PICICA: "“Vivemos um problema ético
no Brasil, porque o não reconhecimento dos direitos indígenas e dos
direitos sociais, em geral, é uma questão que só pode ser discutida e
colocada no âmbito da ética”, afirma a antropóloga."
Violência contra os indígenas é um problema ético. Entrevista especial com Lucia Helena Rangel
“Vivemos um problema ético
no Brasil, porque o não reconhecimento dos direitos indígenas e dos
direitos sociais, em geral, é uma questão que só pode ser discutida e
colocada no âmbito da ética”, afirma a antropóloga.
Foto: Parque da Ciência |
Além dos casos tradicionalmente conhecidos de invasão de terras indígenas e de agressões contra as comunidades, Lucia Helena chama atenção para os índices de mortalidade na infância.
Uma relação que explica essa situação é a falta de terras e a
introdução de uma alimentação à base de alimentos da cesta básica.
“Aquelas comunidades que não têm terra para plantar, e que têm como
fonte alimentar a cesta básica, sofrem de subnutrição, porque a cesta
básica é composta, sobretudo, de carboidratos e açúcares; tem um pouco
de feijão, uma lata de olho, leite em pó, mas não tem proteínas e
vitaminas. Contudo, temos de considerar que o padrão alimentar indígena é, sobretudo, advindo das roças, e tem como base o milho, a mandioca, o amendoim. Nesse sentido, quando a comunidade não tem terra para plantar,
a alimentação é drasticamente reduzida e as consequências maiores se
dão nas crianças, porque elas não suportam uma alimentação tão
desbalanceada”, esclarece.
Entre os Yanomami e os Xavantes, a desnutrição e os índices de mortalidade na infância
são os mais altos. “A população Xavante é muito grande, e eles estão
num processo de retomada de algumas aldeias antigas que ficaram dentro
de aldeias apropriadas por grilagem de terras. (...) Na terra dos Yanomami,
ao contrário, não há problema de terras, porque eles têm uma área
demarcada, têm liberdade de plantar o que quiserem, de caçar para manter
o seu padrão reprodutivo. Mas, nos últimos três anos, como não há
fiscalização, houve novamente a invasão de garimpeiros ilegais. Quando
ocorre a invasão de garimpeiros, as doenças proliferam. Então, quanto
mais doenças, mais as crianças sofrem, porque elas são o elemento de
maior vulnerabilidade em situações de epidemias e alastramento de
doenças”, exemplifica.
Na avaliação da pesquisadora, a situação dos indígenas no país
demonstra que o Brasil enfrenta um problema ético à medida que alguns
setores sociais não aceitam os direitos indígenas garantidos na Constituição.
“Para mudar a mentalidade, nós precisamos de ações que, aos poucos, vão
conquistando uma coisa, conquistando outra, e quem sabe um dia
construiremos uma boa ética da diversidade”, conclui.
Lucia Helena Rangel é doutora em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP com a tese Os Jamamadi e as armadilhas do tempo histórico.
É professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências
Sociais e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da
PUC-SP. Também é assessora do Conselho Indigenista Missionário – Cimi
(Regional Amazônia Ocidental) e do Cimi Nacional.
Confira a entrevista.
Foto: TV Brasil / EBC TV |
Lucia Helena Rangel – Primeiro temos de esclarecer um ponto importante: o número de casos de violações e violência contra indígenas
aumenta, diminui, aumenta, diminui, mas o padrão da violência contra os
indígenas não se modifica. Então, buscar as causas desta situação é
algo bastante delicado, porque a relação de causa e efeito não é tão
nítida, na medida em que há uma série de fatores que contribuem para
essa situação. Ao longo das décadas em que o Cimi registra os casos de violência, percebemos um padrão que se repete, tanto que o Relatório,
no atual modelo, segue um mesmo padrão desde os anos 2000, e desde 2003
temos sistematizados os dados da mesma maneira, para poder compará-los.
A partir desses relatórios, podemos
perceber que a violência nem diminui nem aumenta, mas há um maior número
de ocorrências. Então, em determinados momentos e em algumas situações,
sejam elas regionais, locais ou até nacionais, podemos fazer uma
relação. Por exemplo, as violências contra o patrimônio indígena, o que inclui a retirada de recursos naturais do patrimônio indígena, sobretudo a madeira, a pesca e o garimpo ilegal.
Essa modalidade de violência contra o patrimônio tem uma relação com a
aprovação das mudanças no Código Florestal. Dá para estabelecer essa
relação, porque desde que começou a discussão da revisão do Código, a
retirada de madeira aumentou assustadoramente no Pará, em Mato Grosso e
em diversos locais da região Amazônica.
O Código Florestal foi
aprovado com base no perdão do fato consumado. Então, houve um
recrudescimento da retirada de madeira para criar um fato consumado no
passado; o artifício é esse. Nesse sentido, o Código Florestal abriu a porteira do desmatamento. Não estou querendo dizer que a causa do desmatamento é somente essa, porque tem um conjunto de outros fatores.
Do mesmo modo, as grandes obras
também afetam e atingem diretamente as áreas indígenas. Essas são obras
controladas pelo governo federal, executadas por empresas privadas, mas
é o aparato estatal que sustenta essas ações. Em Belo Monte, por exemplo, a legitimação dessa obra é dada pelo próprio Estado.
IHU On-Line - A senhora chama
atenção para a mortalidade na infância entre os indígenas. Quais são as
causas e como esse problema tem sido tratado pelos órgãos responsáveis?
Lucia Helena Rangel – Registramos um aumento muito grande de mortalidade na infância, que corresponde à mortalidade de 0 a 5 anos. A Organização Mundial da Saúde – OMS
caracteriza mortalidade infantil como sendo entre 0 e 12 meses. Nós
estamos chamando de mortalidade na infância porque registramos muitos
casos de mortes de crianças com dois, três anos. Fizemos isso para
sistematizar os dados de maneira mais clara, porque o bebê que mama está
relativamente bem protegido, mas as crianças começam a ficar doentes e a
ter desnutrição quando passam a comer comida sólida.
Um fator que também não está muito claro, mas para o qual há uma correlação possível de ser feita, é que daquelas comunidades que não têm terra para plantar,
e que têm como fonte alimentar a cesta básica, sofrem de subnutrição,
porque a cesta básica é composta, sobretudo, de carboidratos e açúcares;
tem um pouco de feijão, uma lata de olho, leite em pó, mas não tem
proteínas e vitaminas. Contudo, temos de considerar que o padrão
alimentar indígena é, sobretudo, advindo das roças, e tem como base o
milho, a mandioca, o amendoim. Nesse sentido, quando a comunidade não
tem terra para plantar, a alimentação é drasticamente reduzida e as
consequências maiores se dão nas crianças, porque elas não suportam uma alimentação tão desbalanceada.
A cesta básica não prevê uma alimentação correta para as crianças no
sentido de prever que elas precisam comer vitaminas, proteínas, etc.
No ano passado registramos duas situações em que a mortalidade na infância foi muito alta: uma foi entre os Yanomami e outra foi entre os Xavantes.
No caso dos Xavantes, já faz tempo que tem ocorrido esse problema,
porque eles estão cerceados, suas terras foram reduzidas. A população
Xavante é muito grande, e eles estão num processo de retomada de algumas
aldeias antigas que ficaram dentro de aldeias apropriadas por grilagem de terras.
O fato de as crianças estarem mais vulneráveis e mal alimentadas faz
com que elas fiquem mais doentes e isso, consequentemente, gera um
agravamento das doenças.
Na terra dos Yanomami,
ao contrário, não há problema de terras, porque eles têm uma área
demarcada, têm liberdade de plantar o que quiserem, de caçar para manter
o seu padrão reprodutivo. Mas, nos últimos três anos, como não há
fiscalização, houve novamente a invasão de garimpeiros ilegais.
Quando ocorre a invasão de garimpeiros, as doenças proliferam. Então,
quanto mais doenças, mais as crianças sofrem, porque elas são o elemento
de maior vulnerabilidade em situações de epidemias e alastramento de
doenças. Nesse caso, podemos fazer uma relação séria entre essas
situações.
"No ano passado registramos duas situações em que a mortalidade na infância foi muito alta"
"No ano passado registramos duas situações em que a mortalidade na infância foi muito alta" |
IHU On-Line - Como a senhora
interpreta o dado de que 135 indígenas cometeram suicídio em 2014? É
possível identificar as razões que estão por trás desses suicídios?
Lucia Helena Rangel – Os casos de suicídios
atingem, sobretudo, os jovens, que se autoinfligem essa violência, que é
uma escolha complicada. É claro que o suicídio é parte do
livre-arbítrio, que é algo intrínseco ao ser humano. Obviamente, não
vamos dizer que o suicídio é algo excepcional; ele sempre existiu desde a
antiguidade, mas quando você vê que o número de suicídio entre jovens
está muito alto, trata-se de algo preocupante. O caso mais agudo e
emblemático foi o de Mato Grosso do Sul, com o povo Kaiowá-Guarani. Dos 135 casos de suicídios registrados no ano passado, só em Mato Grosso do Sul foram registrados 48. No Alto Solimões foram registrados 37 casos; é um número alto. O que está acontecendo?
Já registramos casos no Alto Rio Negro, e no Alto Solimões não é a primeira vez que ocorrem esses registros. Mas, se em Mato Grosso do Sul temos uma situação de violência endêmica — que o Cimi
denuncia há muitas décadas — e já identificamos uma situação de
genocídio, porque o índice de mortes é muito alto, podemos fazer essa
relação entre o cenário da violência com todos os fatores implicados na
sociedade Kaiowá-Guarani
em função da pressão social que eles vivem. Neste caso, podemos
entender que os jovens parecem estar preferindo se livrar dessa opressão
de outra maneira. Alguns vão embora, mas outros acabam cometendo
suicídio, porque acabam ficando sem perspectiva.
No Alto Rio Negro os indígenas têm terras, poderiam estar produzindo. A população Ticuna,
que é o povo mais numeroso dessa região, é enorme, tem mais de 30 mil
pessoas. Mas ali tem desmatamento, tráfico de drogas e uma mistura entre
as aldeias e a cidade. Algumas aldeias se transformaram em cidades, com
muitas pessoas aglomeradas. Nesse contexto de fronteira, com uma série
de fatores fortes do ponto de vista dos valores sociais,
existe a emergência de um racismo muito grande: há muitas religiões,
cultos religiosos, influências das mais variadas, como o tráfico de
drogas, e aí quando se vê o que está acontecendo com os jovens, é
possível fazer a relação com o contexto, por conta do racismo.
Os jovens são muito pressionados por um
moralismo esdrúxulo que se instala nessas realidades que não são só
híbridas, mas são difíceis por causa desses fatores que envolvem o
tráfico, o dinheiro. Há um contexto de violência nas mais variadas
regiões do país, mas em cada local há um tipo de consequência. No
entanto, quando vamos ver, as consequências são semelhantes, como
suicídio, assassinato, mortalidade na infância. Ao analisar essas
situações, constatamos problemas que já deveriam ter sido solucionados,
mas ainda não foram.
IHU On-Line - Quantas comunidades vivem em isolamento? A violação de direitos também já atinge esses povos?
Lucia Helena Rangel – Atualmente achamos que mais de 90 comunidades estariam nessa categoria de povos isolados ou de pouco contato.
Nós não podemos dizer que são 90 povos porque, talvez, muito
provavelmente, algumas comunidades pertençam a um mesmo povo. Essa
situação é presente em nossa realidade latino-americana, sobretudo na Amazônia,
e os indícios de que existem comunidades isoladas são encontrados
constantemente: ou porque houve uma fumaça ou porque foi encontrada uma
flecha ou porque um roçado foi roubado. Esses são indícios concretos,
não estamos falando de suposições, e talvez pudéssemos dobrar esse
número.
O que parece é que essas são comunidades, são grupos que se isolam no sentido de se protegerem dos ataques
que sofreram. Quando houve a retirada de produtos da floresta, como
seringa, madeira, quando pessoas se instalaram nas fazendas e mataram os
que moravam nelas, como aconteceu em Rondônia e em Mato Grosso, algumas
comunidades se isolaram. Os capangas das fazendas colocavam açúcar no
caminho dos índios e depois misturavam esse açúcar com arsênico e
matavam todo mundo. Inclusive houve casos em que atacaram as aldeias,
colocando fogo nas casas. Nessas situações, provavelmente, nem todos
morreram e os que conseguiram fugir se agruparam e foram se embrenhando
cada vez mais dentro da mata, se distanciando desses ataques.
Parece, ao que tudo indica, que a maior
parte dessa comunidade esteja se protegendo desses ataques e por isso é
difícil encontrá-los, porque o afastamento é deliberado. Dessa forma, o
contato fica difícil, porque depende da boa vontade deles de aparecerem e
de não desconfiarem. Quando a Funai manda uma frente de atração, ou mesmo o próprio pessoal do Cimi vai para a Amazônia e tenta estabelecer contato, é bem difícil, porque até eles perderem a desconfiança, demora.
Os povos mais vulneráveis talvez sejam esses. O que acontece no Vale do Javari,
no Amazonas, por exemplo, é uma situação também muito aguda. Ali tem
uma terra enorme demarcada, é área de proteção, a qual a Funai chama de
proteção etnoambiental, onde há um posto de atendimento, com antena,
rádio, com alguns equipamentos de saúde, há equipes de saúde
trabalhando, mas nem todas as aldeias da região foram contatadas, e
ninguém nem sabe, de fato, quantas aldeias existem ali. Portanto,
trata-se de uma região em que as comunidades vivem de forma bastante
vulnerável. Ali no Vale do Javari começou a ter uma situação
extremamente grave de doenças, como hepatite e malária, mas a hepatite é
endêmica, é uma coisa terrível, e as crianças sofreram demais com essas
viroses, gripes, com agravamento dos sintomas e evolução das doenças. E
essa situação contribui para que os índices de mortalidade sejam muito
altos.
"Os três Poderes – o Executivo, o Legislativo e o Judiciário – são contra os direitos indígenas"
"Os três Poderes – o Executivo, o Legislativo e o Judiciário – são contra os direitos indígenas" |
IHU On-Line - O que os dados do
Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2014
revelam sobre a política indigenista no país?
Lucia Helena Rangel – Sobre isso, podemos dizer o seguinte: os três Poderes — o Executivo, o Legislativo e o Judiciário — são contra os direitos indígenas.
Então, há juízes que entendem do problema, o Ministério Público acode,
mas a maior parte dos juízes dá ganho de causa para fazendeiros,
impedindo o registro de uma terra que foi homologada pelo Presidente da
República. No Congresso Nacional, deputados e senadores tentam modificar os direitos constitucionais
e o Executivo federal, estadual e municipal também se coloca contra a
população indígena. Há casos de prefeituras que recebem dinheiro porque
têm escola indígena no município, mas não fazem o repasse da verba, o atendimento de saúde é precário e ainda há muita invasão de terras indígenas.
Neste ano está sendo preparada a Conferência de Política Indigenista,
e as lideranças indígenas de todos os estados estão envolvidas nas
primeiras discussões que vão culminar, em novembro, em um Fórum Nacional
para construir uma política indigenista mais favorável aos indígenas.
Trata-se de uma mobilização muito necessária, porque as ações contra os
indígenas são muito fortes no país inteiro.
IHU On-Line - O que seria uma alternativa para resolver as questões indígenas no país?
Lucia Helena Rangel –
Os problemas das comunidades indígenas se arrastam há séculos e, de 1960
para cá, os índios só perderam. Quando surge alguma proposta de
demarcação de terras, como foi a do Parque dos Yanomami, o Parque do Xingu,
as pessoas perguntam por que tem de se dar tanta terra para poucos
índios e afirmam que eles não sabem trabalhar. Mas não é nada disso,
pelo contrário, essa terra é um resto do que sobrou.
Vivemos um problema ético no Brasil, porque o não reconhecimento dos direitos indígenas
e dos direitos sociais, em geral, é uma questão que só pode ser
discutida e colocada no âmbito da ética. A sociedade, digamos assim, e
suas elites, não admitem esses direitos. Como faz para mudar uma
mentalidade? Irá decretar? O decreto está feito, a Constituinte abrigou
esses direitos e os colocou na Constituição, mas não há
meio de as elites concordarem com isso. Elas não admitem esses
direitos, toda hora querem mudá-los. Para mudar a mentalidade nós
precisamos de ações que, aos poucos, vão conquistando uma coisa,
conquistando outra e quem sabe um dia construiremos uma boa ética da
diversidade.
Por Patrícia Fachin
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Fonte: IHU
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