PICICA: "A verdadeira raiz da crise política está na maneira como a classe política se coloca acima de seus representados"
Análise/ Vladimir Safatle
A casta contra o povo
A verdadeira raiz da crise política está na maneira como a classe política se coloca acima de seus representados
por Vladimir Safatle
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publicado
18/09/2015
Tânia Rêgo/ Agência Brasil
Em 2013, com as grandes manifestações de junho, ficou evidente o deslocamento entre os dirigentes e as demandas populares
O Brasil deve ser o único país do mundo no qual até viadutos e calçadas são batizados com nomes de figuras pretensamente notáveis.
Difícil achar 1 metro de concreto que não tenha a alcunha de algum
grande brasileiro a ornar sua existência. Se você começa a se perguntar,
porém, sobre quem são esses que os brasileiros celebram em suas
construções, ficará claro não se tratar, em sua esmagadora maioria, de
escritores, músicos, professores, cidadãos de grande bravura. São em
geral políticos. Antigos deputados, prefeitos, vice-prefeitos,
secretários, presidentes, ministros, mulher de ministro,
correligionário, governador, filho de governador, mãe de prefeito (esta é
uma contribuição da cidade de São Paulo). Bem, a lista não termina.
Pode-se ter a impressão, com toda essa
profusão de homenagens, que os brasileiros amam seus políticos com todo o
coração. Ou se pode perceber claramente como a classe política vive
para celebrar a si mesma, em um comportamento de casta que mistura
vínculos de sangue, tradição e pilhagem do espaço público.
É difícil não pensar a esse respeito depois do término da votação do projeto de reforma política.
Em 2013, com as grandes manifestações de junho, ficou evidente o
descolamento entre os dirigentes e as demandas populares. O slogan “Não
me representa” era uma das senhas das manifestações por expressar a
consciência de que o Brasil estava travado devido à incapacidade de
aproximar a política dos processos populares. Por expor a incapacidade
da nação de se livrar de uma “partidocracia” corrupta e precocemente
envelhecida, a fim de abrir espaço para a participação popular mais
efetiva e direta. Ninguém precisa ser representado para existir
politicamente. Esta é a lição fundamental que devemos aprender daqui
para a frente.
Diante do trauma representado por junho
de 2013, haveria duas coisas a fazer: levar em conta tais demandas ou
procurar fazer de tudo para que nada do que ela poderia produzir
alcançasse a esfera da política. Não impressiona que a escolha tenha
recaído na segunda alternativa. A partir de então, embalou-se uma
reforma cujo único objetivo era afastar ainda mais a casta política da
pressão das ruas.
Assim, o País acorda com um projeto que
visa, entre outras coisas, perpetuar os partidos majoritários e impedir
ao máximo a constituição de novas legendas, por meio da limitação do
acesso das menores a fundos, tempo de mídia e condições para campanha.
Dessa forma, não há risco de que o poder saia da mão do consórcio
miserável de agremiações hegemônicas às quais o Brasil está submetido. O
jogo consiste em limitar ao máximo a escolha real dos eleitores, criar
condições completamente desiguais para aqueles que não fazem parte da
casta e impor cláusulas de barreira que devem vigorar o mais rápido
possível, para impedir alguma escolha que possa sair do controle.
O projeto visa ainda garantir o financiamento escuso por meio de doações empresariais
e reduzir o tempo de campanha para afastar de vez os políticos da
vidraça das ruas. Ele não traz uma mísera linha sobre o aprofundamento
da participação popular direta, pois se trata de reduzir a política a
uma discussão de bastidores, na qual lobistas e operadores se entendem.
Mesmo a proposta de reforçar a Lei da Ficha Limpa, ao exigir que os
políticos comprovem, no momento do registro de candidatura, não
possuírem condenações por improbidade administrativa, acabou rejeitada
na Câmara dos Deputados. Razão para tal decisão não há, mas, na política gangsterizada em que vivemos, razão não é necessária.
Por trás de toda crise econômica
há um impasse político. A crise brasileira tende a se perpetuar por não
sermos capazes de nos voltarmos contra o que perpetua nossa miséria, a
saber, não um partido ou outro no poder, mas algo bem pior, a
consolidação da classe política brasileira como casta. Esta crise é a
verdadeira matriz da debacle econômica. Não foi para tal república de
casta que lutamos desde a redemocratização.
Por isso, que não coloquem o peso dessa monstruosidade em nossas
costas. Não temos nenhuma obrigação de defender um regime que funciona
mal e bloqueia nossa criatividade.
Fonte: Carta Capital
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