PICICA: "Os serviços de
Saúde Mental primam pela organização territorial, pois é a partir do território
que se estabelecem limites geográficos e de cobertura populacional que ficam
sob a responsabilidade clínica e sanitária das equipes e dos equipamentos
especializados. Mas a noção geográfica de território, como espaço físico com
limites precisos, é insuficiente para dar conta das relações sociais e as
dinâmicas de poder que as pessoas e os grupos estabelecem entre si. É preciso
introduzir aí a dimensão da subjetividade, e a concepção guattariana de
territórios existenciais ‒ que podem ser individuais ou de grupo ‒, que representam
espaços e processos de circulação das subjetividades das pessoas, em permanente
estado de configuração, desconfiguração e reconfiguração, ou seja, de
possibilidades de agenciamento de subjetividade. Tanto dos usuários dos
serviços de Saúde mental, quanto dos trabalhadores de Saúde mental, já que sua
principal ferramenta de trabalho é a relação transferencial. As ações de Saúde
Mental, portanto, devem ser ações complexas, planejadas para além do território
geográfico, focando mais no espaço de convívio dos sujeitos, no estímulo à
criação de novos modos de grupalidade, e nas relações sociais e afetivas ali
desencadeadas."
Saúde Mental, Territórios e Subjetividade
[Em defesa da instituição especializada em subjetivação no âmbito do SUS]
Os serviços de
Saúde Mental primam pela organização territorial, pois é a partir do território
que se estabelecem limites geográficos e de cobertura populacional que ficam
sob a responsabilidade clínica e sanitária das equipes e dos equipamentos
especializados. Mas a noção geográfica de território, como espaço físico com
limites precisos, é insuficiente para dar conta das relações sociais e as
dinâmicas de poder que as pessoas e os grupos estabelecem entre si. É preciso
introduzir aí a dimensão da subjetividade, e a concepção guattariana de
territórios existenciais ‒ que podem ser individuais ou de grupo ‒, que representam
espaços e processos de circulação das subjetividades das pessoas, em permanente
estado de configuração, desconfiguração e reconfiguração, ou seja, de
possibilidades de agenciamento de subjetividade. Tanto dos usuários dos
serviços de Saúde mental, quanto dos trabalhadores de Saúde mental, já que sua
principal ferramenta de trabalho é a relação transferencial. As ações de Saúde
Mental, portanto, devem ser ações complexas, planejadas para além do território
geográfico, focando mais no espaço de convívio dos sujeitos, no estímulo à
criação de novos modos de grupalidade, e nas relações sociais e afetivas ali
desencadeadas.
Nas duas últimas
décadas, a política de Saúde Mental no Brasil tem sido orientada pela luta
antimanicomial. O risco de “institucionalização da vida” é apontado como um dos
problemas a ser enfrentado na discussão sobre as formas de lidar com a loucura em nossa sociedade, evidenciando a
necessidade de tratamentos que prezem pelo cuidado, pela valorização da ação
dos portadores de sofrimento mental no mundo, e seu empoderamento, em
detrimento dos modos de controle, imobilização e exclusão social
tradicionalmente reservados aos chamados ''doentes mentais''. Nesse sentido, a
noção de “território” joga um papel importante, mas tende a se restringir a seu
aspecto puramente geográfico, quando se aposta na ideia de que o sujeito em
tratamento na saúde Mental deve ter o mínimo de tutela necessário para sair da
crise ‒ e aí o serviços especializado disporia
de estratégias
pontuais disponibilizadas prontamente para esse momento clínico ‒,
devendo ser logo direcionado para os equipamentos públicos de Saúde menos
complexos. A instituição especializada é vista, nessa perspectiva, como
potencialmente danosa ‒ manicomializante ‒,
passível de reproduzir
as rotinas uniformizantes, as tarefas únicas e estereotipadas para todos os
usuários, as respostas mínimas do ponto de vista material, afetivo e
intelectual características do modelo manicomial.
A recente
experiência do CAPUT demonstra-nos exatamente o contrário disso. Diante de uma conjuntura que se abre com o
avanço político das forças conservadoras da Psiquiatria, dos projetos de
privatização do SUS, com seu ostensivo financiamento público das comunidades
terapêuticas, pautadas em um viés religioso, em detrimento do investimento na
Rede de Atenção Psicossocial, percebe-se uma evidente dificuldade do Movimento
Nacional de Luta Antimanicomial de responder à atual política de drogas do
Governo Dilma. Ataca-se um projeto ético e inovador como o CAPUT ‒ que encerrará
suas atividades por suspensão do convênio com o SUS que o mantém há três anos ‒, totalmente
alinhado aos princípios da Reforma Psiquiátrica, sob a alegação de que se trata
de uma comunidade terapêutica, “privatista, segregadora e higienista” ou uma
clínica particular que ao ser financiada com recursos públicos “enfraquece a
construção do SUS público, se distancia e desrespeita a rede de Saúde Mental do
município”. A base do argumento de desqualificação do CAPUT feito pelos
militantes da Luta Antimanicomial está, além de um injusto diagnóstico de
desrespeito ao princípio do SUS de integralidade ‒ relacionada à
condição integral, e não parcial, de compreensão do ser humano, ou seja,
entendendo-o em seu contexto social ‒,
em um pretenso desrespeito ao princípio do SUS de territorialidade.
O
entendimento dos militantes pressupõe integralidade e territorialidade como “a
articulação com a atenção primária, com a escola, com o local onde residem ou
circulam os adolescentes, com outros equipamentos do território”, o que um
serviço especializado não estaria apto a realizar. Por que a discriminação positiva
de uma clientela desassistida ‒ até o momento, os
adolescentes drogaditos e envolvidos em atos infracionais não mereceram uma
política específica ‒ ou a especialização de um
serviço de Saúde Mental seriam, por si só, segregadoras? E em que o modelo institucional
não baseado na noção de território como equivalente a “área de abrangência”
geográfica contraria a perspectiva de universalidade do SUS, quando não existe,
há anos, investimento na ampliação da rede regionalizada de assistência? O
conceito espacial de território limita a extensão do que seria territorialidade,
que pressupõe um “habitar um território”, explorá-lo, torná-lo seu, ser
sensível às suas questões, ser capaz de movimentar-se por ele e colocar em
relação fluxos diversos (cognitivos, políticos,
comunicativos, afetivos, culturais, subjetivos).
Um
serviço de Saúde mental pode ser “permeável”, portanto, desde que disponibilize
recursos e ocasiões negociáveis aos operadores e usuários das políticas,
ampliando o olhar e evitando circunscrevê-lo em uma gama limitada de ações
fragmentadas. Basta que, mesmo se estiver localizado em uma instituição, não
limite os modos de interação dentro daquele espaço, e que, ao contrário, permita
a invenção de novos modos de vida, bem como a troca e o convívio com os
recursos circunstantes, permitindo aos usuários que exerçam, por meio dos
afetos, sua influência no território. Um manicômio não é um prédio, mas uma
mentalidade de acomodação, restrição de estímulos, dessocialização, desinvestimento,
resignação e massificação.
O conceito de território
explorado por Milton Santos, em seu texto “A natureza do espaço: Técnica e tempo,
razão e emoção”, de 1996, é pensado como algo que tem a ver com a relação dos
sujeitos com aquele lugar, tudo aquilo que, não vindo diretamente da natureza,
passa pelo processo de produção que somente o homem é capaz de desempenhar. O sujeito
é o responsável por esse processo de uso, organização, configuração,
normatização e racionalização do território à sua volta, ocupando-o, fazendo-o
seu. Autores deleuzianos, como Rogério Haesbaert ‒ em especial, no seu texto de 2004 “O mito da
desterritorialização: do ‘fim dos territórios’ à multiterritorialidade” ‒ fazem uma
interpretação do conceito de território a partir do estabelecimento de poder
político e das influências na identidade cultural das sociedades: a apropriação
da identidade é uma marca forte da territorialidade. Felix Guattari e Suely Rolnik,
em livro de 1996, “Micropolítica: cartografias do desejo”, afirmam, por sua vez,
que “o território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um
sistema percebido no seio da qual um sujeito se sente ‘em casa’. O território é
sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma”. É possível,
então, despreender o caráter político do território, em sua busca de autonomia,
da concretude espacial, o que lhe garante maior fluidez, no que tange à
projeção das relações sociais no espaço. Radicalizando para o plano
psicológico, poderíamos acrescentar até que o ambiente de uma única pessoa (espaço
de vida pessoal, hábitos) pode ser considerado como um “território”, a partir
do qual a pessoa age ou para o qual se volta, que o delimita e o articula aos
fluxos sociais. Ele é um conjunto de projetos e representações, é um agenciamento,
posto que a primeira regra concreta dos agenciamentos é descobrir a territorialidade.
Deleuze e Guatari
vão mais longe: uma aula é um território, porque para construí-la é necessário
um agenciamento coletivo de enunciação e um agenciamento maquínico de corpos; a
mão cria um território na ferramenta; a boca cria um território no seio... O
conceito ganha essa amplitude porque ele diz respeito ao pensamento e ao desejo
‒ entendido aqui
como uma força criadora, produtiva.
Podemos pensar, a
partir disso, que levar à literalidade o respeito à singularidade do sujeito
pode ser uma estratégia para manter uma instituição de saúde mental em posição
de integralidade, universalidade, equidade e respeito à territorialidade,
presentes na doutrina do SUS. Para que apareça algo singular do sujeito, tem que haver uma instituição
que os receba do lugar de um Outro que não seja completo ‒ o Outro
completo, seja como ideologia ou como instituição, tem regras pré-definidas, e exclui
quem não se adapta a elas, ou seja, não tem lugar para acolher o desejo ‒, pensando
para cada sujeito, uma indicação terapêutica, um certo uso dos dispositivos
institucionais, fora da lógica de um “programa” padronizado. É preciso que a
instituição se dê ao trabalho de tomar cada paciente como um caso clínico e determinar
estratégias próprias, fazendo exceção à regra, no caso a caso.
O CAPUT aprendeu com os mais de mil adolescentes
que por lá passaram que a instituição especializada na subjetivação não
segrega, que criar atividades especialmente pensadas para jovens populares
urbanos favorece o vínculo com a instituição e a adesão ao tratamento, que a
identificação imaginária sempre presente nos grupamentos juvenis pode ser um
aliado terapêutico, que um serviço de Saúde Mental pode ‒ e deve ‒ ser um “QG
da juventude”, um território próprio, sustentado pelo desejo de ter um lugar no
mundo, de ter voz, de ter nome.
Uma vez que o SUS considera que pode prescindir do CAPUT, que saiba aproveitar a experiência clínica do CAPUT em sua rede, sua novíssima tecnologia. Belo Horizonte sempre esteve à frente das determinações programáticas, criando serviços antes que houvesse Portarias do Ministério da Saúde para institucionalizar os procedimentos. Estruturar o CAPS-i (aqui em BH chamado de CERSAMI) de forma mais ousada, para receber ‒ e criar vínculo ‒ com adolescentes usuários abusivos de drogas e envolvidos em atuações de risco, para intervir, para além do sintoma, em estruturas psíquicas mal alinhavadas, amarrando um eu onde o ato prevalece sobre a palavra, pode apresentar um início em uma ainda tímida política de Saúde Mental para a juventude. Montar projetos terapêuticos únicos. Estruturar a instituição a cada vez, para cada um que chega. Aceitar a queda dos ideais na contemporaneidade, para entender a ascensão dos objetos de consumo e de gozo, a prevalência do imaginário sobre o simbólico, e introduzir nos adolescentes um gosto pela fala. Para que “desembole na ideia” (termo juvenil para se referir a resolver os problemas com o diálogo) o seu fantasma. Para que faça da instituição especializada, por meio da relação transferencial, um ponto inicial na rede de novos laços sociais. Para que encontre seu território.
Uma vez que o SUS considera que pode prescindir do CAPUT, que saiba aproveitar a experiência clínica do CAPUT em sua rede, sua novíssima tecnologia. Belo Horizonte sempre esteve à frente das determinações programáticas, criando serviços antes que houvesse Portarias do Ministério da Saúde para institucionalizar os procedimentos. Estruturar o CAPS-i (aqui em BH chamado de CERSAMI) de forma mais ousada, para receber ‒ e criar vínculo ‒ com adolescentes usuários abusivos de drogas e envolvidos em atuações de risco, para intervir, para além do sintoma, em estruturas psíquicas mal alinhavadas, amarrando um eu onde o ato prevalece sobre a palavra, pode apresentar um início em uma ainda tímida política de Saúde Mental para a juventude. Montar projetos terapêuticos únicos. Estruturar a instituição a cada vez, para cada um que chega. Aceitar a queda dos ideais na contemporaneidade, para entender a ascensão dos objetos de consumo e de gozo, a prevalência do imaginário sobre o simbólico, e introduzir nos adolescentes um gosto pela fala. Para que “desembole na ideia” (termo juvenil para se referir a resolver os problemas com o diálogo) o seu fantasma. Para que faça da instituição especializada, por meio da relação transferencial, um ponto inicial na rede de novos laços sociais. Para que encontre seu território.
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