setembro 20, 2015

Em Orestes, a tragédia grega e a brasileira. Por Milton Ohata (OUTRAS PALAVRAS)

PICICA: "Complexo e original, documentário de Rodrigo Siqueira bebe em Eduardo Coutinho para compor interpretação instigante sobre ditadura, conciliação por cima e brutalidade policial contemporânea"

Em Orestes, a tragédia grega e a brasileira


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Complexo e original, documentário de Rodrigo Siqueira bebe em Eduardo Coutinho para compor interpretação instigante sobre ditadura, conciliação por cima e brutalidade policial contemporânea
Por Milton Ohata

MAIS:Orestes, documentário de Rodrigo Siqueira A partir de 24/9 em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Porto Alegre, Recife, Fortaleza e São Luis Mais informações aqui

Ele já foi considerado uma espécie de primo pobre. De uns anos para cá, correndo por fora e na contramão do senso comum, o documentário tornou-se a área mais inventiva do cinema brasileiro. Hoje, talvez seja a área mais inventiva de nossa cultura. Quais as razões disso? Para conseguir boas bilheterias, o filme nacional de ficção recorre em geral a fórmulas já testadas na tevê, imediatamente aceitas pelas distribuidoras e pelo público. Uma produção diferente até consegue se viabilizar graças a leis de incentivo e programas de fomento, mas depois precisa disputar as brechas na programação das salas. O documentário não disputa brechas pois nasceu dentro delas. Como gênero, quase sempre produzido com baixos orçamentos, foi ainda mais favorecido pela revolução do processo digital. Atualmente existem jovens que entram na escola de cinema para se tornarem documentaristas – creio que não há prova mais evidente da maturidade do nosso ex-patinho feio. 

Orestes faz parte dessa maturidade. Rodrigo Siqueira, o diretor do filme, chegou a trabalhar no telejornalismo mas já estreou no cinema como documentarista. Depois de Que favela o rap representa (2003), com Júnia Torres, ganhou em seguida o prêmio de melhor filme com Terra deu, terra come (2010) no festival É Tudo Verdade. Orestes, seu terceiro documentário, discute a violência social e os oscilantes sentimentos de justiça/injustiça que ela suscita. Para ser exato, o filme trata da violência e da justiça à moda brasileira – historicamente especificadas, o que acentua as disfuncionalidades do estado de direito entre nós. Haveria um fio entre práticas como a tortura do pós-AI-5, sofrida por opositores da ditadura (1964-1985), e a guerra civil não declarada que vivemos hoje?


A aposta do diretor foi alta. Em primeiro lugar, é um filme assumidamente político e de esquerda. Contudo, sem que o diretor esconda sua posição, não prega para conversos e tampouco chega a conclusões. A ousadia maior do documentário não está somente em seu distanciamento crítico, mas na feição nada simplista com que sua matéria vai ganhando forma, a despeito das expectativas iniciais. Orestes faz parte de uma linhagem de documentários contemporâneos que se baseiam em dispositivos, conjunto de opções técnicas e estéticas em aberto, por meio das quais o que é filmado não segue um roteiro prévio. Um dos pais fundadores do gênero, o francês Jean Rouch, chamava essa maneira de filmar de “cine-transe”: a câmera altera o comportamento das pessoas filmadas (com uma dose variável de atuação que apaga as fronteiras entre ficção e realidade) e produz um “acontecimento fílmico” irrepetível em outras circunstâncias. Certas locações de filmagem podem também induzir esse acontecimento imprevisível diante da câmera. Nesse campo do documentário, Eduardo Coutinho foi o mestre mais conhecido entre nós. Rodrigo Siqueira dá seguimento, com muita originalidade, aos filmes do diretor de Cabra marcado para morrer

Orestes tem dois níveis de ação. No mais elementar, ouvimos das personagens variadas histórias de violência, sempre carregadas de emoções fortes. O segundo nível é o do próprio filme, que estimula a interação entre os personagens do primeiro. A maior parte das cenas acontece em lugares de marcado simbolismo histórico por meio de dois dispositivos. Um deles consiste em um psicodrama com personagens que de algum modo estiveram, direta ou indiretamente, ligadas a situações de extrema violência: um ex-preso político torturado, a filha de uma militante assassinada, a enfermeira de um hospital na periferia de São Paulo, um integrante do grupo Tortura Nunca Mais, um policial, uma representante de famílias que perderam parentes em assaltos à mão armada e pais de vítimas de ações policiais. 

Todos eles se encontram inicialmente nas salas hoje abandonadas do antigo Doi-Codi em São Paulo, centro de tortura de presos políticos entre o final dos anos 1960 e começo dos 1970, relatando as próprias histórias uns aos outros e defendendo seus pontos de vista. Nessas primeiras cenas é esboçado um conflito entre uma defensora da pena de morte e todos os demais. Entendemos então por que o filme abre com uma referência a Ésquilo, o primeiro grande dramaturgo do teatro ocidental. Entre o final da tirania e o início da democracia, ele definiu a forma da tragédia grega. A encenação da trilogia Oréstia, em 458 a.c., é considerada um marco de nossa civilização. No desenrolar da trama, Agamêmnon, o comandante da guerra de Troia, é assassinado pela mulher adúltera, Clitemnestra, e por seu amante. Por sua vez, ambos são mortos pelo próprio filho de Agamêmnon e Clitemnestra, Orestes. Fúrias vingadoras, entidades mitológicas que passam a persegui-lo, são contidas pela deusa Atena, que propõe um julgamento de Orestes por um júri de cidadãos. Atena proclama que o tribunal – o primeiro a julgar um homicídio – fica instituído para sempre. Os jurados se dividem e Atena desempata a favor de Orestes. Ao longo das três peças, acompanhamos a afirmação do conceito moderno de justiça diante do “olho por olho, dente por dente”. 

Nos minutos iniciais do filme, vemos algumas de suas melhores cenas. Nelas, Ñasaindy recorda sua infância por meio de imagens. Antigas fotografias em que seus pais nunca mostram o rosto, com receio de deixarem provas comprometedoras. Filha de militantes da luta armada, ela passou os primeiros anos de sua vida em Cuba. “Fui arqueóloga da minha própria história”. Por conta disso, teve três certidões de nascimento. Na sua história pessoal, ecoa a da tragédia de Ésquilo. Ela mal conheceu o pai, que retornou ao Brasil para as fileiras da guerrilha. Sua mãe, Soledad Barrett Viedma, após a morte do companheiro e o retorno ao Brasil, teve um caso amoroso com ninguém menos que o Cabo Anselmo, agente duplo que conheceu em Cuba e acabou por denunciá-la à repressão. Numa emboscada em 1973 na cidade de Paulista (PE), Soledad foi assassinada com mais cinco militantes.

O segundo dispositivo usado pelo diretor é a simulação de um tribunal do júri na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Celeiro de políticos tão díspares como Joaquim Nabuco e Jânio Quadros, na faculdade ensinava também o ministro da Justiça do governo Médici, professor Alfredo Buzaid, com um passado no Integralismo. No quadrante oposto, dela saiu o maior número de estudantes uspianos para a luta armada depois do AI-5 e também uma geração de advogados que defenderam, até o último recurso, dezenas de presos políticos. José Carlos Dias, um desses advogados, interpreta a si mesmo no filme durante a sessão do tribunal e argumenta a favor do réu. Orestes é processado pelo assassinato de seu próprio pai que, como Anselmo, havia delatado a companheira de militância e testemunhado o seu assassinato. Escondido durante a emboscada, Orestes presenciou a cena que passaria a perseguí-lo por toda a vida. Muitos anos depois, um jornalista promove o encontro entre pai e filho. Orestes vinga sua mãe com as próprias mãos. Nesse ponto, é importante notar mais um acerto do filme. Para os helenistas Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, em Mito e tragédia na Grécia antiga, existia um parentesco de forma entre o tribunal de júri e a tragédia, ambos encenando interesses conflitantes diante de um público que é convidado a tomar partido. Essa homologia é o nervo de Orestes e permanece até hoje em certas correntes do teatro. 

Durante o júri simulado, a oratória — assertiva, veemente, teatral — da acusação e da defesa produz um efeito de realidade. Como se estivéssemos diante de um caso real. É justamente esse “como se” que borra as fronteiras entre ficção e realidade. Na história do cinema, o documentário é associado pelo senso comum à filmagem de um suposto real. De fato, desde Nanook, o esquimó (1922) – dirigido por Robert Flaherty e considerado o primeiro espécime do gênero – o “como se” esteve misturado ao “isto é a realidade”. O fundamental é que exista um pacto entre documentarista, personagens e espectadores em torno do “como se”. Em Orestes, a forma que estrutura o filme está garantida por esse pacto e, como contraprova, há momentos em que a realidade adquire atributos ficcionais. Assim, nos anos de procura pela própria identidade, Ñasaindy chega a fantasiar perguntando sobre o seu verdadeiro pai. E se ele fosse Anselmo, o delator de sua mãe? Numa dimensão menos pessoal, ou em que o pessoal é engolfado por uma impessoalidade trágica, está a recorrente narrativa (“roubo – perseguição – resistência seguida de morte”) dos inquéritos que apuram a morte de civis por policiais militares. No entanto, a mescla de ficção com realidade não fica somente em cenas avulsas mas faz parte da própria estrutura do filme.

A história de Orestes, que vimos reconstituída no tribunal do júri, reflui em seguida sobre os atuantes do psicodrama. A ficção passa, portanto, a mover a realidade do próprio filme. Ñasaindy identifica-se com a história. Tudo se passa, desta vez, não em uma locação “real”, mas “teatral”: o palco em ruínas da Casa do Povo, um centro cultural judaico, progressista e laico, inaugurado em 1953 em memória das vítimas do Holocausto. A Casa foi um lugar destacado de agitação política entre as décadas de 1950 e 70. Nela foi editado o jornal Nossa Voz, fechado em 1964, e funcionou o Teatro de Arte Israelita Brasileiro (taib), que juntou-se à corrente renovadora do Teatro de Arena e do Teatro Oficina. Nesse ambiente, os atuantes exaltam-se e a comoção leva ao choro. O filme termina com um encontro encenado de Ñasaindy com o delator de sua mãe, Anselmo, cujo papel é assumido pelo integrante do Tortura Nunca Mais.

Ao longo de Orestes, o diretor Rodrigo Siqueira correu o que o crítico francês Jean Louis Comolli, ao falar do gênero documentário, chamou de “risco do real”. De fato, um diretor que se proponha a fazer documentários está sempre ameaçado por um imponderável que é mais passível de controle em um filme ficcional: o documentável pode não corresponder às expectativas do documentarista. Em Orestes, a dificuldade existiu sobretudo nas sessões de psicodrama. No tribunal do júri, com sua dinâmica de réplica e tréplica, a forma dramática não traz em si maiores riscos. A retórica dos atores-advogados segue um desenvolvimento mais previsível, embora o diretor não tenha concluído com um veredito do júri e tenha deixado o drama como que em suspenso. O engenho de Orestes está na articulação entre o psicodrama e o tribunal – os dispositivos que são a mola narrativa do filme.

Dito isso, creio que o ponto de interesse no documentário de Rodrigo Siqueira está na relativa dissociação entre as imagens de fato captadas e os recursos estéticos usados para a progressão dramática. Como se o filme empurrasse em uma direção a que algumas de suas imagens oferecessem resistência. Além da estrutura formal que aponta todo o tempo para um desfecho catártico, o filme tem mais quatro elementos que potencializam essa dinâmica. O próprio tema (1) do filme não dá margem para a indiferença. Muito ao contrário, mobiliza emoções viscerais nos participantes (2). Quanto à fotografia (3), a progressão dramática vai da luz do dia à semi-escuridão do teatro abandonado. Por fim, a trilha sonora (4) usa reconstituições da música grega antiga, cujos modos, supunha-se, teriam influência direta no comportamento humano.

A despeito de tudo isso, não se realiza plenamente o “acontecimento fílmico” que resultaria desses mesmos recursos formais. As surpresas poderiam vir da interação coletiva. Num primeiro momento, cheguei a pensar que a entrega dos participantes do psicodrama estava abaixo do que o próprio jogo exigia. Com a exceção do ex-militante torturado que agride o dublê de cabo Anselmo na cena final, as personagens continuam iguais a si mesmas depois que o filme acaba. Creio que essa catarse em tom menor está ligada historicamente a nosso modo de resolução dos conflitos sociais e ao caráter atenuado da transição entre a ditadura e a Nova República. Como no período da abolição da escravatura, e ao contrário de nossos vizinhos sul-americanos, saímos de vinte anos de obscurantismo sem atribuições de responsabilidades ou de culpas, varrendo-as para baixo do tapete. 

Em Orestes, o “acontecimento fílmico” é freado por um “não-acontecimento histórico”, a instauração precária de um verdadeiro Estado de Direito entre nós. Essa situação está na raiz do “olho por olho, dente por dente” pregado por uma das atuantes, na dor resignada dos pais cujos filhos foram assassinados pela polícia e também numa espécie de zona de conforto moral que dá um tom peculiar às explicações das vítimas da ditadura. Cara a cara, são como eras geológicas diferentes de um país em que o espaço público (e o debate social que ele pressupõe) não chegou a um nível minimamente satisfatório. Essas irregularidades estão inscritas em bruto neste filme em que a forma aponta para um rendimento a que o assunto não pode corresponder. Se estivéssemos no terreno da pura ficção, seria um defeito. No documentário de Rodrigo Siqueira, o irregular permite tocar a própria verdade.

P.S. Nas linhas acima, vali-me dos argumentos de Roberto Schwarz em sua análise dos quiproquós formais do romance Senhora (1875), de José de Alencar. O ensaio está no volume Ao vencedor as batatas – forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro (1977). Lívia de Azevedo Lima e Vinicius Dantas me sugeriram uma comparação entre Orestes e o filme de Pier Paolo Pasolini, Notas para uma Oréstia africana (1970), comparação tentadora que foi impossível ensaiar nos limites desse texto.

Milton Ohata


Milton Ohata é doutor em história pela FFLCH-USP e organizador de Um crítico na periferia do capitalismo – Roberto Schwarz (Companhia das Letras) e Eduardo Coutinho (Cosac Naify/Edições SESC).

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