PICICA: "O
gesto de Varoufakis sobre Tsipras é mais simples, embora potente: fora
do governo, depois de sair de cena em uma condição vitoriosa, ele joga
luz e peso sobre a decisão pragmática de seu premiê. Varoufakis sai
fortalecido e Tsipras resta sob pressão do que ele está disposto a fazer
nessas negociações -- e já não é a primeira vez que Tsipras se mostra pronto a vacilar. Existe aí uma disputa sobre métodos e formas para se chegar ao mesmo objetivo.
Varoufakis,
como um cavalheiro, abre espaço em prol do coletivo, mas também obriga
que essa mesma coletividade assuma seus compromissos. Um gesto de
(auto)entrega sacrificial semelhante ao da proposição do plebiscito. E
de fato, até agora, o Syriza ganha de 7x1 no desmonte dos mitos
construídos pelos oligarcas europeus."
Grécia: A Vitória do Não, a Renúncia de Varoufakis e a Falácia Europeia
Manifestantes comemoram a vitória na Praça Syntagma (Via Principa Marsupia) |
Durante todo dia de ontem, o mundo manteve os olhos fixos no plebiscito grego. Os gregos diriam Oxi (Não) ou Nai
(Sim) para a "proposta" da Europa -- na verdade, uma ordem transformada
em proposta quando os líderes gregos, em um momento de inspiração,
resolveram, fazer desta objeto de uma consulta popular. E o Não ganhou por larga margem, mais de 61%, em um pleito cuja participação foi semelhante à das eleições parlamentares do início do ano.
Pois
bem, mal foram abertas as urnas e a suposta vitória do Sim, apontada
pelos principais institutos de pesquisa gregos ao longo da semana, se
desmanchou no ar; antes, os mesmos institutos já falavam, em "vitória
apertada" do Não nas suas pesquisas de boca de urna, algo entre 54% e
52%, coisa que não se confirmou. Depois de uma semana de blitz
midiática, terror bancário e pesquisas no mínimo falhas, os gregos deram
um retumbante não contra a opressão Europeia.
A
vitória, apurada às 2:51 desta segunda-feira em Atenas (21:51 de
domingo no horário de Brasília), está muito além dos 36% de votos que o
Syriza obteve nas eleições de Janeiro ou dos pouco mais de 40% que sua
coalizão recebeu. Mesmo somados os votos obtidos em Janeiro por todos os
partidos que apoiaram o Não, eles não chegam a 50%, o que determina que
houve um acréscimo substancial de apoio popular à causa antiausteridade
-- tanto que Antonis Samaras, ex-premiê e líder da oposição, renunciou
ao seu posto.
Ocorre
que pela manhã de hoje em Atenas, madrugada no Brasil, surge uma
novidade quando os partidário do Não mal haviam se retirado das
comemorações na Praça Syntagma, um fato surpreendente aconteceu: Yanis Varoufakis, o superministro da economia do Syriza, renunciou.
Varoufakis, literalmente um grego entre romanos, perturbava os euroburocratas, seja por sua formação mais próxima da heresia anglo-americana de esquerda (e seus think tanks)
ou por sua figura protagonista na mídia. Há pouco mais de uma semana,
ele foi expulso pelos seus pares da reunião dos ministros da economia do
bloco, quando as normas costumeiras determinam que deve haver
unanimidade sobre certas decisões e presença de todos os pares, gerando
assim parte do imbróglio que motivou a convocação de consulta popular.
Trata-se,
pois, de uma renúncia bastante estranha e inesperada, uma vez que
segundo o agora ex-ministro -- que chegou a dar coletiva de imprensa
depois da vitória do Não -- sua decisão se deu porque o premiê grego,
Alex Tsipras, aceitou que ele não estaria presente na reabertura das
negociações, uma vez que havia indisposição com seu nome.
Na
prática, o "gesto de boa vontade" para com a Europa de Tsipras parece
ilógico: depois de ter vencido o plebiscito, ele aceitou um dos vetos
europeus que causaram a própria convocação da consulta.
Será
que o gesto de Tsipras dará certo? Ou melhor, a forma como o Syriza
significa a importância dessa atual União Europeia faz sentido? Será que
a negociação que Tsipras imagina irá mesmo ocorrer? Será que diante da
vitória de ontem, não sustentar seu corpo ministerial, sobretudo seu
principal ministro, faz algum sentido?
O
ponto é que o Syriza supõe que venceu o plebiscito de ontem -- com uma
votação muito acima da que o levou ao poder em Janeiro -- com uma
promessa de reforma da Europa, promessa da qual não pode se
desvencilhar, o que é mais uma autoilusão do que uma ilusão que o
eleitorado nutre a respeito dele: as pessoas querem emprego, dinheiro
para se alimentar etc.
Se
existe alguma preferência pelo Euro e pela ideia de europeísmo, isto se
dá pragmaticamente pela forma como isso poderia melhorar a vida dos
gregos. Se hoje a Grécia abrisse mão do Euro e as coisas melhorassem,
obviamente, ninguém iria se opor a isso.
Entre a Europa ideal e o que é a Europa hoje há, pois, um profundo abismo .E
a crise econômica, que levou os governos a gastarem o que não tinham
para resgatarem bancos sem garantias, apenas revelou, e não transformou,
o rosto verdadeiro do comando europeu: tecnocrático, desumano e
implacável.
Se
com o tempo, os Estados nação europeus foram democratizados à força -- e
muitas instituições multitudinárias e se cristalizaram no funcionamento
da máquina --, quando o "sonho europeu" foi edificado, com sua bela
bandeira e seu lindo hino, tomando aos poucos atribuições nacionais, as
novas instituições europeias já nasceram imunizadas das reivindicação
plebeia.
Se
para um Rancière, os nossos sistemas são um misto de democracia com
oligarquia, a estrutura de Estado europeia, ao contrário do que as lutas
determinaram nos planos nacionais, já nascia com sobrepeso para as
castas burocráticas, financeiras e afins.
O
processo desencadeado na Europa ruma, pois, não para um pós-Estado, mas
para uma forma de Estado plurinacional, coisa que a Espanha, Bélgica ou
Reino Unido já são, mas certamente dando mais voz às suas sociedades
civis e às suas minorias nacionais.
Não
há novidade alguma nesse "projeto europeu" -- e menos ainda quando os
tecnocratas continentais se aliam com banqueiros para se
retroalimentarem, fazendo com que o futuro Estado europeu se pareça mais
com uma União Soviética, só que sem qualquer conteúdo revolucionário.
O
gesto de Varoufakis sobre Tsipras é mais simples, embora potente: fora
do governo, depois de sair de cena em uma condição vitoriosa, ele joga
luz e peso sobre a decisão pragmática de seu premiê. Varoufakis sai
fortalecido e Tsipras resta sob pressão do que ele está disposto a fazer
nessas negociações -- e já não é a primeira vez que Tsipras se mostra pronto a vacilar. Existe aí uma disputa sobre métodos e formas para se chegar ao mesmo objetivo.
Varoufakis,
como um cavalheiro, abre espaço em prol do coletivo, mas também obriga
que essa mesma coletividade assuma seus compromissos. Um gesto de
(auto)entrega sacrificial semelhante ao da proposição do plebiscito. E
de fato, até agora, o Syriza ganha de 7x1 no desmonte dos mitos
construídos pelos oligarcas europeus.
De
todo modo, entre a posição de um e outro, existe a armadilha entre a
Europa que é, a que deveria ser e a que é possível. Todos os gestos
éticos do governo grego são golpes duros contra uma estrutura de poder
que, contudo, ciente da derrota nesse âmbito, aposta na estratégia do
medo quase que exclusivamente para atender propósitos transcendentais --
ou menos até do que isso, interesses pequenos que vão desde um cargo
até o pequeno poder.
Como já alertou o Nobel de Economia Joseph Stiglitz, há vida se houve ruptura com o Euro, fato que é muito mais um tabu para o próprio Syriza do que para a população grega ou para a ciência econômica.
Se
o Syriza se mantiver forte, usar com sabedoria a vitória de ontem e
souber que a Europa unificada é um meio, e não o fim, das lutas
democráticas, ele poderá vencer ou, no seu sacrifício, reverter um
quadro que parecia certo -- mas para isso precisará adotar planos de
contingência certamente muito mais duros do que os atuais. Os próximos
dias serão decisivos.
Fonte: O DESCURVO
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