julho 01, 2015

A crueldade bem de frente e os Milagres do Povo. Por Patrick Mariano (JUSTIFICANDO)

PICICA: "Deputado do Partido Comunista pelo estado de São Paulo, Jorge Amado foi autor da Emenda 3.218 que inseriu no texto da Constituição de 1946 o §7° do art. 141 que declarava e reconhecia a liberdade de crença:
  • 7º – É inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariem a ordem pública ou os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurídica na forma da lei civil.
Foi preciso que um comunista ateu e que via milagres do povo como Jorge Amado tivesse não só a sensibilidade e altruísmo em se preocupar e proteger a consciência e a liberdade de crença para todos, como a capacidade em recolher apoio no Congresso Nacional para fazer inserir no texto constitucional a necessária emenda. Bela ironia histórica.

A articulação de Jorge Amado pelos corredores do Parlamento foi notável[3]. Sequer contava com a chancela dos seus colegas do PCB que viam na religião o “ópio do povo”. O autor de Tieta teve que habilmente negociar com opositores do seu campo ideológico.

Em suas memórias, recorda ter procurado primeiro Luiz Viana Filho, “baiano e escritor, autor de livro sobre O Negro no Brasil, deputado pela UDN”, em seguida o sociólogo pernambucano Gilberto Freire, a quem teria seduzido com o argumento de que “os xangôs do Recife vão poder dançar em paz”, para em seguida conquistar assinaturas nas bancadas da UDN e do PSD – Otávio Mangabeira, Milton Campos, Cirilo Júnior, Prado Kelly.

A vitoriosa ação do congressista e gênio da literatura brasileira mostra a verve política do escritor e sua capacidade de agregar e pautar temas relevantes para a sociedade que assistia, à época, episódios tristes de intolerância religiosa, principalmente contra as de matriz africana.

Foi o negro que viu a crueldade bem de frente e ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente.

Corria o ano de 1946.

Por Patrick Mariano


// ContraCorrentes
Caetano Veloso se preparava para dar bis em show na concha acústica de Salvador quando soube da morte de Jorge Amado. Era o dia do seu aniversário e visivelmente comovido, retorna ao palco para brindar a vida do grande escritor Baiano, um dos grandes da língua portuguesa[1].

A música escolhida para homenagear o companheiro de Zélia e amigo de Caribé, foi Milagres do Povo. A letra é um presente literário, valendo sempre relembrá-la:

“E o povo negro entendeu que o grande vencedor se ergue além da dor/Tudo chegou sobrevivente num navio/quem descobriu o Brasil?/Foi o negro que viu a crueldade bem de frente e ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente”.

A canção nasceu de uma pergunta de Caetano em entrevista que Jorge Amado concedeu ao O Pasquim, nos anos 70. Assim diz Caetano[2]: “Lembro que Amado respondeu que gostaria de ser místico como Dorival Caymmi, mas era materialista e não tinha crença no candomblé. E completou: “Mas que já vi o candomblé fazer milagres, já vi, e são milagres do povo”. Foi daí que nasceu a canção. 

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Deputado do Partido Comunista pelo estado de São Paulo, Jorge Amado foi autor da Emenda 3.218 que inseriu no texto da Constituição de 1946 o §7° do art. 141 que declarava e reconhecia a liberdade de crença:

  • 7º – É inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariem a ordem pública ou os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurídica na forma da lei civil.
Foi preciso que um comunista ateu e que via milagres do povo como Jorge Amado tivesse não só a sensibilidade e altruísmo em se preocupar e proteger a consciência e a liberdade de crença para todos, como a capacidade em recolher apoio no Congresso Nacional para fazer inserir no texto constitucional a necessária emenda. Bela ironia histórica.

A articulação de Jorge Amado pelos corredores do Parlamento foi notável[3]. Sequer contava com a chancela dos seus colegas do PCB que viam na religião o “ópio do povo”. O autor de Tieta teve que habilmente negociar com opositores do seu campo ideológico.

Em suas memórias, recorda ter procurado primeiro Luiz Viana Filho, “baiano e escritor, autor de livro sobre O Negro no Brasil, deputado pela UDN”, em seguida o sociólogo pernambucano Gilberto Freire, a quem teria seduzido com o argumento de que “os xangôs do Recife vão poder dançar em paz”, para em seguida conquistar assinaturas nas bancadas da UDN e do PSD – Otávio Mangabeira, Milton Campos, Cirilo Júnior, Prado Kelly.

A vitoriosa ação do congressista e gênio da literatura brasileira mostra a verve política do escritor e sua capacidade de agregar e pautar temas relevantes para a sociedade que assistia, à época, episódios tristes de intolerância religiosa, principalmente contra as de matriz africana.

Foi o negro que viu a crueldade bem de frente e ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente.

Corria o ano de 1946. 

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No dia 14 de junho de 2015, a menina Kailane Campos, de apenas 11 anos, saia de uma festa religiosa de Candomblé na cidade do Rio de Janeiro quando uma pedra atingiu sua cabeça. O sangue, que escorreu pelos seus cabelos, misturado a suas lágrimas é fruto da irracionalidade e intolerância, algo em voga no atual momento histórico pelo qual passa o Brasil. 

Alguns meses atrás, usar uma camiseta vermelha se tornava motivo para agressões físicas. Agora, sair de branco às ruas significa risco de morte, ainda que se trate de uma criança de 11 anos. Inexiste limite para a estupidez humana.

No candomblé, branco e vermelho são as cores de Xangô, o rei da Justiça e da guerra. Alguns mitos explicam a escolha dessas cores. Uma delas é que a guarda de Xangô prendeu Oxalá, o mais velho dos Orixás e rei da paz, injustamente por 7 anos. 

Quando Xangô descobre que Oxalá estava injustamente em uma de suas prisões, reconhece o erro e providencia banho e roupas brancas para seu ex-prisioneiro. Para tentar reestabelecer a justiça no reino, determina que o dia em que teve o relampejo ético seria o de semear a paz. Todos no reino deveriam usar branco neste, a começar por si próprio. Nesse momento é que simbolicamente teria se unido a força da guerra (vermelho de Xangô) com o branco da paz (ética e serenidade de Oxalá).

A tradição da lavagem das escadarias do Bonfim, em Salvador, representaria esse momento da lavagem das impurezas das injustiças e estaria ligada ao mito de Xangô e Oxalá. 

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De 1946, para os dias atuais, muita coisa aconteceu no Brasil, mas o que impressiona é que a realidade constatada por Jorge Amado não se alterou muito desde então. 

O lamentável e triste episódio de agressão à menina Kailane revela um Brasil ainda intolerante com a religião de matrizes africanas. É o que Marcio Sotelo Felippe, em brilhante texto[4], nos fala dos tempos atuais, no sentido de que estaríamos em algo semelhante a uma Nau dos Insensatos. Com acerto, Sotelo pontua que a ausência de juízos racionais e o fascismo estão sempre associados.

De fato, há tempos é possível constatar os sinais de juízos irracionais e espectros fascistas rondando a sociedade brasileira. Em tempos de redes sociais, os fatos pululam em nossa “linha do tempo” e por serem incessantes e repetitivos não somos capazes de compreender o todo da realidade.

Essa semana, os programas mundo-cão de Datena e Marcelo Rezende exibiram, ao vivo e no horário do fim do dia, a execução de um ser humano. A locução por parte dos dois era entusiasta e macabra.

Qual a diferença entre a morbidez desses programas televisivos em rede aberta e as execuções transmitidas pelo estado islâmico, com o uso de gaiolas mergulhadas com seres humanos em piscinas e degolas com facas e espadas? A única diferença é que o primeiro caso se trata de uma concessão pública. 

São fatos que nos aturdem, chocam e dão a exata medida de nosso sombrio tempo atual. Tempo em que crianças são apedrejadas por usarem o branco e que pessoas são agredidas por usarem camisas vermelhas. 

Voltando à poesia e beleza de Caetano e Jorge Amado, oxalá seja ainda possível produzir milagres, após miramos a crueldade várias vezes e bem de frente.


Patrick Mariano é doutorando em Direito, Justiça e Cidadania no século XXI na Universidade de Coimbra, Portugal. Mestre em direito, estado e Constituição pela Universidade de Brasília e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares-RENAP.
 

Junto a Marcelo Semer, Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe e Giane Ambrósio Álvares, assina a coluna ContraCorrentes, publicada todo sábado no Justificando
 



[1] https://www.youtube.com/watch?v=4doFbRZgnM4

[2] http://noticias.bol.uol.com.br/entretenimento/2008/11/28/ilustrada-50-anos-jorge-amado-morre-em-salvador.jhtm

[3] http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI161328,41046-Jorge+Amado+100+anos

[4] http://justificando.com/2015/06/20/a-nau-dos-insensatos/
 
Fonte: Justificando

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