ele fez alertas terríveis, do tipo que se
espera ouvir na Fox News ou ler no Daily Mail. Mas, quando
conversamos em Lisboa, Figueira me disse que nenhuma de suas previsões
se confirmou - e agora ele espera que o resto do mundo siga o exemplo
português.
Isso não é relevante só para os viciados que amo. É
relevante para todos nós, pois nos força a pensar de maneira diferente a
respeito de nós mesmos. Os seres humanos são animais que precisam de
laços. Precisamos de conexões e de amor. A frase mais sábia do século 20
foi "Apenas se conecte", de E.M. Forster. Mas criamos um ambiente e uma
cultura que cortou conexões, ou que oferece apenas um simulacro delas: a
internet. O crescimento do vício é sintoma de uma doença mais profunda
na maneira como vivemos - constantemente olhando para o próximo objeto
brilhante que queremos comprar, em vez dos humanos que nos cercam.
O escritor George Monbiot fala na "era da solidão"
Criamos sociedades humanas em que o corte de conexões nunca foi tão
fácil. Bruce Alexander, o criador do Rat Park, me disse que falamos
demais em recuperação de indivíduos. Precisamos falar de recuperação
social - como todos nos recuperamos juntos da doença do isolamento que
recai sobre nós como uma névoa densa.
Mas essas novas evidências
não são apenas um desafio político. Elas não nos forçam somente a
transformar nossas cabeças. Elas nos forçam a transformar nossos
corações.
É muito difícil amar um viciado. Quando olho para os
viciados que amo, é sempre tentador optar pela estratégia durona
recomendada por programas como Intervention - falar para o viciado tomar
jeito ou então cortá-lo de sua vida. A mensagem é que o viciado que não
parar com as drogas deve ser rejeitado. É a lógica da guerra contra as
drogas importada para nossas vidas. Mas, na verdade, aprendi que isso só
agrava o vício - e você pode perder a pessoa para sempre. Voltei para
casa determinado a me aproximar como nunca dos viciados da minha vida -
dizer para eles que os amo incondicionalmente, consigam eles parar ou
não.
Quando terminei minha longa jornada, olhei para meu
ex-namorado, em crise de abstinência, tremendo no quarto de visitas, e
pensei nele de um jeito diferente. Há um século estamos entoando cantos
de guerra sobre os viciados. Quando secava a testa dele, me ocorreu que
deveríamos estar entoando canções de amor.
A história completa da jornada de Johann Hari - contada por meio das histórias das pessoas que ele conheceu - está em 'Chasing The Scream: The First and Last Days of the War on Drugs' (Perseguindo o grito: os primeiros e os últimos dias da guerra contra
as drogas, em tradução livre), publicada pela Bloomsbury. O livro foi
elogiado por Elton John, Naomi Klein e Glenn Greenwald, entre outros.
Saiba mais sobre o livro As referências completas e fontes para todas as informações citadas neste artigo estão nas extensas notas do livro.
PICICA: "Jornalista britânico que cobriu levantes pós-2011 em todo o mundo
aposta: sistema não suportará sociedade conectada em rede que ajudou a
criar"
Jornalista britânico que cobriu levantes pós-2011 em todo o mundo
aposta: sistema não suportará sociedade conectada em rede que ajudou a
criar
Entrevista a Jonathan Derbyshire, em Prospect | Tradução: Gabriela Leite e Inês Castilho | Imagem: Banksy –MAIS:Os textos de Paul Mason já publicados por Outras Palavras estão aqui– Ao cobrir, para a TV britânica, a fase mais recente da crise na
Grécia, o jornalista Paul Mason alcançou quase-onipresença em seu país:
Mason falando com Alexis Tsipras e outros membros do Syriza; Mason em
mangas de camisa diante da câmera, diante do banco central da Grécia;
Mason desviando de bombas em outro confronto entre anarquistas e a
polícia — isso forma parte da iconografia da crise grega para muitos
britânicos.
“Pós-Capitalismo: Um Guia para Nosso Futuro”, de Paul Mason, foi publicado por Allen Lane
Agora, enquanto a Grécia e o resto da Europa recuperam seu fôlego, Mason retornou para a Inglaterra para lançar seu novo livro: “Post-Capitalism: a guide to our future” [“Pós-capitalismo: um guia para nosso futuro”].
Não é um trabalho de reportagem, mas uma ampla análise histórica e
econômica. Inspirada pela análise de Marx sore relações sociais
capitalistas, ela vai, no entanto, além disso — de uma maneira que,
reconhece o autor, talvez não agrade alguns de seus amigos na extrema
esquerda. O livro é uma análise do “neoliberalismo” — o capitalismo
altamente financeirizado que dominou a maior parte do mundo desenvolvido nos últimos 30 anos — e, ao mesmo tempo, uma tentativa de imaginar o que poderia substituí-lo.
“Pós-Capitalismo: Um Guia para Nosso Futuro”, de Paul Mason, foi publicado por Allen Lane. O capitalismo, escreve Mason, é um sistema altamente adaptativo:
“Nos grandes momentos de encruzilhada, ele se transforma e muda, em
resposta ao perigo”. Seu instinto mais básico de sobrevivência, ele
argumenta, “é impulsionar mudanças tecnológicas”. Mas o autor acredita
que as tecnologias de informação que o capitalismo desenvolveu nos
últimos vinte anos ou mais não são, apesar das aparências, compatíveis
com o capitalismo — não em sua forma presente, e talvez nem em qualquer
outra forma. “Quando o capitalismo não puder mais se adaptar à mudança
tecnológica, o pós-capitalismo irá se tornar necessário”.
Mason não está sozinho ao acreditar que a humanidade está à beira
de uma profunda revolução tecnológica, é claro. Ouve-se isso de outras
vozes: que falam, por exemplo, sobre a “Segunda Era da Máquina” e a
promessa (assim como a ameaça) de máquinas inteligentes e da “internet
das coisas”. O que torna singular a análise de Mason é, no entanto, a
maneira pela qual ele funde um balanço das mutações tecnológicas do que
costumava ser chamado de “capitalismo tardio” com uma tentativa de
identificar o que Engels chamou, no final do século XIX, de a “parteira
da sociedade”, a classe capaz de liderar a transformação social. Segundo
o livro, não será a velha classe trabalhadora, como Marx e Engels
pensaram, mas o que Mason chama de “rede”. Ao colocar em contato
permanente milhões de pessoas, Mason escreve, “o capitalismo da
informação criou um novo agente de mudança na história: o ser humano bem
formado e conectado”. Encontrei-me com Mason em Londres e comecei a entrevista pedindo a ele:
Paul
Mason: para ele, “indivíduos em rede” são um novo sujeito histórico,
que substituíram a velha classe trabalhadora do marxismo, e se
converteram no que Engels chamava de “parteiros da história”
Descreva, por favor, o modelo “neoliberal”, que segundo você chegou a um ponto de ruptura
O neoliberalismo é tanto uma ideologia quanto um modelo econômico. O
capitalismo precisa ser compreendido em seu conjunto em cada fase de sua
existência. Vivemos o que podemos chamar de capitalismo neoliberal.
Este sistema que funciona com um núcleo que opera de acordo com valores
neoliberais e uma periferia que não opera. Argumento que o
neoliberalismo, como sistema funcional, está em crise porque sua mola
central — o amplo consumo financeirizado, combinado com baixo
crescimento dos salários — é uma máquina para produzir bolhas e seu
estouro. No livro, sustento que uma eventual saída para o sistema (rumar
para um info-capitalismo bem sucedido) pode ser viável em certas
circunstâncias, mas esta transição é improvável.
Lado a lado com o que você identifica como as características
negativas do neoliberalismo (financeirização excessiva e
desestabilizadora), também há a revolução tecnológica.
O neoliberalismo foi a forma econômica na qual ocorreram os avanços
mais dramáticos da técnica humana sobre a natureza. Em segundo lugar,
foi o período no qual países como China e Índia desenvolveram-se de modo
surpreendente, um fenômeno que ainda precisa ser compreendido em sua
totalidade. Argumento, porém, que esta forma econômica não é mais capaz
de conter os níveis do dinamismo tecnológico que conseguiu liberar. Não
acredito que o próprio neoliberalismo, eu seus próprios valores
neoliberais, seja o condutor da mudança tecnológica. A economista
Mariana Mazzicato prova esse ponto: não são apenas o Vale do Silício, o
empreendedorismo e o dinheiro dos fundos de hedge que produzem o iPhone —
é a Nasa, são as grandes universidades como Stamford. O que estamos vendo hoje é que a rapidez da inovação não está sendo
combinada com implementação de políticas ou evolução de modelos de
negócios. Isso impõe uma questão: até que ponto o poder de transformação
destas novas tecnologias resultará numa terceira revolução industrial?
Eu não vejo isso acontecer sob paradigma neoliberal.
Mas, como você mesmo aponta, a nova tecnologia também foi possibilitadora do neoliberalismo, por ter aprimorado a capacidade de explorar o que é chamado algumas vezes de “capital humano”.
A era Keynesiana produziu a última geração de indivíduos
hierarquizados, coletivizados. Eu fui produzido por ela e sei que este
mundo acabou. Uma das virtudes de se ter 55 anos é ter visto o novo
mundo nascer. Hoje, como Foucault afirma, somos empreendedores do self. A internet permitiu que as massas fossem parte do laboratório social do self. Ela nos permite fazê-lo de uma maneira que nem começamos a entender. Ela criou um novo sujeito humano.
A divergência entre eu e os apoiadores do neoliberalismo é em torno
de uma questão: o sujeito humano vai transcender o sistema atual, romper
com ele e reformar a sociedade humana? Todas as visões de transformação
social têm, a partir de agora, de enxergar o que eu chamo de “indivíduo
em rede”. Acredito que as revoltas que narrei em meu livro anterior, Why It’s Kicking Off Everywhere
(“Por que está começando em todo lugar”, em tradução livre), são
revoltas destas pessoas. Se elas são um novo sujeito histórico, que
substitui a velha classe trabalhadora do marxismo, essa é uma grande
coisa. É uma grande novidade que devemos buscar compreender.
Você lamenta o mundo que perdemos? O mundo keynesiano de
coletividades e solidariedades? Poucas partes de seu livro têm tom de
elegia. A nota dominante é mais de excitação com as possibilidades
econômicas e políticas que as novas tecnologias e novos modos de
subjetividade humana oferecem.
Eu lamento, sim. Escrevi em meu primeiro livro, Live Working or Die Fighting (Viva trabalhando ou morra lutando”,
em tradução livre), que o que estamos lamentando, e o que ficou para
trás, foi uma anomalia na história do movimento dos trabalhadores. Foi
um movimento de trabalhadores socialmente estável, que construiu um
caminho de coexistência pacífica com o capital. O que fiz foi cavar na
história e descobrir que a indisciplinada história do trabalho foi a de
pessoas que foram, elas mesmas e de sua própria maneira, empreendedoras
de si mesmas. E tiveram um nível de quase total oposição ao mundo que
viveram, coisa que a geração do meu pai, a da era keynesiana, não teve.
De que tradições você está falando, especificamente?
Anarquismo na comuna de Paris. Anarco-sindicalismo nos EUA — os
Wobblies. O que o comunismo acrescentou a essas histórias foi a
coletividade. Mas se você esquecer as histórias oficiais marxistas sobre
a Comuna ou os Wobblies, descobrirá que é uma história de indivíduos
rebeldes. Quando comecei a mergulhar nessa história, percebi que a era
Keynesiana, apesar do nosso luto, foi uma anomalia.
Também foi uma anomalia na história do capitalismo, não? Não é essa uma das mensagens do livro de Thomas Pikkety, O Capital no Século XXI?
É uma anomalia na história do capitalismo. Também é uma anomalia da história da classe trabalhadora.
Vamos nos voltar ao aspecto econômico de sua argumentação no
livro. Sua afirmação é que o capitalismo não consegue “capturar o
‘valor’ gerado pela nova tecnologia.” Você pode desenvolver isso um
pouco?
Assim que soubemos que estávamos em uma economia da informação, ficou
óbvio que a categoria das coisas chamadas pelos economistas de
“externalidades” seriam importantes. O teorista do capital cognitivo,
Yann Moulier-Boutang, coloca desta maneira (e eu concordo): toda a
questão do capitalismo do século XXI é saber quem captura as
externalidades. Devem ser as empresas, que vão ter posse delas e
utilizá-las, como faz o Google? A externalidade positiva para o Google é
que ele pode ver o que estamos buscando, mas nós não conseguimos ver o
que nós mesmo estamos. Então ele pode, agora, construir um modelo de
negócio monopolizado, com base nos segredos revelados por sua mineração
de dados.
Você quer dizer que, sob os atuais arranjos, o capitalismo só
pode capturar o valor gerado pelas novas tecnologias por meio do
monopólio? Google, Apple e outros estão ganhando muito dinheiro com
isso.
Eles estão ganhando dinheiro. Criaram um monopólio da informação. E,
especialmente no que diz respeito aos bens de informação, têm conseguido
suprimir o mecanismo de formação de preços. Ele iria, em condições
naturais, reduzir o preço da informação que estão vendendo a zero. Eu
digo no livro que a declaração da missão da Apple deveria ser, na
verdade: “Existimos para prevenir a abundância de música!” Ou, do
Google: “Existimos para prevenir a abundância do autoconhecimento das
pessoas sobre o que elas fazem na internet”.
Existem dois problemas com isso. Primeiro, é lógico sugerir que
nenhum desse monopólios pode sobreviver. Certamente, seu valor de
mercado não reflete sua capacidade para continuar monopolizando o que
fazem. Segundo: portanto, você não pode ter a completa utilização da
informação. A próxima questão é: Existe um meio termo? Haverá algum
espaço, que possamos explorar, entre o monopólio e a liberdade? Acredito
realmente que sim. Não estou dizendo que tudo deve ser de graça. Estou
dizendo que deve haver múltiplos modelos de negócio entre o monopólio e a
liberdade.
Você não está dizendo, então, que os mercados vão desaparecer
em um futuro pós-capitalista? Afinal, mercados e capitalismo não são a
mesma coisa. Mercados são apenas mecanismos para alocar recursos.
É natural — e está acontecendo — que a natureza social da informação
leve a formas de atividade de não-mercado. A Wikipédia é uma forma de
atividade não mercantil — é um buraco de 3 milhões de dólares no mundo
da propaganda.
Você escreve, em certo ponto, que os membros “mais
perspicazes” da elite global já são lúcidos a ponto de abordar algumas
das questões com as quais você lida no livro — por exemplo, a
desigualdade, seu impacto sobre o crescimento, a “estagnação secular” e o
papel da negociação coletiva na garantia de salários maiores. O antigo
secretário do Tesouro dos EUA, Larry Summers, escreveu vastamente sobre
todos estes três problemas, oferecendo diagnósticos não tão diferentes
dos seus.
Há pessoas na elite global que se permitiram entender o que estamos
passando. Uma das coisas que compreendem é que a desigualdade vai ser
desfuncional. Não apenas não querem ser linchados em suas camas, mas
também entendem que o dinamismo das economias capitalistas só será
retomado se houver um aumento dos salários. Também compreenderam a
chamada questão do limite de juro zero
— a ideia de que, em uma economia onde as taxas de juros reais estão
constantemente zeradas, será constantemente necessário adotar políticas
monetárias não-ortodoxas. Políticas monetária não-ortodoxas são
arenosas. Qualquer um que entendeu a crítica de Keynes nos anos 1920 e
começo dos 1930 vai entender o problema da “viscosidade”. Nos anos
trinta, os salários eram pegajosos — eles não iriam cair o suficiente.
Agora, é a política monetária que é pegajosa. O problema é: de onde o
novo dinamismo da economia virá? Larry Summers entende isso. E pessoas
nos mercados de títulos também.
O passo final é que eles olham aos choques exógenos e isso os
aterroriza. Isso me aterroriza também. As pessoas no poder, nos
ministérios da Fazenda, não vão se autorizar a quantificar a gravidade
dos choques que estão a caminho. Se 60% dos títulos emitidos pelos
Tesouros nacionais tornarem-se insolventes devido aos custos
relacionados com o envelhecimento das populações, algo que as agências
de risco consideram provável; se a imigração acontecer na escala que se
espera; se tivermos nove bilhões de pessoas clamando para entrar no
mundo desenvolvido…
Se o neoliberalismo fosse um sistema funcional, como era nos idos de
2001, e não tivesse deixado esta condição, você provavelmente poderia
dizer: “Droga, as coisas vão ficar realmente difíceis, mas provavelmente
será possível resolver.” Mas esse capitalismo eclerosado, estagnado e
fibrilado sob o qual vivemos desde 2008, não tem chance alguma de
sobreviver às tormentas. E mesmo que eu esteja errado sobre a transição
que vejo e desejo, seus defensores teriam de aparecer e dizer o que um
info-capitalismo dinâmico, o que uma terceira revolução industrial
poderia ser.
Mas me parece que Summers ou alguém como o economista Robert Gordon teriam que aceitar a parte de diagnóstico de sua análise…
Certo. Mas a razão pela qual não atravessei o caminho até o
território do Robert Gordon é que lá está a produtividade potencial. Sua
visão da produtividade potencial inerente à tecnologia da informação
transbordando para o mundo real … Acho que é maior do que ele aceita
ser.
Por que você pensa que ele subestima isso?
É porque pessoas como Gordon não estão preparadas para entrar nesse
mundo inferior, entre valor de uso e valor de troca, que as
externalidades representam. Não acho que lendo meu livro a maioria das
pessoas aceitarão que a transição, potencialmente, se dá em direção ao
mundo não-mercantil, centralizado na informação, de baixa intensidade
de trabalho, pós-capitalista. Mas se pensam que estamos indo em direção a
uma forma de info-capitalismo com uma terceira revolução industrial,
eles precisam contar para nós qual é a síntese de alto-valor. Que cara
terá essa era eduardiana da terceira revolução industrial?
Haverá sinais desse futuro na chamada economia do compartilhamento? Em empreendimentos como Airbnb e Uber?
Meu palpite é que eles são o AltaVista da economia de partilha. O
teórico social francês André Gorz explorou isso. Disse que é
perfeitamente possível imaginar o capitalismo colonizando as relações
interpessoais. O Uber é isso – a questão não são os motoristas de taxi,
mas as pessoas darem carona umas às outras. Gorz prevê que nos
tornaríamos provedores mútuos de microsserviços. Mas disse: “Essa não
pode ser uma economia de alto-valor”. Esse é o problema. Você não pode
construir um negócio garimpando a reserva da capacidade automobilística
de todos, sua capacidade para fazer massagem Reiki, a meia hora
sobressalente de cada eletricista. Você pode fazê-lo, e a economia da
partilha é a maneira perfeita para fazê-lo, mas isso simplesmente não
resulta na era eduardiana, na Belle Epoque. A Belle Epoque será o
sequenciamento de genes e a possibilidade de gastar metade do dia
jogando squash.
A maioria dos marxistas detestará esta hipótese. Significa dizer,
contra Marx, que a humanidade se liberta por si própria, que as pessoas
podem descobrir, dentro do capitalismo, recursos mentais para imaginar
um novo futuro e ir direto a ele de um modo que, de 1844 em diante, Marx
pensou ser impossível.
Você toma emprestada a ideia de “ciclo longo” do economista
soviético Nikolai Kondratieff. Ele argumentava que a história do
capitalismo pode ser entendida como uma sucessão de ciclos, cada um
deles com uma ascensão turbinada por inovação tecnológica com duração de
aproximadamente 25 anos, seguida de uma queda com aproximadamente a
mesma duração e que geralmente acaba numa depressão. Esses longos ciclos
são muito mais longos que os ciclos de negócio identificados com a
economia convencional. Por que você considera proveitosa a abordagem de
Kondratieff?
Penso que necessitamos de teorias maiores que os ciclos de negócio e
menores que a destruição completa do sistema. Quando você aplica a
teoria de Kondratieff ao período pós 1945, percebe o sistema funcionando
perfeitamente até 1973. E então ele desmorona. O neoliberalismo vem
junto e resolve o problema destruindo o poder de barganha do trabalho.
Olhar para as coisas através das lentes de Kondratieff força você a
colocar a questão: será o neoliberalismo a forma bem sucedida do novo
capitalismo ou o fim da linha que prolongou o ciclo por tempo demais?
Escolho a segunda alternativa.
Em que parte do ciclo nos encontramos agora?
Estamos bem no fim de um quarto longo ciclo muito prolongado. Estamos
na fase de depressão do quarto longo ciclo, que coincidiu com a
ascensão tecnológica do quinto. De modo que acredito que os longos
ciclos podem sobrepor-se. Penso que estamos numa posição incomum, do
ponto de vista histórico. Claramente, a revolução da informação está ai e
as bases de um tipo de capitalismo completamente novo podem estar
emergindo. O que aconteceu é que as velhas relações sociais da metade
passada da onda anterior não irão adiante. Não há Keynes, apenas o
reminiscente do velho. Se você olha para Mark Zuckerberg, do Facebook,
ou Jeff Bezos, da Amazon, verá que são pessoas agnósticas sobre o futuro
de todo o sistema. Eles veem apenas o futuro de sua própria corporação.
Meu uso de Kondratieff é para tentar responder a pergunta sobre onde
estamos. As outras periodicidades – o ciclo de negócio de dez anos e a
época, de 500 anos – não são suficientes. Não há uma cadeira de Estudos
Pós Capitalistas na Universidade de Wolverhampton! Eles estão na
infância.
Você mencionou André Gorz. No livro, você cita um trecho em
que ele diz, em 1980, que a classe trabalhadora está morta. Se estava
certo, quem será o agente de mudança social?
O fato terrível e desafiante pode ser que, se o capitalismo tem um
início, um meio e um fim, então o movimento dos trabalhadores também. Em
outras palavras, o declínio da luta trabalhista organizada, com base no
trabalho manual, especializado, branco e masculino, parece-me partedo
que está acontecendo ao capitalismo. Sou alguém que veio deste background
e viveu mergulhado nele. Mas argumento que o sujeito histórico que
trará o pós-capitalismo já existe e é o indivíduo em rede. A noção de
Antonio Negri de “fábrica social” era arrogante nos anos 1970s, porque
era muito cedo. Mas me parece ser justa agora – todos nós participamos
na criação de marcas, no estabelecimento de escolhas de consumo, estamos
alimentando o capitalismo financeiro por meio do nosso uso das
finanças. Por isso, consigo comprar a ideia de que existe uma fábrica
social. Se quiser desligá-la, deve fazer como William Benbow sugeriu na
década de 1820, parando a “grande festa”. Agora, duvido que isso vá
acontecer. Portanto, a maneira menos utópica de fazer isso é lutando
pelos interesses dos indivíduos em rede, para que eles não tenham suas
informações roubadas, arbitrariamente acessadas pelo Estado, para seus
estilos de vida poderem florescer, para que eles tenham escolhas.
São tantos os levantes que cobri – Turquia e Brasil são bons
exemplos. São assalariados em rede que não aguentam os níveis de
corrupção e intromissão em suas vidas – o islamismo na Turquia,
corrupção no Brasil. Que tipo de revolução é essa? Há uma discussão
entre aqueles que se envolveram com meu livro: se este é o agente, é
“por si” ou “em si”, como diria Marx. Seriam essas pessoas capazes de
adquirir um nível espontâneo de entendimento da situação que os levasse a
tomar algumas das medidas políticas insinuadas neste livro como um
caminho a seguir? Neste momento eles ainda não chegaram lá, claramente. O
que são é muito hábeis em construir seu espaço pessoal. Podemos zombar
disso, por ser em pequena escala. Mas, ao construir um espaço que é
simultaneamente econômico e pessoal, penso que esta geração está fazendo
algo muito significativo.
Será que os impregno com a mesma inevitabilidade e teleologia com que
o marxismo impregnou a classe trabalhadora? Não. No livro, gasto muito
tempo desmontando a compreensão marxista de classe trabalhadora. Sempre
senti, como alguém que tem essa bagagem, que o kit de ferramentas que o
marxismo tinha para descrever a classe trabalhadora era dos menos
convincentes – sobretudo para a própria classe trabalhadora.
A certa altura, você altura escreve que o marxismo é uma
grande “teoria da história”, porm se equivoca como “teoria da crise”. O
que quer dizer com isso?
Quero dizer que é uma grande teoria para analisar a sociedade de
classes. Por exemplo, durante a revolução do Egito em 2011, tendo lido O 18 Brumário de Luis Bonaparte,
de Marx, eu poderia dizer aos radicais egípcios que, quando o caos se
instalasse, as mesmas pessoas que estavam ao lado deles dariam as boas
vindas à ditadura. É provável que o capitalismo evocasse algo novo,
capaz de impor ordem. O que impôs desordem foi a Irmandade Muçulmana.
Ver as mesmas pessoas que tinham apoiado a revolução chamando o general
Sisi para derrubar a Irmandade faz sentido, se você leu O 18 Brumário.
Eu perguntei a Alexis Tsipras antes de o Syriza ser eleito: “Quais
seriam as ameaças para um governo de esquerda, se você conquistasse o
poder?” Contei a ele: “Você se lembra que [Salvador] Allende nomeou
[Augusto] Pinochet [no Chile]? Allende nomeou o general para deter um
golpe militar. Nós rimos. A questão, você poderia argumentar, é que o
governo da Grécia está sendo colonizado pelas mesmas forças que ele
imaginou estar ali para combater. Neste momento, a elite empresarial
está pensando: “Apenas Tsipras pode governar a Grécia.” Eles prefeririam
que ele governasse a Grécia sem a extrema esquerda do próprio partido.
Sempre encontro capitalistas gregos que me dizem: “Se Tsipras nos
escutasse, a Grécia seria um grande país.”
O marxismo força você a fazer perguntas que não são feitas pelos jornalistas mainstream.
Neste momento, a questão mais importante para os gregos é: o que está
acontecendo com as massas? As massas não estão derrotadas. Elas não
acreditam que Tsipras é Luis Bonaparte. Muitos fazem objeção ao que ele
fez, mas não acreditam que ele seja uma força da reação. Eles acreditam
no que está dizendo – que está fazendo algo contra a própria vontade e
que irá compensar isso com um ataque à oligarquia. Esperam que esse
ataque à oligarquia aconteça. Minha observação é de que houve uma grande
radicalização, na Grécia. Quando o verão terminar, veremos uma
renovação real tanto das lutas de base como do radicalismo do governo.
O foco naquilo que as pessoas estão dizendo nos pubs é algo que
interessa muito a dois tipos de pessoas: às forças da polícia secreta e
aos marxistas! Eu gasto o maior tempo possível ouvindo as pessoas.
Qual é o desafio jornalístico para ventilar esse tipo de questão? Trabalhar para uma rede de TV como o Channel Fourimpõe certamente certas restrições ao modo como você opera.
Um bom jornalista de assuntos sociais, que é o que penso ser, irá, na
Grécia por exemplo, conversar com primeiros-ministros, ministros de
Estado, mas irá também atrás dos estivadores, dos anarquistas. Ainda por
cima, você tem somente dois minutos e trinta segundos. Essa é a razão
por que gastei os últimos seis meses buscando recursos e realizando um
grande documentário que virá a público, espero, no final deste ano, e
que conta a história do Syriza desde as bases, a partir das ruas. Queria
fazer isso porque no meu trabalho diário nunca poderia contar essa
história. É simplesmente impossível.
E sobre a acusação, frequentemente dirigida a você (e feita
várias vezes, durante os últimos meses na Grécia) de que, ao operar
dessa forma, você excede os limites da propriedade jornalística ou da
isenção?
Penso que todos estão errados! A realidade é que o mundo é governado
por uma elite dedicada a reforçar, de modo às vezes completamente
aberto, a desigualdade e tudo o que a acompanha. Na Grécia, a
“austeridade” é uma forma de coerção. Fico feliz de dizer isso porque
essa é a minha análise da realidade. Muita gente no Financial Times ou no Wall Street Journal
não compartilha dessa minha visão. Mas estou muito feliz, e meus
patrões estão permanentemente felizes com o modo como pratico o
jornalismo. As pessoas que não gostam devem simplesmente acostumar-se a
ele.
Com ideias como as que estão neste livro, a razão de divulgar uma
ideia radical é que você não espera que Andy Burnham ou Tim Farron,
[dirigentes do Partido Trabalhista britânico] irão telefonar e dizer,
“gosto disso, Paul. Vamos incluir na política do partido.” A questão é
ser um pouco do contra. Há pensamento único demais. Meu desejo com esse
livro é fazer como num workshop de teatro – levar as pessoas a uma
experiência fora do corpo, a ficar largadas no chão, na piscina das
próprias lágrimas. Então, quando elas voltarem à segurança do grupo,
talvez possam fazer alguma coisa mais honesta.
Nos anos oitenta, Michelle Perrot se perguntava se era possível uma
história das mulheres, num trabalho que se tornou bastante conhecido, no
qual expunha os inúmeros problemas decorrentes do privilegiamento de um
outro sujeito universal: a mulher. [1] Argumentava que
muito se perdia nessa historiografia que, afinal, não dava conta de
pensar dinamicamente as relações sexuais e sociais, já que as mulheres
não vivem isoladas em ilhas, mas interagem continuamente com os homens,
quer os consideremos na figura de maridos, pais ou irmãos, quer enquanto
profissionais com os quais convivemos no cotidiano, como os colegas de
trabalho, os médicos, dentistas, padeiros ou carteiros. Concluía pela
necessidade de uma forma de produção acadêmica que problematizasse as
relações entre os sexos, mais do que produzisse análises a partir do
privilegiamento do sujeito. Ao mesmo tempo, levantava polêmicas questões:
existiria uma maneira feminina de fazer/escrever a história,
radicalmente diferente da masculina? E, ainda, existiria uma memória
especificamente feminina?
Em relação à primeira questão, Perrot respondia simultaneamente sim e
não. Sim, porque entendia que há um modo de interrogação próprio do
olhar feminino, um ponto de vista específico das mulheres ao abordar o
passado, uma proposta de releitura da História no feminino. Não, em se
considerando que o método, a forma de trabalhar e procurar as fontes não
se diferenciavam do que ela própria havia feito antes enquanto
pesquisadora do movimento operário francês. Entendia, assim, que o fato
de ser uma historiadora do sexo feminino não alterava em nada a maneira
como estudara e recortara o objeto. Na verdade, sua argumentação
deslocava a discussão, deixando de considerar o modo de produzir e
narrar a História para focalizar o objeto de estudo, sem pensar, por
exemplo, por que ela não poderia ter trabalhado femininamente um objeto
ou um tema masculino?[2] Ao mesmo tempo, Perrot
destacava as diferenças de registro da memória feminina, mais atenta aos
detalhes do que a masculina, mais voltada para as pequenas
manifestações do dia-a-dia, geralmente pouco notadas pelos homens.[3]
Mais recentemente, outro prestigiado historiador francês advertiu
contra os perigos de se investir a diferença entre os sexos de uma força
explicativa universal; de se observar os usos sexualmente diferenciados
dos modelos culturais comuns aos dois sexos; de se definir a natureza
da diferença que marca a prática feminina; e da incorporação feminina da
dominação masculina.[4] Muito preocupado em reconhecer
a importância da diferenciação sexual das experiências sociais,
Chartier revelava certo constrangimento em relação à incorporação da
categoria do gênero, numa atitude bastante comum entre muitos
historiadores, principalmente do sexo masculino.
Procuro, neste texto, levantar alguns pontos de reflexão sobre a
epistemologia feminista e sua ressonância na historiografia. É da maior
importância discutir questões tão candentes e atuais, especialmente num
encontro acadêmico que procura perceber as possibilidades abertas para a
produção do conhecimento pelas discussões que giram em torno da
incorporação da categoria do gênero e que apontam para a sexualização da
experiência humana no discurso. Epistemologia feminista: ensaiando alternativas.
Ao menos no Brasil, é visível que não há nem clarezas, nem certezas
em relação a uma teoria feminista do conhecimento. Não apenas a questão é
pouco debatida mesmo nas rodas feministas, como, em geral, o próprio
debate nos vem pronto, traduzido pelas publicações de autoras do
Hemisfério Norte. Há quem diga, aliás, que a questão interessa pouco ao
“feminismo dos trópicos”, onde a urgência dos problemas e a necessidade
de rápida interferência no social não deixariam tempo para maiores
reflexões filosóficas.[5]
Contrariando posições e tentando aproximar-me da questão, gostaria de
esboçar algumas idéias. Afinal, se considerarmos que a epistemologia
define um campo e uma forma de produção do conhecimento, o campo
conceitual a partir do qual operamos ao produzir o conhecimento
científico, a maneira pela qual estabelecemos a relação sujeito-objeto
do conhecimento e a própria representação de conhecimento como verdade
com que operamos, deveríamos prestar atenção ao movimento de
constituição de uma (ou seriam várias?) epistemologia feminista, ou de
um projeto feminista de ciência.[6] O feminismo não
apenas tem produzido uma crítica contundente ao modo dominante de
produção do conhecimento científico, como também propõe um modo
alternativo de operação e articulação nesta esfera. Além disso, se
consideramos que as mulheres trazem uma experiência histórica e cultural
diferenciada da masculina, ao menos até o presente, uma experiência que
várias já classificaram como das margens, da construção miúda, da
gestão do detalhe, que se expressa na busca de uma nova linguagem, ou na
produção de um contradiscurso, é inegável que uma profunda mutação
vem-se processando também na produção do conhecimento científico.
Certamente, a questão é muito mais complexa do que estou formulando
aqui, já que, de um lado, há outras correntes vanguardistas do
pensamento contemporâneo, atuando no sentido das profundas
desestabilizações e rupturas teóricas e práticas em curso. Além do mais,
seria ingênuo considerar que a teoria feminista rompe absolutamente com
os modelos de conhecimento dominantes nas Ciências Humanas, sem
reconhecer que se há rupturas, há também muitas permanências em relação à
tradição científica. No entanto, quero chamar a atenção especificamente
para o aporte feminista às transformações em curso no campo da produção
do conhecimento.
Na consideração da existência de uma/várias epistemologia/s
feminista/s, valeria então destacarmos, de início, dois pontos: o
primeiro aponta para a participação do feminismo na ampla crítica
cultural, teórica, epistemológica em curso, ao lado da Psicanálise, da
Hermenêutica, da Teoria Crítica Marxista, do Desconstrutivismo e do
Pós-modernismo. Esta crítica revela o caráter particular de categorias
dominantes, que se apresentam como universais; propõe a crítica da
racionalidade burguesa, ocidental, marxista incluso, que não se pensa em
sua dimensão sexualizada, enquanto criação masculina, logo excludente.
Portanto, denuncia uma racionalidade que opera num campo ensimesmado,
isto é, a partir da lógica da identidade e que não dá conta de pensar a
diferença. É neste ponto que o feminismo se encontra especialmente com o
pensamento pós-moderno, com a crítica do sujeito, com as formulações de
Derrida e Foucault, entre outras.[7] O segundo,
embutido no primeiro, traz as pro- postas desta nova forma de conceber a
produção do conhecimento, do projeto feminista de ciência alternativa,
que se quer potencialmente emancipador.
1 – A crítica feminista.
Não é demais reafirmar que os principais pontos da crítica feminista à
ciência incidem na denúncia de seu caráter particularista, ideológico,
racista e sexista: o saber ocidental opera no interior da lógica da
identidade, valendo-se de categorias reflexivas, incapazes de pensar a
diferença. Em outras palavras, atacam as feministas, os conceitos com
que trabalham as Ciências Humanas são identitários e, portanto,
excludentes. Pensa-se a partir de um conceito universal de homem, que
remete ao branco heterossexual civilizado do Primeiro Mundo, deixando-se
de lado todos aqueles que escapam deste modelo de referência. Da mesma
forma, as práticas masculinas são mais valorizadas e hierarquizadas em
relação às femininas, o mundo privado sendo considerado de menor
importância frente à esfera pública, no imaginário ocidental.
Portanto, as noções de objetividade e de neutralidade que garantiam a
veracidade do conhecimento caem por terra, no mesmo movimento em que se
denuncia o quanto os padrões de normatividade científica são
impregnados por valores masculinos, raramente filóginos. Mais do que
nunca, a crítica feminista evidencia as relações de poder constitutivas
da produção dos saberes, como aponta, de outro lado, Michel Foucault.
Este questionara radicalmente as representações que orientavam a
produção do conhecimento científico, tida como o ato de revelação da
essência inerente à coisa, a partir do desvendamento do que se
considerava a aparência enganosa e ideológica do fenômeno. Especialmente
nas Ciências Humanas, chegar à verdade do acontecimento, “compreendê-lo
objetivamente” significava retirar a máscara que o envolvia na
superfície e chegar às suas profundezas. Foucault criticava, assim, a
concepção dominante na cultura ocidental de que o conhecimento, a
produção da verdade se daria pela coincidência entre o conceito e a
coisa, no movimento de superação da distância entre a palavra e a coisa,
entre a aparência e a essência.
A convergência entre a crítica feminista e as formulações dos
“filósofos da diferença”, como Foucault, Deleuze, Lyotard, Derrida,
entre outros, já foi observada por várias intelectuais.[8]
A filosofia pós-moderna propõe, a partir de um solo epistemológico que
se constitui fora do marxismo, novas relações e novos modos de operar no
processo da produção do conhecimento: a “descrição das dispersões”
(Foucault) e não a “síntese das múltiplas determinações” (Marx); revelar
o processo artificial de construção das unidades conceituais, temáticas
suposta- mente “naturais”: a desconstrução das sínteses, das unidades e
das identidades ditas naturais, ao contrário da busca de totalização
das multiplicidades. E, fundamentalmente, postula a noção de que o
discurso não é reflexo de uma suposta base material das relações sociais
de produção, mas produtor e instituinte de “reais”. A produção do
conhecimento se daria, assim, por outras vias. Como disse Foucault:
“Mas não se trata aqui de neutralizar o discurso, transformá-lo em
signo de outra coisa e atravessar-lhe a espessura para encontrar o que
permanece silenciosamente aquém dele, e sim, pelo contrário, mantê-lo em
sua consistência, fazê-lo surgir na complexidade que lhe é própria. Em
uma palavra, quer-se, na verdade, renunciar às “coisas”,
“despresentificá-las”; (…) substituir o tesouro enigmático das “coisas”
anteriores ao discurso pela formação regular dos objetos que só nele se
delineiam; definir esses objetos sem referência ao fundo das coisas, mas
relacionando-os ao conjunto de regras que permitem formá-los como
objetos de um discurso e que constituem, assim, suas condições de
aparecimento histórico;”.[9]
Do mesmo modo, as teóricas feministas propuseram não apenas que o
sujeito deixasse de ser tomado como ponto de partida, mas que fosse
considerado dinamicamente como efeito das determinações culturais,
inserido em um campo de complexas relações sociais, sexuais e étnicas.
Portanto, em se considerando os “estudos da mulher”, esta não deveria
ser pensada como uma essência biológica pré-determinada, anterior à
História, mas como uma identidade construída social e culturalmente no
jogo das relações sociais e sexuais, pelas práticas disciplinadoras e
pelos discursos/saberes instituintes. Como se vê, a categoria do gênero
encontrou aqui um terreno absolutamente favorável para ser abrigada, já
que desnaturaliza as identidades sexuais e postula a dimensão relacional
do movimento constitutivo das diferenças sexuais.
Vale ainda notar a aproximação entre as formulações da teoria
feminista e a valorização da cultura pelo pós-modernismo, ao contrário
da sociedade para o marxismo. Nesse contexto, a História Cultural ganha
terreno entre os historiadores, enfatisando a importância da linguagem,
das representações sociais culturalmente constituídas, esclarecendo que
não há anterioridade das relações econômicas e sociais em relação às
culturais. O discurso, visto como prática, passa a ser percebido como a
principal matéria prima do historiador, entendendo-se que se ele não
cria o mundo, apropria-se deste e lhe proporciona múltiplos
significados.[10]
É nesta perspectiva que Joan Scott, conhecida anteriormente por seus
trabalhos na área da História Social, ao procurar explicar
alternativamente o “problema” da trabalhadora, a divisão sexual do
trabalho, a oposição entre o lar e o trabalho, inverte radicalmente o
caminho tradicional da interpretação histórica, enfatisando a
importância do discurso na constituição de uma questão socio-econômica. A
divisão sexual do trabalho é, então, percebida como efeito do discurso.
Segundo ela,
“Ao invés de procurar causas técnicas e estruturais específicas,
devemos estudar o discurso a partir do qual as divisões do trabalho
foram estabeleci- das segundo o sexo. O que deve produzir uma análise
crítica mais aprofundada das interpretações históricas correntes.”[11]
Explica que a diferença sexual inscrita nas práticas e nos fatos é
sempre construída pelos discursos que a fundam e a legitimam, e não como
um reflexo das relações econômicas. Considera insustentável a difundida
tese de que a industrialização provocou uma separação entre o trabalho e
o lar, obrigando as mulheres a escolher entre o trabalho doméstico e o
assalariado. Para ela, o discurso masculino, que estabeleceu a
inferioridade física e mental das mulheres, que definiu a partilha “aos
homens, a madeira e os metais” e “às mulheres, a família e o tecido”
provocou “uma divisão sexual da mão-de-obra no mercado de trabalho,
reunindo as mulheres em certos empregos, substituindo-as sempre por
baixo de uma hierarquia profissional, e estabelecendo seus salários em
níveis insuficientes para sua subsistência.” (idem)
2 – O projeto de ciência feminista ou um modo feminista de pensar?
É dificil falar de uma epistemologia feminista, sem tocar na
discussão sobre os perigos da reafirmação do sujeito “mulher” e de todas
as cargas constitutivas dessa identidade no imaginário social. Afinal,
como já se observou exaustivamente, a questão das relações sexuais e da
mulher especificamente nasce a partir das lutas pela emancipação deste
sujeito antes definido como “sexo fragil”. É na luta pela visibilidade
da “questão feminina”, pela conquista e ampliação dos seus direitos
específicos, pelo fortalecimento da identidade da mulher, que nasce um
contradiscurso feminista e que se constitui um campo feminista do
conhecimento. É a partir de uma luta política que nasce uma linguagem
feminista. E, no entanto, o campo teórico que se constitui transforma-se
a tal ponto que, assim como a História Cultural, deixa de lado a
preocupação com a centralidade do sujeito. Como se de repente os efeitos
se desviassem dos objetivos visados no ponto de partida: a categoria
relacional do gênero desinveste a preocupação de fortalecimento da
identidade mulher, ao contrário do que se visava inicialmente com um
projeto alternativo de uma ciência feminista.
Esta é uma das principais dificuldades que emergem, ao se tentar
conceitualizar o campo epistemológico em que se funda um conhecimento
sobre as mulheres e, agora, sobre as relações de gênero. A categoria do
gênero, já observou Joan Scott, não nasce no interior de um sistema de
pensamento definido como o conceito de classes em relação ao marxismo.
Embora seja apropriada como instrumento analítico extremamente útil,
pro- cede de um campo profundamente diverso daquele que tinha como
horizonte a emancipação social de determinados setores sociais. Helen
Longino observa, ainda, que foi depois do desenvolvimento do pensamento
feminista nas áreas da história, antropologia, teoria literária,
psicologia e sociologia que se passou a pensar nos conceitos através dos
quais se operava. A reflexão filosófica foi posterior à prática
teórica.[12]
Isto significa: 1) que houve uma incorporação das questões feministas
em diferentes campos da produção do conhecimento científico, de fora
para dentro, como por exemplo, na psicanálise ou no campo marxista. Os
temas da mulher e do gênero foram incorporados às questões colocadas
pela historiografia marxista, sem ter nascido a partir dela,
enfrentando, aliás, sérias dificuldades em seu interior. Sabemos como a
questão das relações entre os sexos, a história da sexualidade e do
corpo, as lutas políticas das mulheres foram secundarizadas no marxismo,
tidas como secundárias em relação às questões da luta das classes. Do
mesmo modo, a questão étnica e racial. É impossível deixar de pensar na
reação que o livro História da Sexualidade, de Foucault teve por parte
dos historiadores ligados à História Social, por exemplo. De certo modo,
não se pensava nas relações sexuais como dimensão constitutiva da vida
em sociedade e como uma das definidoras de nossa forma de operar
conceitualmente. A sexualidade era identificado à força instintiva,
biológica e, assim, não merecia ser historicizada. Este era o lugar que
tinha não apenas no marxismo, mas no imaginário ocidental.
2) Esta incorporação, portanto, não se deu sem maiores
complicações. Porque a entrada dos temas feministas em campos
epistemológicos masculinos provocou muitas desestabilizações e, mesmo,
rupturas, a despeito das muitas permanências. Os conceitos se mostravam
estreitos demais para pensar a diferença, aliás, masculinos, muitas
vezes misóginos, precisavam ser transformados, abandonados,
questionados, refeitos. Como lembra Elizabeth Grosz, não se tratava
afinal de um simples esquecimento das mulheres de um campo neutro e
objetivo de conhecimentos: “Sua amnésia é estratégica e serve para
assegurar as bases patriarcais do conhecimento.”[13]
Além disso, esta entrada, por exemplo, no campo do marxismo só foi
possível porque este, ao dar sinais de esgotamento, estava sendo
amplamente critica – do, vários conceitos se mostravam insuficientes, e
os marxistas partiam em busca de renovações conceituais, temáticas, de
atualização.[14]
3) Esta incorporação remete, ainda, a uma outra questão: a
que vem uma epistemologia feminista? Para que necessitamos de uma nova
ordem explicativa do mundo? Para melhor controlar o pensamento e o
mundo? Uma nova ordem das regras para trazer poder político a um setor
que se sente excluído? Sandra Harding pergunta, então, ao lado de muitas
outras feministas, se não estaríamos correndo o risco de repor o tipo
de relação poder-saber que tanto criticamos: “Como é que o feminismo pode redefinir totalmente a relação entre
saber e poder, se ele está criando uma nova epistemologia, mais um
conjunto de regras para controlar o pensamento?”[15]
É possível contra-argumentar lembrando que não há como fugir ao fato
de que todas as minorias relativamente organiza- das, e não apenas as
mulheres, estão reivindicando uma fatia do bolo da ciência e que nenhum
dos grupos excluídos, – negros, africanos, orientais, homossexuais,
mulheres, com suas pro- postas de epistemologias alternativas –
feminista, terceiro mundista, homossexual, operária – pode hoje
reivindicar um lugar de hegemonia absoluta na interpretação do mundo.
Além disso, há que se reconhecer as dimensões positivas da quebra das
concepções absolutizadoras, totalizadoras, que até recentemente poucos
percebiam como autoritárias, impositivas e hierarquizantes. Não há
dúvidas de que o modo feminista de pensar rompe com os modelos
hierárquicos de funcionamento da ciência e com vários dos pressupostos
da pesquisa científica. Se a crítica feminista deve “encontrar seu
próprio assunto, seu próprio sistema, sua própria teoria e sua própria
voz,” como diz Showalter, é possível dizer que as mulheres estão
construindo uma linguagem nova, criando seus argumentos a partir de suas
próprias premissas.[16]
Vamos dizer que podemos pensar numa epistemologia feminista, para
além do marxismo e da fenomenologia, como uma forma específica de
produção do conhecimento que traz a marca especificamente feminina,
tendencialmente libertária, emancipadora. Há uma construção cultural da
identidade feminina, da subjetividade feminina, da cultura feminina, que
está evidenciada no momento em que as mulheres entram em massa no
mercado, em que ocupam profissões masculinas e em que a cultura e a
linguagem se feminizam. As mulheres entram no espaço público e nos
espaços do saber transformando inevitavelmente estes campos, recolocando
as questões, questionando, colocando novas questões, transformando
radicalmente. Sem dúvida alguma, há um aporte feminino/ista específico,
diferenciador, energizante, libertário, que rompe com um enquadramento
conceitual normativo. Talvez daí mesmo a dificuldade de nomear o campo
da epistemologia feminista.
Vejamos alguns aspectos desse aporte: o questionamento da produção do
conhecimento entendida como processo racional e objetivo para se
atingir a verdade pura e universal, e a busca de novos parâmetros da
produção do conhecimento. Aponta, então, para a superação do
conhecimento como um processo meramente racional: as mulheres incorporam
a dimensão subjetiva, emotiva, intuitiva no processo do conhecimento,
questio nando a divisão corpo/mente, sentimento/razão. Simmel já fizera
esta observação, em 1902, ao indagar sobre as possíveis contribuições da
“Cultura Feminina” num mundo masculino, e Helen Longino complementa:
“Em busca de parâmetros (groundings) conceituais e filosóficos
alternativos, muitos pensadores abraçaram modos de análise que rejeitam a
dicotomização entre razão e paixão, entre saber e sentimento.”[17]
Para ela, o pensamento feminista trouxe a subjetividade como forma de
conhecimento. “We all see feelingly”, afirma, o que se opõe
radicalmente ao ideal de conhecimento objetivo trazido das Ciências
Naturais para as Ciências Humanas. Entrando num mundo masculino,
possuído por outros, a mulher percebe que não detém a linguagem e luta
por criar uma, ou ampliar a existente: aqui se encontra a principal
fonte do aporte feminista à produção do conhecimento, à construção de
novos significados na interpretação do mundo.
Portanto, o feminismo propõe uma nova relação entre teoria e prática.
Delineia-se um novo agente epistêmico, não isolado do mundo, mas
inserido no coração dele, não isento e imparcial, mas subjetivo e
afirmando sua particularidade. Ao contrário do desligamento do cientista
em relação ao seu objeto de conhecimento, o que permitiria produzir um
conhecimento neutro, livre de interferências subjetivas, clama-se pelo
envolvimento do sujeito com seu objeto. Uma nova idéia da produção do
conhecimento: não o cientista isolado em seu gabinete, testando seu
método acabado na realidade empírica, livre das emoções desviantes do
contato social, mas um processo de conheci- mento construído por
indivíduos em interação, em diálogo crítico, contrastando seus
diferentes pontos de vista, alterando suas observações, teorias e
hipóteses, sem um método pronto. Reafirma-se a idéia de que o caminho se
constrói caminhando e interagindo.
Defendendo o relativismo cultural, questiona também a noção de que
este conhecimento visa atingir a verdade pura, essencial. Reconhece a
particularidade deste modo de pensa- mento e abandona a pretensão de ser
a única possibilidade de interpretação. Concordando com Sandra Harding:
“Uma forma de resolver o dilema seria dizer que a ciência e a
epistemologia feministas terão um valor próprio ao lado, e fazendo parte
integrante, de outras ciências e epistemologias – jamais como
superiores às outras.”(p.23)
Enfatiza a historicidade dos conceitos e a coexistência de
temporalidades múltiplas. Nesta direção, a historiadora Maria Odila
Leite da Silva Dias mostra a confluência das te dências historiográficas
contemporâneas com as inquietações feministas; defendendo a
“instabilidade das categorias feministas” (Sandra Harding), fala em
hermenêutica crítica e no historismo:
“a historiografia feminista segue os mesmos parâmetros (que a
desconstrução de Derrida, a arqueologia da Foucault, a teoria crítica
marxista, a história social e conceitual dos historistas alemães, a
historiografia das mentalidades), pois tem seu caminho metodológico
aberto para a possibilidade de construir as diferenças e de explorar a
diversidade dos papéis informais femininos.”[18]
Os estudos feministas inovam, então, na maneira como trabalham com as
multiplicidades temporais, descartando a idéia de linha evolutiva
inerente aos processos históricos.
Feminismo e História
Seria interessante, por fim, pensar como os deslocamentos teóricos
produzidos pelo feminismo têm repercutido na produção historiográfica. A
emergência de novos temas, de novos objetos e questões, especialmente
ao longo da década de setenta deu maior visibilidade às mulheres
enquanto agentes históricos, incialmente a partir do padrão masculino da
História Social, extremamente preocupada com as questões da resistência
social e das formas de dominação política.[19] Este quadro ampliou-se, posteriormente, com a explosão dos temas femininos da Nouvelle Histoire,
como bruxaria, prostituição, loucura, aborto, parto, maternidade,
saúde, sexualidade, a história das emoções e dos sentimentos, entre
outros.
É claro que muitos discordarão da divisão sexual dos temas históricos
acima proposta, já que há muitas outras dimensões implicadas na
ampliação do leque temático, principalmente a crise da “historiografia
da Revolução” e a redescoberta da Escola dos Annales. Entretanto, poucos
poderão negar que a entrada desses novos temas se fêz em grande parte
pela pressão crescente das mulheres, que invadiram as universidades e
criaram seus próprios núcleos de estudo e pesquisa, a partir dos anos
setenta. Feministas assumidas ou não, as mulheres forçam a inclusão dos
temas que falam de si, que contam sua própria história e de suas
antepassadas e que permitem entender as origens de muitas crenças e
valores, de muitas práticas sociais frequentemente opressivas e de
inúmeras formas de desclassificação e estigmatização. De certo modo, o
passado já não nos dizia e precisava ser reinterrogado a partir de novos
olhares e problematizações, através de outras categorias
interpretativas, criadas fora da estrutura falocêntrica especular.
A descoberta da origem da “mãe moderna” a partir do modelo
rousseauísta, proposta por Elisabeth Badinter, por exemplo, foi
fundamental para se reforçar o questionamento do padrão de maternidade
que havia vigorado inquestionável até os anos 60 e reforçar a luta
feminista pela conquista de novos direitos; a genealogia dos conceitos
da prostituição, da homossexualidade e da perversão sexual, entre
outros, foi extremamente importante enquanto reforçava a desconstrução
prática das inúmeras formas de normatização.[20] A
história do corpo feminino trouxe à luz as inúmeras construções
estigmatizadoras e misóginas do poder médico, para o qual a constituição
física da mulher por si só inviabilizaria sua entrada no mundo dos
negócios e da política. O questionamento das mitologias científicas
sobre sua suposta natureza, sobre a questão da maternidade, do corpo e
da sexualidade foi fundamental em termos da legitimação das
transformações libertadoras em curso.
O campo das experiências históricas consideradas dignas de serem
narradas ampliou-se consideravelmente e juntamente com a emergência dos
novos temas de estudo, isto é, com a visibilidade e dizibilidade que
ganharam inúmeras práticas sociais, culturais, religiosas, antes
silenciadas, novos sujeitos femininos foram incluídos no discurso
histórico, partindo-se inicialmente das trabalhadoras e militantes, para
incluir-se, em seguida, as bruxas, as prostitutas, as freiras, as
parteiras, as loucas, as domésticas, as professoras, entre outras. A
ampliação do conceito de cidadania, o direito à história e à memória não
se processavam apenas no campo dos movimentos sociais, passando a ser
incorporados no discurso, ou melhor, no próprio âmbito do processo da
produção do conhecimento.
Para tanto, novos conceitos e categorias tiveram de ser introduzidos a
partir das perguntas levantadas pelo feminismo e dos deslocamentos
teóricos e práticos provocados. Por que se privilegiavam os
acontecimentos da esfera pública e não os constitutivos de uma história
da vida privada? Por que se desprezava a cozinha, em relação à sala, e a
casa em relação à rua? Onde uma história dos segredos, das formas de
circulação e comunicação femininas, das fofocas, das redes interativas
construídas nas margens, igualmente fundamentais para a construção da
vida em sociedade? Quais as possibilidades de uma História no feminino?
Não apenas a história das mulheres, mas a história contada no registro
feminino?[21]
Neste contexto, ficou evidente a precariedade e estreiteza do
instrumental conceitual disponível para registrar as práticas sociais
que passavam a ser percebidas, embora existentes desde sempre. Para o
historiador formado na tradição marxista, especialista na recuperação
histórica das lutas sociais e da dominação de classes, como falar das
práticas desejantes, com que conceitos poderia construir uma história do
amor, da sexualidade, do corpo ou do medo? Como trabalhar a questão da
religiosidade e das reações diante da vida e da morte?
No casos dos estudos feministas, o sucesso da categoria do gênero se
explica, em grande parte, por ter dado uma resposta interessante ao
impasse teórico existente, quando se questionava a lógica da identidade e
se decretava o eclipse do sujeito. Categoria relacional, como observa
Joan Scott, encontrou campo extremamente favorável num momento de grande
mudança das referências teóricas vigentes nas Ciências Humanas, e em
que a dimensão da Cultura passava a ser privilegiada sobre as de-
terminações da Sociedade. Assim como outras correntes de pensamento, a
teoria feminista propunha que se pensasse a construção cultural das
diferenças sexuais, negando radicalmente o determinismo natural e
biológico. Portanto, a dimensão simbólica, o imaginário social, a
construção dos múltiplos senti- dos e interpretações no interior de uma
dada cultura passavam a ser priorizados em relação às explicações
econômicas ou políticas.
Em termos da historiografia, estas concepções se aproximam das
formuladas pela História Cultural. Esta põe em evidência a necessidade
de se pensar o campo das interpretações culturais, a construção dos
inúmeros significados sociais e culturais pelos agentes históricos, as
práticas da representação, deixando muito claro que o predomínio
prolongado da História Social, de tradição marxista, secundarizou demais
o campo da subjetividade e da dimensão simbólica. Exceção feita a E.P.
Thompson, que aliás se tornou extremamente famoso apenas na década de
oitenta, grande parte dos estudos históricos de tendência marxista
mantinham-se presos ao campo da política e da economia, este sendo
considerado o “lugar do real” e da inteligibilidade da história. Apenas
nas últimas décadas, passou-se a falar incisivamente em imaginário
social, nas representações sociais, em subjetividade e, para tanto, a
História precisou buscar aproximações com a Antropologia, a Psicanálise e
a Literatura. Além disso, na medida em que o discurso passou a ser
dotado de positividade, os historiadores também perceberam que era
inevitável interrogar o próprio discurso e dimensionar suas formas
narrativas e interpretativas.
Em relação aos estudos feministas, e a despeito das inúmeras
polêmicas em curso, vale notar que a categoria do gênero abre, ainda, a
possibilidade da constituição dos estudos sobre os homens, num campo
teórico e temático bastante renovado e radicalmente redimensionado. Após
a “revolução feminista” e a conquista da visibilidade feminina, após a
constituição da área de pesquisa e estudos feministas, consagrada
academicamente em todo o mundo, os homens são chamados a entrar, desta
vez, em um novo solo epistêmico. É assim que emergem os estudos
históricos, antropológicos, sociológicos – interdisciplinares – sobre a
masculinidade, com enorme aceitação. Cada vez mais, portanto, crescem os
estudos sobre as relações de gênero, sobre as mulheres, em particular,
ao mesmo tempo em que se constitui uma nova área de estudos sobre os
homens, não mais percebidos enquanto sujeitos universais.
Sem dúvida alguma, os resultados das inúmeras perspectivas abertas
têm sido dos mais criativos e instigantes. O olhar feminista permite
reler a história da Colonização no Brasil, no século 16, a exemplo do
que realiza a historiadora Tânia Navarro Swain, desconstruindo as
imagens e representações construídas pelos viajantes sobre as formas de
organização dos indígenas, sobre a sexualidade das mulheres,
supostamente fogosas e promíscuas, instituindo sua amoralidade. Num
excelente trabalho genealógico, a historiadora revela como os documentos
foram apropriados e reinterpretados pela historiografia masculina,
através de conceitos extremamente misóginos, cristalizando-se imagens
profundamente negativas a respeito dos primeiros habitantes da terra,
considerados para sempre incivilizados e inca- pazes de cidadania.
Já Maria Izilda Matos e Fernando A. Faria, estudando as composições
musicais de Lupicínio Rodrigues, a partir da categoria do gênero,
descortinam as formas de construção cultural das referências
identitárias da feminilidade e da masculinidade, nas décadas de quarenta
e cinquenta, dominantes até recente- mente. A partir da análise das
letras de músicas produzidas pelo famoso compositor gaúcho, podem
visualizar não apenas as experiências femininas, mas “seu universo de
relações com o mundo masculino”, numa proposta bastante enriquecedora e
inovadora.
Finalizando…
As possibilidades abertas para os estudos históricos pelas teorias
feministas são inúmeras e profundamente instigantes: da descontrução dos
temas e interpretações masculinos às novas propostas de se falar
femininamente das experiências do cotidiano, da micro-história, dos
detalhes, do mundo privado, rom- pendo com as antigas oposições binárias
e de dentro, buscando respaldo na Antropologia e na Psicanálise,
incorporando a dimensão subjetiva do narrador.
Na historiografia feminista, vale notar, a teoria segue a
experiência: esta não é buscada para comprovar aquela, aprioristicamente
proposta. Opera-se uma deshierarquização dos acontecimentos: todos se
tornam passíveis de serem historicizados, e não apenas as ações de
determinados sujeitos sociais, sexuais e étnicos das elites econômicas e
políticas, ou de outros setores sociais, como o
proletariado-masculino-branco, tido como sujeito privilegiado por longo
tempo, na produção acadêmica. Aliás, as práticas passam a ser
privilegiadas em relação aos sujeitos sociais, num movimento que me
parece bastante democratizador. Assim, e como diria Paul Veyne, o que
deve ser privilegiado pelo historiador passa a ser dado pela temática
que ele recorta e constrói, e não por um consenso teórico exterior à
problemática, como acontecia antes quando se trabalhava com o conceito
de modo de produção, por exemplo, ou ainda, quando a preocupação maior
com o passado advinha de suas possibilidades em dar respostas à busca da
Revolução. A realidade já não cede à teoria.
Enfim, parece que já não há mais dúvidas de que as mulheres sabem
inovar na reorganização dos espaços físicos, sociais, culturais e aqui,
pode-se complementar, nos intelectuais e científicos. E o que me parece
mais importante, sabem inovar libertariamente, abrindo o campo das
possibilidades interpretativas, propondo múltiplos temas de
investigação, formulando novas problematizações, incorporando inúmeros
sujeitos sociais, construindo novas formas de pensar e viver.
Notas.
Michelle Perrot – Une histoire des femmes est-elle possible? Paris: Rivage, 1984.
Lembre-se que M.Perrot escrevera um importante estudo no campo da
História Social: les ouvriers en grève. France 1871-1890. Mouton, 1974.
M. Perrot – “Práticas da Memória Feminina”, Revista Brasileira de História, S. Paulo: Anpuh/Marco Zero, vol.9, no.18,1989.
Roger Chartier – “Diferenças entre os sexos e dominação simbólica”, Cadernos PAGU, no.4, Unicamp, 1995.
Uma instigante discussão sobre o tema, encontra-se em Roberto Cintra
Martins – “Filosofia da Ciência e feminismo: uma ligação natural”, in:
Lucila Scavone (org.)- Tecnologias reprodutivas. Gênero e Ciência.
S.Paulo: UNESP, 1996.
A esse respeito, veja-se Linda Alcoff e Elizabeth Potter (orgs.) –
Feminist epistemologies. New York and London: Routledge, 1993.
Vide a respeito Mary McCanney Gergen (ed.) – O pensamento feminista e
a estrutura do conhecimento. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos/EdUNB,
1993; Cláudia Costa Lima – “O leito de Procusto: gênero, linguagem e as
teorias feministas”, Cadernos PAGU, no.2, Unicamp, 1993.
Veja-se, por ex., Jane Flax – “Pós-Modernismo e Relações de Gênero
na Teoria Feminista”, in Heloísa Buarque de Hollanda – Pósmodernismo e
política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
Michel Foucault – Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986, p.54
Keith Jenkins – Re-thinking history. London: Routledge, 1991.
Joan W. Scott – “La Travailleuse”, in G. Duby e M.P errot (orgs.) – Histoire des femmes, vol.4. Paris: Plon, 1991, p.428.
Helen E. Longino – “To See Feelingly: Reason, Passion, and Dialogue
in Feminist Philosophy”, in Donna C. Stanton e A. Stewart (org.)
Feminisms in the academy, Ann Arbor: The University of Michigan
Press,1995, p.21.
Elizabeth Grosz – “Bodies and Knowledges: Feminism and the Crisis of Reason”, in L. Alcoff e E. Potter, op. cit. p.206.
Veja-se a propósito Donna Haraway – “Saberes Localizados: a questão
da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”.
UNICAMP, Cadernos PAGU, no.5, 1995, P.14.
Sandra Harding – “A instabilidade das Categorias Analíticas na
Teoria Feminista”, in Revista de Estudos Feministas, vol.1, no.1, 1993,
Rio de Janeiro CIEC/ECO/UFRJ, p.19.
Elaine Showalter – “A crítica feminista no território selvagem”, in:
Heloísa Buarque de Hollanda (org.) – Tendências e impasses. O Feminismo
como Crítica da Cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p.29.
G. Simmel – “Cultura Feminina”, in Filosofia do amor. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1993; Helen Longino, idem, p.20.
Maria Odila Leite da Silva Dias – “Teoria e método dos estudos
feministas: perspectiva histórica e hermenêutica do cotidiano”, in
Albertina de O. Costa e Cristina Bruschini (orgs.) – Uma questão de
gênero. RJ.: Editora Rosa dos
Margareth Rago – “As mulheres na Historiografia Brasileira”, in
Zélia Lopes (org.) – A história em debate, SP: Editora da UNESP, 1991.
Vejam-se as discussões de Jurandir Freire Costa – “O referente da
identidade homossexual”, in Richard Parker e Regina M. Barbosa (orgs.) –
Sexualidades brasileiras. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
Tânia Navarro Swain – “Feminino/Masculino no Brasil do século XVI:
um estudo historiográfico”,1995, (mimeo); Maria Izilda S. de Mattos e
Fernando A. de Faria – Melodia e sintonia em Lupicínio Rodrigues: O
Feminino, O Masculino e Suas Relações. RJ: Bertrand Brasil, 1996.
*A presente narrativa foi originalmente publicada em: RAGO, Margareth. Epistemologia Feminista, Gênero e História. In: Pedro, Joana; Grossi, Miriam (orgs.)- MASCULINO, FEMININO, PLURAL. Florianópolis: Ed.Mulheres,1998