setembro 29, 2015

Que horas ela volta? …por cima. Por Christian Ingo Lenz Dunker. (BLOG DA BOITEMPO)

PICICA: "O cinema da Retomada (1992-2003) foi o primeiro movimento estético a captar a importância da vida em forma de condomínio como legado histórico e pendência simbólica de uma época que não soube reconhecer a diferença social como um problema de Estado. O que é isso companheiro? (1997) Bicho de sete cabeças (2001), Cidades de Deus (2002) e Carandiru (2003), são reflexões sobre este polígono formado pelas favelas, prisões e condomínios."

Que horas ela volta? …por cima

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O cinema da Retomada (1992-2003) foi o primeiro movimento estético a captar a importância da vida em forma de condomínio como legado histórico e pendência simbólica de uma época que não soube reconhecer a diferença social como um problema de Estado. O que é isso companheiro? (1997) Bicho de sete cabeças (2001), Cidades de Deus (2002) e Carandiru (2003), são reflexões sobre este polígono formado pelas favelas, prisões e condomínios.

Característico da Retomada é a tentativa de mostrar e de pensar o Brasil real, entre a maquiagem desenvolvimentista e a cosmética da violência. Por isso me parece que O invasor (2002) de Beto Brandt, é o filme que melhor capta esta contradição entre ricos e pobres que termina em uma espécie de amizade paradoxal, excessiva e obscena. Dois amigos, empresários, contratam um pistoleiro de periferia para assassinar o terceiro sócio que estava criando problemas no interior da dinâmica da corrupção. O pé de pato faz o serviço, mas depois de receber o dinheiro, em vez de voltar para casa e desaparecer, ele começa a frequentar a mansão e a vida dos dois contratantes, envolvendo-se com a filha de um deles.

Nada mais eficaz do que colocar no personagem paratópico do pistoleiro um não-ator, Paulo Miklos, vocalista da banda de rock Titãs. Desta forma seus gestos insólitos tornam-se obviamente exagerados. Um exagero naturalista que funciona perfeitamente na lógica do filme para mostrar como a insanidade da vingança praticada entre “amigos” (empresários) se instrumentaliza pela aliança entre “inimigos” (ricos e pobres). Nesta versão nacional de Macbeth, o crime não se apaga. Os territórios da mansão no Morumbi e a favela de Paraisópolis, uma vez fundidos, pingam sangue e culpa para sempre.

O segundo momento fundamental da lógica do condomínio acontece, naturalmente, com O som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho (2013). Agora, trata-se de entender a gênese do condomínio como uma herança arcaica dos antigos latifúndios. Francisco (W. S. Solha), literalmente senhor de engenho, é também e simplesmente dono de uma rua inteira em Recife. Nela, a vida apática e modorrenta, cheia de pequenas contravenções e rebaixamento de sonhos começa a se movimentar quando uma equipe de seguranças, liderada por Clodoaldo (Irandhir Santos) se estabelece no local. Nela tudo funciona bem, a não ser o som que parece denunciar o mal-estar e o esvaziamento das relações sociais, das perspectivas de futuro e da densidade da vida amorosa. Novamente temos uma trama de vingança inesperada, na qual um crime antigo apagado agora retorna com cores vivas e surpreendentes no interior da zona de segurança formada pelo condomínio. Novamente aqueles que deveriam ser aliados “interclasses”, (os condôminos e os seguranças) mostram que tal aliança erige-se em um pacto hamletiano anterior, mal resolvido, e mal honrado.

O ponto arqui-mediano da lógica do condomínio está sem dúvida em Que horas ela volta? (2015), de Anna Muylaert. Aqui temos a mesma apatia e falta de sentido que domina a representação da vida protegida e abrigada entre muros, síndicos e regulamentos de ocasião. O conflito é novamente caracterizado por uma espécie de dilatação da presença do serviçal. Assim como Val deve aparecer para o que for necessário, antecipando demandas e dificuldades de seus patrões, ela deve logo em seguida tornar-se invisível quando se trata de existência não funcional. Ela deve inexistir, sobretudo, quando o assunto é a personalidade sensível de seus patrões: assuntos que envolvem gosto, narrativas pessoais ou habitação de certos lugares da casa, como a piscina. Era assim também a promessa dos primeiros condomínios. Uma civilização artificial na qual os problemas práticos com empregados domésticos estariam resolvidos: entradas pelos fundos, uniformes, administração impessoal e mínimo de convivência não controlada. Saneava-se assim a antiga e machadiana figura do agregado, este misto de empregado e membro da família, que perpassa a memória afetiva de todos nós, e que descende tanto do aproveitamento sexual da senzala pela casa grande (Gilberto Freire) quanto da mistura ibérica cordial entre o público e o privado (Sérgio Buarque de Holanda).

Portanto, a pergunta que não quer calar, não é por que Val (Regina Casé) aparece como personagem caricata em seu exotismo linguístico nordestino, que exagera no amor ao filho da patroa, na devoção superlativa ao marido depressivo ou na tolerância para com a ignara e displicente dondoca. Este exagero não é um erro de casting ou de construção de personagem, mas uma necessidade estrutural. Este excesso representa o personagem ausente no filme, mas que é facilmente dedutível da série na qual ele se inclui: a vingança e a violência. A complacência e dedicação de Val tem por objetivo induzir o mal-estar no espectador. Fazer com que ele se reconheça no idiota apressado que não consegue escutar uma história de sofrimento, de inverter uma perspectiva sequer sobre sua própria vida, em relação a quem, por outro lado ama e experimenta gratidão, ainda que narcísica.

Jéssica, a filha abandonada, que reaparece “fora de lugar” faz a função híbrida de Paulo Miklos e Irandhir Santos. Ela gruda, se insinua, aceita ser tratada como hóspede, comporta-se como um objeto intrusivo, age como se não soubesse que existe uma ordem e uma lei, um semblante que mantém sob si a verdade de um discurso, que é o discurso da segregação. Contudo, ela não volta para se vingar dos patrões, mas da covardia moral da mãe. Aqui tudo o que o personagem de Val tem de determinação unidimensional Jéssica carrega de indeterminação produtiva. Estaria Carlos, o herdeiro filho de papai, reencarnando seu papel de senhor, assediando a senzala, ou estaria ele tomado pelo redespertar verdadeiro do desejo, diante de um ato real de reconhecimento, quando se encontra com alguém, como Jéssica, dotada de um genuíno apreço pelas artes e pela arquitetura modernista? Estaria Fabinho enciumando por ter que dividir o afeto de sua ama de leite ou interessado em uma mulher real que já não é mais virgem? Seria a alegoria do rato nadando na piscina uma crítica invejosa da madame contra a irreverência da jovem, um gesto para afastar o filho da intimidade demasiada com a intrusa ou é apenas signo de sua derrota e impotência diante da autenticidade da filha ou da intimidade da mãe.

Nada mais distante desta lógica do que pensar que Regina Casé é uma personagem-tipo do lulismo, uma batalhadora que deu certo, ostentando seus signos de consumo, na parede de seu quarto dos fundos, para uma casa que ela ainda não ousou sonhar. Casé vem da comédia nacional semi-escrachada, do fulcro da indústria cultural, mas assim como Paulo Miklos, ela é percebida como uma atriz diferente, uma espécie de antropóloga interessada no Brasil. Aqueles que viram no filme apenas uma reprise de uma comédia de ocasião, realista se não governista, parecem aqueles antigos psicanalistas que só conseguem olhar para um filme a partir de seu enredo. E com um martelo na mão, tudo o que conseguem enxergar são… pregos.

O trabalho de câmera é decisivo para entender como o problema central do filme não é a conflitiva doméstica e seus sonhos de ascensão, mas são os muros que atravessam as relações, induzindo um ressentimento expresso pela perda de intimidade, pela solidão compartilhada, pela inexplicável distância que faz Val, deixar de visitar sua filha por 10 anos. É o abrir e fechar das portas da cozinha, das portas do atelier de Carlos, das janelas do Copan, este sonho contra-condominial de Niemeyer de criar um complexo urbanístico onde ricos e pobres poderiam viver juntos entre apartamentos gigantes e pequenas quitinetes. São os takes de Campo Limpo, de onde se pode ver a cidade, ao contrário do intra-muros residencial da casa no Morumbi e sua retórica da asfixia.

Nos acostumamos a ver no cinema brasileiro contemporâneo o excesso de emprego da câmera subjetiva. Postada rente ao rosto do personagem ela produz interioridade psicológica e densidade moral apropriada para a tematização do herói dividido (como o Capitão Nascimento, apesar de tudo). Mas não é neste plano subjetivo que Jéssica nos é apresentada, mas numa espécie de plano subjetivo com uma semi-torção, no qual a câmera está perto do rosto da personagem, mas seu rosto vira-se para o lado, como que a recusar a sua psicologização, sem por outro lado, recorrer ao distanciamento. Daí que sejamos surpresos pela complexidade de motivos que trouxeram-na para São Paulo. Daí também que sejamos surpreendidos pela reconciliação diante de um dos sintomas mais temido pelos clínicos, graças a sua força de repetição transgeracional: a gravidez precoce.

O último exagero imputado ao filme, procurando corroer sua verossimilhança e com isso sua potência crítica, trata de insistir que seria pouco plausível que uma moça vinda do nordeste, sem cursinho, entrasse na USP. A objeção não procede, pois mostra, antes de tudo, soberba ignorância quanto ao fato de que há muitos alunos que não são ricos e indolentes como Fabinho, nas universidades públicas. E é aqui que o filme vai melhor ao nos apontar nosso próximo muro condominial a ser derrubado: a inequidade na distribuição de bens simbólicos de qualidade, como educação, cultura, justiça e saúde. É o ponto de inversão real no qual os jovens protegidos e indolentes das classes altas estão sendo sobrepujados nas universidades e nos empregos por jovens inquietos atrás de uma única oportunidade. Mais do que atrás de um prato de comida, atrás de um prato de saber. É a ridícula miséria cultural daqueles que deveriam zelar pela sua distribuição que é posta em questão de ponta a ponta no filme: as telas desperdiçadas de Carlos, as declarações vazias de sua esposa (“o estilo é a pessoa, sabe?”), a inconsequência de Fabinho.

A síntese desta questão está na cena na qual guiado pelo pai, Fabinho confessa sua ignorância de jamais ter entrado e sequer saber como é a universidade onde queria estudar, ali tão próxima de sua casa no Morumbi. Em contraste com Jéssica que sem jamais ter pisado em São Paulo, pressentia o encontro indelével com o horizonte futuro de seu desejo, e a hora da verdade quando ela e sua turma poderão dar a volta por cima.

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Christian Dunker debateu “Nacionalismo, identidade nacional e segregacionismo”, com Gilberto Maringoni e Jessé Souza no Seminário Internacional Cidades Rebeldes. Confira a gravação integral da mesa:

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Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012, seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015). Colabora também com o livro de intervenção Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo/Carta Maior, 2015). Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

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