julho 06, 2015

Não basta o Papa Bergoglio para refundar a esquerda. Artigo de Marco Marzano (IHU)

PICICA: "A esquerda deve recorrer à sua tradicional familiaridade com a cultura e com a técnica do conflito social, deve identificar adversários, mobilizar a oposição social, animar os conflitos. O papa é uma preciosa fonte de inspiração, um ideal "companheiro de estrada" de autoridade, mas não basta.

A opinião é do sociólogo italiano Marco Marzano, professor da Universidade de Bergamo, em artigo publicado no jornal Il Fatto Quotidiano, 05-07-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto."

Não basta o Papa Bergoglio para refundar a esquerda. Artigo de Marco Marzano

A esquerda deve recorrer à sua tradicional familiaridade com a cultura e com a técnica do conflito social, deve identificar adversários, mobilizar a oposição social, animar os conflitos. O papa é uma preciosa fonte de inspiração, um ideal "companheiro de estrada" de autoridade, mas não basta.

A opinião é do sociólogo italiano Marco Marzano, professor da Universidade de Bergamo, em artigo publicado no jornal Il Fatto Quotidiano, 05-07-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Eu não fiz uma contagem precisa, mas, por cima, eu diria que o Papa Francisco foi a pessoa mais citada nos discursos da assembleia romana desse sábado, 4 de julho, em Garbatella [reunindo filiados e ex-membros do Partido Democrático italiano, para debater a construção de um caminho político autônomo]. Portanto, o papa se tornou o novo ideólogo de esquerda? Talvez isso seja um pouco excessivo, mas a verdade é que, a partir da abordagem de Francisco aos temas políticos e sociais, a esquerda pode obter ao menos duas grandes indicações de fundo.

A primeira é o convite à "radicalidade". A encíclica Laudato si' é uma espécie de manifesto contra o pensamento único liberal, um documento que ressalta, sem hesitação, a necessidade não só de corrigir, mas de mudar radicalmente os hábitos, os estilos de vida, os valores de fundo da sociedade consumista. O direito à propriedade privada, para o papa, não é nem absoluto nem intocável, enquanto o decrescimento do mundo rico em benefício do mundo mais pobre é uma necessidade inadiável e urgente.

A radicalidade da mensagem de Francisco deve ser assumida pela esquerda depois do fim do "século social-democrático", depois da exaustão definitiva da grande temporada reformista iniciada na Europa com a reviravolta de Bad Godesberg, nos anos 1950.

Aquele período da história europeia se baseou no compromisso entre um capitalismo que aceitava conter a sua natural ferocidade inigualitária e um socialismo que renunciava à revolução proletária. O pacto foi desfeito há muito tempo. O capitalismo, hoje, não tem mais nenhum medo do socialismo e governa por si só, dando a mínima para os danos sociais que produz ou imaginando que eles não darão origem a movimentos de revolta perigosos para a estabilidade do sistema.

Os socialistas reformistas, por sua vez, estão reduzidos à irrelevância; vítimas de uma afasia mortal, tateiam no escuro, totalmente assimilados à coalizão dominante conservadora e liberal que governa a Europa.

Por isso, é necessária uma virada radical que imagine um futuro pós-capitalista, respeitoso ao ambiente e sóbrio nos consumos. Como defende o papa. E, por isso, também é necessário, sempre no rastro de Francisco, derrotar o pessimismo, evitar voltar o olhar para trás, tornar-se vítimas da nostalgia pelos anos dourados do movimento operário.

Na encíclica, Francisco menciona várias vezes o tema da esperança: de uma saída, de uma mudança de rumo. Nas páginas finais, o apelo a cultivar a confiança na capacidade humana para se livrar da situação atual é expressada em um tom quase poético: "Nem tudo está perdido – escreve Francisco –, porque os seres humanos, capazes de tocar o fundo da degradação, também podem se superar, voltar a escolher o bem e regenerar-se (…). São capazes de olhar para si mesmos com honestidade, externar o próprio pesar e empreender novos caminhos rumo à verdadeira liberdade. Não há sistemas que anulem, por completo, a abertura ao bem, à verdade e à beleza, nem a capacidade de reagir que Deus continua a animar no fundo dos nossos corações. A cada pessoa deste mundo, peço para não esquecer essa sua dignidade que ninguém tem o direito de lhe tirar". Uma mensagem "progressista" de confiança no futuro e de esperança no homem que a esquerda não pode deixar de assumir. Contra toda tentação de desespero apocalíptico.

Portanto, há sintonia entre o papa e a esquerda. Uma sintonia, porém, que não pode se tornar identidade. Porque as diferenças permanecem.

Para citar uma entre as principais, na mensagem do papa, não se faz nenhuma referência àqueles direitos civis e de liberdades que a esquerda certamente não pode ignorar. É verdade que, na economia global da encíclica, trata-se de poucas passagens, quase de incisos. No entanto, essas frases (sobre o aborto, sobre os embriões, sobre a rejeição ratzingeriana do relativismo) existem e marcam uma distância não facilmente preenchível.

Assim como falta no documento papal uma indicação do "como" se poderia construir aquela sociedade alternativa à atual tão necessária. Sobre isso, o papa se limita a invocar uma espécie de "pedagogia da sobriedade", uma educação ao respeito pelo ambiente e à justiça social a ser difundida nas famílias, nas redes informais, na sociedade civil.

Essas práticas são muito boas, mas obviamente não bastam. Por isso, a esquerda deve recorrer também à sua tradicional familiaridade com a cultura e com a técnica do conflito social, deve identificar adversários, mobilizar a oposição social, animar os conflitos.

Em suma, o papa é uma preciosa fonte de inspiração, um ideal "companheiro de estrada" de autoridade, mas não basta. Assim como não basta a solidariedade ao povo grego, ao Syriza e ao espectro de uma "heroica derrota" tantas vezes evocado na assembleia desse sábado.

Fonte: IHU

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