PICICA: ""As experimentações democráticas
deixaram de existir e é uma visão estatal e centralizadora que vigora: o
luto do socialismo e do autoritarismo estatal ainda não foi feito. A
crítica do mercado e dos mecanismos da democracia representativa serve
apenas para mistificar práticas de exploração do trabalho e, ainda pior,
práticas arcaicas! (...) Na Europa e na
América Latina, a esquerda nos mostras que é incapaz de pensar além do
Estado: seja ele socialista ou neokeynesiano no regime discursivo, ele
apenas serve para conter as lutas no regime de fato. Entre os dois
continentes, a urgência é sair dessa dupla armadilha, ir para o êxodo da
invenção de novas institucionalidades", advertem Giuseppe Cocco, sociólogo e professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e Raul Sanchez Cedillo, tradutor, filósofo e membro da Universidad Nómada da Espanha."
Cantes de ida y vuelta: entre primavera e outono. Reflexões entre o 15M na Espanha e junho de 2013 no Brasil
"As experimentações democráticas
deixaram de existir e é uma visão estatal e centralizadora que vigora: o
luto do socialismo e do autoritarismo estatal ainda não foi feito. A
crítica do mercado e dos mecanismos da democracia representativa serve
apenas para mistificar práticas de exploração do trabalho e, ainda pior,
práticas arcaicas! (...) Na Europa e na
América Latina, a esquerda nos mostras que é incapaz de pensar além do
Estado: seja ele socialista ou neokeynesiano no regime discursivo, ele
apenas serve para conter as lutas no regime de fato. Entre os dois
continentes, a urgência é sair dessa dupla armadilha, ir para o êxodo da
invenção de novas institucionalidades", advertem Giuseppe Cocco, sociólogo e professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, e Raul Sanchez Cedillo, tradutor, filósofo e membro da Universidad Nómada da Espanha.
Eis o artigo.
“Não queremos correntes, mas elos”
Célio Gari
Célio Gari
1. Desde sempre somos antropofágicos, jamais fomos modernos.
Uma das razões que explica a densidade
do diálogo entre o tropicalismo antropofágico (brasileiro) e a
antropologia simétrica (europeia) é sem dúvida a convergência das
críticas que os anima: desde sempre somos antropofágicos; jamais fomos
modernos. O animismo é um sincretismo que mestiça bárbaros e selvagens: a
outra modernidade com o não moderno.
Afirmando que desde sempre somos antropofágicos, o tropicalismo
recusou e recusa os atalhos nacional-populares pelos quais se
embrenhava a esquerda socialista e anti-imperialista e mais em geral o
terceiro-mundismo na procura de raízes de identidade e autenticidade;
afirmando que jamais fomos modernos, a antropologia simétrica atacou as
raízes da razão instrumental ocidental, ou seja os procedimentos de
purificação que impõem um sem numero de assimetrias entre ciência e
vida, entre mente e mão, alma e corpo, cultura e natureza. O
tropicalismo antropofágico nos mostra que as raízes do nacional-popular
são na realidade as do colonialismo europeu e que esse
se reproduz como colonização interna, produzindo imaginários espelhados
na dialética do escravo e do senhor, das peles e das mascaras. A
antropologia simétrica explica que o conteúdo do processo colonizador é
sua razão (a ciência) e que essa se afirma como biopoder:
poder sobre a vida dos colonizados pelos mecanismos de sua purificação
instrumental, aqueles que acabam atribuindo a potência prática e
constituinte da invenção cientifica aos tribunais constituídos na
instrumentalidade dos laboratórios de experimentação e formalização.
Como diziam os jovens “operaistas” italianos, não nos interessa a
ciência, mas o principio de seu desenvolvimento e, pois, a técnica não será o prémio para quem ganha a luta de classes, mas o terreno dessa luta e ao mesmo tempo de sua requalificação.
O nacional-popular (o socialismo) e a técno-ciência são – ambos – intrínsecos ao capitalismo e organizam seu poder nos laboratórios, pela imposição da separação e até a oposição entre ciência “pura” e ciência “humana”, entre objeto e sujeito, entre pensamento racional e pensamento selvagem, entre o norte racional e o sul selvagem.
Os laboratórios, enquanto mecanismos de purificação do pensamento, são os dispositivos centrais de reprodução do eurocentrismo no Sul e também no Norte como colonização ao mesmo tempo externa e interna. No “não lugar sem fora” que define o espaço–tempo da globalização imperial, o Ocidente não é mais o laboratório do mundo, ou seja não constitui mais o futuro radioso (capitalista ou socialista) de um progresso positivo e linear. A própria noção de futuro está em crise e com ela aquela de progresso, inclusive quando se apresentam como “epistemologias do Sul”. Os órfãos do anti-imperialismo e dos muros totalitários dizem que a noção de Império é eurocêntrica, mas somente não podem aceitá-la por não ser suficientemente ocidental e assim procuram um “fora” paranoico no saudosismo por “novas guerras frias”, na farsesca oposição entre, por um lado, o capitalismo “liberal” de UE e Estados Unidos e, por outro lado, capitalismo “social” de China, Rússia e Brasil (BRICS).
O nacional-popular (o socialismo) e a técno-ciência são – ambos – intrínsecos ao capitalismo e organizam seu poder nos laboratórios, pela imposição da separação e até a oposição entre ciência “pura” e ciência “humana”, entre objeto e sujeito, entre pensamento racional e pensamento selvagem, entre o norte racional e o sul selvagem.
Os laboratórios, enquanto mecanismos de purificação do pensamento, são os dispositivos centrais de reprodução do eurocentrismo no Sul e também no Norte como colonização ao mesmo tempo externa e interna. No “não lugar sem fora” que define o espaço–tempo da globalização imperial, o Ocidente não é mais o laboratório do mundo, ou seja não constitui mais o futuro radioso (capitalista ou socialista) de um progresso positivo e linear. A própria noção de futuro está em crise e com ela aquela de progresso, inclusive quando se apresentam como “epistemologias do Sul”. Os órfãos do anti-imperialismo e dos muros totalitários dizem que a noção de Império é eurocêntrica, mas somente não podem aceitá-la por não ser suficientemente ocidental e assim procuram um “fora” paranoico no saudosismo por “novas guerras frias”, na farsesca oposição entre, por um lado, o capitalismo “liberal” de UE e Estados Unidos e, por outro lado, capitalismo “social” de China, Rússia e Brasil (BRICS).
Já não há mais cobaias nos laboratórios.
Sejam elas ratos ou aranhas, estão todas exercendo seu direito de fuga
das alternativas binárias que o pensamento pós-colonial produz no Norte e
no Sul[1] . Se hoje ainda há um “fora” é aquele que se constitui no êxodo, entre as redes e as ruas.
2. “Los cantos de ida y vuelta”: de maio a junho.
Jamais fomos modernos, mas os
laboratórios do poder não cessam de capturar e hierarquizar a potência
do saber produzido pela cooperação social, pelas relações constitutivas
de democracia real. Mesmo aqueles que se dizem preocupados com seu
“desenvolvimento”, exatamente porque procuram construir os
“laboratórios” desse futuro, acabam querendo colocar aranhas e ratos de
volta nas gaiolas de um saber purificado, impotente e ... insensato.
Sempre fomos antropofágicos, mas a esquerda nacional
desenvolvimentista e soberanista continua falsificando as pautas da
“reforma”, sonhando com o “socialismo em único país” e funcionando de
fato como autoritário abre-alas da direita e de sua globalização neoliberal: entre megabarragens e megaeventos,
os índios são transformados em miseráveis e os pobres em trabalhadores
terceirizados; os imigrantes são sempre subalternizados e a cidadania é
reduzida a uma operação de imunização do corpo da nação produtiva, assim
como a pensam Dilma e Serra no Brasil, Chevènement e Le Pen na França, Renzi e Salvini na Itália, Thilo Sarrazin e Merkel na Alemanha.
Se a antropologia simétrica nos diz que
nunca formos modernos e, pois, que nenhum laboratório nunca produziu
ciência da mesma maneira que nenhum tribunal jamais fez justiça, o
perspectivismo ameríndio coloca a produção do saber nos mil platôs
desenhados pelas trocas de trocas de pontos de vistas. O homem é um nó
de relações: a impureza da mestiçagem universal, sujeito e objeto,
cultura e natureza. Não se trata, pois, de pensar o Norte desde o Sul,
nem o Sul desde o Norte, mas pensar entre, no êxodo: o agenciamento, o
devir-Sul do Norte e o devir-norte do Sul, os “cantos de ida y vuelta”: a
situação pós-colonial não é apenas das ex-colónias, mas também da metrópole. O pensamento é selvagem e civilizado.
O perspectivismo ameríndio, a filosofia
da percepção assim como a esquizo-análise são as faces múltiplas de um
mesmo processo de produção do saber: discursos e atos políticos que
constituem as sociedades, os grupos, as “classes”. A justiça é luta e
não um tribunal e isso exatamente na medida que a verdade não está em
nenhum laboratório, mas na coragem de destruí-lo: o ousar saber precisa
sempre de um saber ousar.Exercendo nosso direito de fuga, nos
concentraremos aqui a pensar o que acontece entre o Norte e Sul, entre Espanha e Brasil, ou seja entre as situações mais dinâmicas da Europa e da América do Sul, mesmo que essa “dinâmica” tenha sentidos opostos.
Dos levantes que seguiram a onda das primaveras árabes, o 15 de maio de 2011 na Espanha (15M) foi com certeza aquele que na Europa mais conseguiu generalizar-se e manter-se no tempo e o de junho de 2013 no Brasil foi aquele que na América Latina mais se massificou, radicalizou e – apesar de tudo – continua durando. Nos dois casos, entraram em cena novas personagens: as multidões do trabalho metropolitano.
Dos levantes que seguiram a onda das primaveras árabes, o 15 de maio de 2011 na Espanha (15M) foi com certeza aquele que na Europa mais conseguiu generalizar-se e manter-se no tempo e o de junho de 2013 no Brasil foi aquele que na América Latina mais se massificou, radicalizou e – apesar de tudo – continua durando. Nos dois casos, entraram em cena novas personagens: as multidões do trabalho metropolitano.
O 15M nasceu
imediatamente como um levante contra uma representação sequestrada pelo
duplo dispositivo de comando: o do sistema financeiro e o do sistema dos
partidos; se firmou como movimento emergente e distribuído através das
redes sociais, seguindo o exemplo das primaveras árabes e da Geração à Rasca
portuguesa e se traduziu rapidamente em uma ocupação generalizada do
espaço público (as Acampadas). O 15M, é algo como uma “criticalidade
auto-organizada”: não um “movimento único”, mas um acontecimento
ampliado onde apareceu o país do outro lado do espelho: “Now, here, you see, it takes all the running you can do, to keep in the same place”. Estar no mesmo lugar significa estar numa situação aberta ao acontecimento onde a energia potencial distribuída transforma o status quo
em processo constituinte. A exceção aqui é a persistência inédita dessa
“criticalidade auto-organizada” do sistema de lutas sociais.
Criticidade é o fato de uma evolução não-linear com arranjos que
expressam tensões éticas, políticas, eróticas, biopolíticas. O 15M
passou por pelo menos 3 desdobramentos: a conexão com plataformas de
luta oriundas dos movimentos que diziam “Nós não pagaremos pela crise de
vocês”, como a Plataforma de Afectados por la Hipoteca (PAH); a emergência de um sindicalismo social (com as Mareas da educação e da saúde); os movimentos de ocupação nas cidades (os Centros Sociais) e a criação de um sistema rede emergente, multiníveis, entre as redes e as ruas, entre as pessoas e os coletivos (a tecnopolítica).
Com essa capacidade de durar (e com sua
resiliência) o 15M começou a ser atravessado pela questão da
representação eleitoral em dois momentos: logo em 2011, quando se
recusou a escolher entre o pior e o menos pior e deixou o PSOE ser derrotado pelo PP; nas eleições europeias de junho de 2014 quando se apresentaram duas formações políticas novas: o Partido X, Partido do Futuro e o Podemos.
Apesar de o Partido X ser oriundo das redes tecnopolíticas internas ao
15M, foi o Podemos que teve um nítido sucesso e conseguiu pautar o
debate da transformação eleitoral e institucional da duração do 15M e
que, hoje em dia, mesmo com inevitáveis dificuldades – devidas à sua
hipótese organizacional e estratégica –, pode tornar-se a alcunha de uma
mudança política constituinte na Espanha e na União
Europeia. Podemos não é o único projeto de assalto institucional, mas
apenas o mais bem sucedido até a data de hoje, em nítida competição (que
precisa ser um saudável exercício da democracia) com processos como o
do Guaynem e Ganemos em Barcelona, Madri, Zaragoza e em menor medida em La Coruña, Málaga, etc.
O junho brasileiro de 2013 explodiu como uma greve metropolitana contra o aumento das tarifas de transportes (chamada pelo Movimento Passe Livre – MPL)
e se tornou o maior levante da história do Brasil, generalizando-se a
todo o País e a todas as pautas de democratização, apara além do regime
pós-ditadura cristalizado na “Constituição de 1988”:
por um lado, ele foi fazendo convergir numa revolta geral o sem numero
de lutas de resistência contra o modelo de cidade legada pela
hibridização entre o neo-desenvolvimentismo e a construção da “cidade
global”; pelo outro, ele desdobrou-se pela multiplicação das acampadas
diretamente dentro dos parlamentos: as tentativas de ocupação do
Congresso em Brasília se reproduziram depois com as ocupações de pelo
menos 12 Câmaras de Vereadores ou Assembleias Legislativas (em Porto
Alegre, Belo Horizonte, Campinas, Rio de Janeiro ...). A forma da greve metropolitana
virou referência de um sem numero de movimentos autônomos de greve: no
Rio de Janeiro, com os professores que em outubro do mesmo ano voltaram a
ocupar a Câmara desafiando a violência policial em 3 dias de
enfrentamentos campais e com a luta vitoriosa dos Garis em fevereiro de
2014. Essas greves indicaram o terreno da constituição de coalizões
sociais. Mas junho de 2013 foi descontruído: a resistência à violência
policial que inicialmente massificou o levante virou o terreno de uma
repressão feroz que paralisou as mobilizações dos pobres; em seguida, o marketing bilionário do governismo (do PT em particular) conseguiu – apos destruir a possibilidade de um “lulismo sem Lula” (com Marina Silva)
e mentindo descaradamente, polarizar e mistificar o pleito eleitoral de
outubro de 2014. A irresponsabilidade de uma política totalmente
corrupta foi tão grande que acabou puxando a mobilização de uma direita
que tinha ficado completamente paralisada e hoje está nas ruas
atravessando a justa indignação popular.
3. O que Podemos entre Espanha e Brasil?
Na Espanha, o 15M foi
uma mobilização geral contra toda a “representação” monopolizada pelo
sistema dos partidos nascido com o regime constitucional pós-franquista
de 1978, incapaz de bloquear e sequer frear o processo de destruição do sistema de proteção social. No Brasil, junho de 2013
foi um levante metropolitano contra uma “representação” que se tornou
um obstáculo a implementação de um verdadeiro welfare. No norte, o
trabalho está se tornando precário e pobre, passando por uma
brasilianização. No sul, o pobre está sendo posto a trabalhar de maneira
precária, passando por uma “europeanização” que na realidade é uma
brasilianização: não mais por causa do atraso e do subdesenvolvimento,
mas da modernização e da globalização. No 15M houve a recusa da austeridade neoliberal,
mas também a afirmação da potência nova do devir-pobre do trabalho em
produzir uma nova geração de direitos, de produzir uma outra cidade. Em
junho de 2013, o trabalho dos pobres reivindicou um novo tipo de
direitos, antecipou a crise da aventura neoliberal no terreno da
transformação dos valores. O devir-pobre do trabalho, trocando de ponto
de vista com o devir-trabalho dos pobres, indica um devir-Brasil (um devir-Sul) da multidão do trabalho
na Espanha e um devir-Espanha (um devir-Norte) da multidão dos pobres
no Brasil. Os levantes plebeus do 15 de maio de 2011 e de junho de 2013
duraram no fazer-se das multidões na Espanha como no Brasil.
A autonomia das lutas afirmou-se inicialmente como base de uma crítica sistemática da representação e da autonomia do político que visa desarticular as dimensões produtivas das lutas no terreno da composição orgânica do Estado, dos partidos e das corporações. Contudo, as multidões espanholas e brasileiras hoje precisam lidar com o desafio de saber o que podem para que sua potência se afirme como brecha democrática, como “democracia real agora”. Como atravessar a representação sem deixar que a autonomia constituinte do movimento seja reduzida novamente em autonomia do político?
A autonomia das lutas afirmou-se inicialmente como base de uma crítica sistemática da representação e da autonomia do político que visa desarticular as dimensões produtivas das lutas no terreno da composição orgânica do Estado, dos partidos e das corporações. Contudo, as multidões espanholas e brasileiras hoje precisam lidar com o desafio de saber o que podem para que sua potência se afirme como brecha democrática, como “democracia real agora”. Como atravessar a representação sem deixar que a autonomia constituinte do movimento seja reduzida novamente em autonomia do político?
Uma das especificidades de Podemos
na Espanha é de fazer referência explicita, além do 15M, ao virtuosismo
dos “governos progressistas” da América do Sul. Por um lado, ele se
desmarca de experiências eleitorais parecida por sua combinação entre
potência do ciberativismo e em particular da politização das redes sociais e uma hiper-liderança promovida pelo uso da mídia tradicional - como o italiano Movimento 5 Stelle-;
pelo outro, é mesmo nessa ida y vuelta para o Sul que pode se
transformar numa tremenda armadilha. O ciclo dos governos chamados de
“progressistas” acabou e, pior, não deixa transparecer nenhum
“virtuosismo”, sequer residual ou inercial. O chavismo,
tornando-se um socialismo do século XXI já reproduziu em menos tempo
todas as mazelas do capitalismo de Estado e sobrevive hoje como um
regime falido, apoiado apenas na capacidade repressiva do Exercito e
mais em geral do Estado. Não se trata apenas da Venezuela agonizante. A Argentina também chega extenuada ao fim do kirchnerismo, o regime tendo que apoiar um candidato oriundo do “menemismo”. No Equador
também há sinais de esgotamento diante de amplas manifestações sociais,
em particular dos indígenas. Em todos os casos, e isso inclui também a Bolívia de Evo,
as experimentações democráticas deixaram de existir e é uma visão
estatal e centralizadora que vigora: o luto do socialismo e do
autoritarismo estatal ainda não foi feito. A crítica do mercado e dos
mecanismos da democracia representativa serve apenas para mistificar
práticas de exploração do trabalho e, ainda pior, práticas arcaicas!
Mas é no caso do Brasil, no País que é o
baricentro geoeconômico do subcontinente e o fiador que estabilizava o
conjunto do ciclo que o esgotamento se apresenta da maneira mais radical
e devastadora. A crise brasileira estourou definitivamente no momento em que vários observadores internacionais pensavam enxergar sua vitalidade: nas eleições de outubro de 2014.
Da complexidade da situação brasileira, interessa extrair três grandes
traços: (1) em primeiro lugar sua dimensão subjetiva, (2) em segundo
lugar, o determinante objetivo e, enfim, (3) o desdobramento
político-teórico.
(1) No plano subjetivo do evento, diferentemente dos outros países da América do Sul, o movimento de junho de 2013
antecipou a crise objetiva (econômica e política) abrindo uma
gigantesca brecha para uma virada em termos de radicalização
democrática. Diante disso, o Lulismo (desde o governo,
passando pelo PT e o próprio Lula) mobilizou todos os recursos que o
poder político e econômico lhe dava para fechar a brecha ao longo de
três linhas de intervenção: a desqualificação do levante identificado
como um todo a um regurgito “fascista”; a vergonhosa promoção de algumas
redes de jovens patrocinados pelo próprio PT como sendo “o” movimento; o
planejamento e coordenação federal de um fortíssimo esquema de
repressão aplicado em todos os níveis federais. Além disso, o governismo
usou sua potentíssima máquina de marketing para fazer a propaganda de
uma suposta “onda conservadora” na sociedade e de uma “campanha de ódio”
nas redes sociais. O PT e o “lulismo” usaram todo seu
poder (estatal) para fechar a brecha democrática muito simplesmente
porque eles não cabiam nela. Com efeito, a “brecha” se caracterizava por
permitir dois deslocamentos virtuosos: o primeiro era imanente à
própria dinâmica do levante como possibilidade para os pobres de poder
lutar sem serem mortos e foi exatamente isso que se expressou na
vitoriosa campanha pelo Amarildo
– o pedreiro torturado, assassinado e desparecido pela polícia
pacificadora da favela da Rocinha no Rio de Janeiro-; o segundo dizia
respeito à recusa do dispositivo binário que regia toda a comunicação do
Lulismo e que consistia em alimentar uma luta “ideológica”
(o PT contra a elite branca) tanto violenta quanto vazia e totalmente
falsa, pois governam pelas grandes empreiteiras, os bancos e quando
falam de redução da desigualdade a pensam como emergência de uma “nova classe média”.
Junho de 2013 era insuportável para o PT e Lula porque impedia de
continuar surfando cinicamente nos atrasos brasileiros para justificar
sua corrupção política e moral, ou seja o fato de governar pelo e com os
ricos.
(2) O determinante objetivo tem duas
dimensões, embutidas uma na outra: a crise no Brasil não chega – como na
Europa – pelo fato de o governo ter se recusado de fazer políticas anticíclicas, mas porque as fez; em seguida, diferentemente dos outros países da América do Sul, o governo Lula-Dilma – uma vez reeleito - inverteu de 180 graus suas prioridades e passou a aplicar uma dura política econômica de austeridade.
Independentemente do que isso significa do ponto de vista do
estelionato eleitoral, o fato é que o Brasil se encontra hoje mergulhado
numa grave crise econômica, governada por um
violentíssimo dispositivo de cortes orçamentários, cortes de direitos
trabalhista, aumentos das taxas de juros e ao mesmo tempo aumentos
generalizados das tarifas administradas (dos serviços públicos:
particularmente de transportes, gasolina e eletricidade). Ou seja, os
pobres no Brasil terão que aguentar um longo período de recessão
com alta inflação: o governo Dilma está realizando um verdadeiro
confisco da renda dos trabalhadores e das camadas intermediarias do
empresariado.
O longo período dos governos Lula-Dilma pode ser dividido um duas fases. Entre 2003 e 2008, o PT
seguiu à risca as receitas neoliberais mas se deixou atravessar por
pequenas inovações que constituíram algumas pequenas brechas. Tudo isso
se resume a 3 dimensões: a massificação das políticas neoliberais de
distribuição de renda (o Bolsa Família); as políticas de acesso (em particular no ensino superior com Prouni, Reuni e Cotas raciais); a valorização do salario mínimo que, além de melhorar o nível de renda dos trabalhadores pobres permitiu um upgrade geral de um sistema de proteção social.
A partir de 2009, depois da grande crise
financeira, o governo Lula-Dilma passou a políticas de aceleração do
crescimento teoricamente inspiradas no velho nacional-desenvolvimentismo
e de fato planejadas e implementadas a partir da tradução em termos de
política econômica do jogo eleitoral, ou seja da corrupção sistémica da
qual o PT passou a ser não apenas “mais um” dos atores, mas “o”
principal articulador. Assim, ao passo que a pequena redução da
desigualdade produzida na primeira fase era processada como emergência
de uma “nova classe média” destinada a ser – no plano subjetivo - a base
do novo consenso e ao mesmo tempo – no plano objetivo – a destinatária
de políticas de reindustrialização, de megaobras e megaeventos e
construção de um Brasil Maior. Foi um festival de subsídios públicos aos global players: desde as grandes montadoras multinacionais até as grandes empreiteiras, passando pelo grande agronegócio.
Tudo isso alimentado pelo total envolvimento da Petrobras na exploração “nacional” das jazidas de petróleo em águas muito profundas (o pré-sal), pelas grandes obras (oriundas dos projetos megalomaníacos da ditadura) como as megabarragens hidrelétricas na Amazónia, o submarino e as centrais nucleares, os megaeventos
(Copa da FIFA e Olimpíadas como paradigmas). Não houve nenhuma
reindustrialização e os investimentos nas megaobras e megaeventos apenas
saturaram as metrópoles de todo o país e a “conta” chegou antes do Brasil se tornar Maior e a tal da “nova classe média” já foi para o espaço.
(3) Temos aqui uma implicação teórica importante sobre a razão dessa convergência do Brasil Maior neo-desenvolvimentista para as mesmíssima e até mais violentas políticas de austeridade. O que caracteriza os “limites” dos governos progressistas da América Latina não são os compromissos com o “extrativismo”.
Claro, o extrativismo é uma das características fundamentais do
capitalismo em todo o subcontinente e é com esses interesses “velhos”
que os governos que eram “novos” tiveram que negociar e se aliar. Mas
não é isso que define a especificidade das tentativas de políticas
econômicas. Pelo contrário, o esgotamento dos novos governos e a crise
vieram por como eles tentaram sair do extrativismo. No caso brasileiro
isso aparece claramente: ao invés de apostar na radicalização
democrática e nos processos, o PT e o Lula só acreditam – como a própria escolha da figura da Dilma
explicita – no Estado e no Grande Capital (os Global Players). Com
isso, não houve nenhuma ruptura do extrativismo e nenhuma aceleração da
mudança, mas apenas um aprofundamento da inserção nas dimensões mafiosas
do capitalismo contemporâneo
e de suas formas de controle do território e do Estado. As jazidas de
acumulação do capitalismo cognitivo no Brasil estão nas metrópoles e
dizem respeito à mobilização dos pobres como pobres: um trabalho do
pobre que não passa mais, previamente, pela relação salarial. Longe de
pensar em reconhecer – pela radicalização democrática – a potência
produtiva de novos valores, o PT de Lula e Dilma apenas se juntaram às
velhas e novas máfias pelas quais o capitalismo cognitivo captura a excedência produzida nos territórios. A máfia neodesenvolvimentista
(das grandes empreiteiras de obras públicas) foi se juntando à máfia
oligárquica do agronegócio e às difusas que controlam os territórios
produtivos das metrópoles, numa orgia improdutiva que só fez disparar a
inflação, aprofundar as desigualdades e segregações urbanas.
4 – Coalizões Sociais e Municipalismos Constituintes
A grande vitória de junho de 2013 está
nas lutas e nas práticas de coalizões sociais que no Brasil olham para o
Municipalismo Constituinte que se expressou com os êxitos eleitorais do
24M na Espanha.
As coalizões sociais já estão num devir-municipalista ao passo que os jovens governos municipais precisam continuar atravessados pelos agenciamentos das coalizões sociais. Os Ganemos nasceram como oportunidades de ensaiar nas eleições municipais o assalto institucional proposto por Podemos, mas também como inflexão significativa, para além de Podemos. O processo de construção de Podemos, com a Assembleia Constituinte de Vista Alegre (em novembro de 2014), tem cobrado um preço demasiadamente alto porque limita a polifonia e um estilo de fazer política que pressupõe uma cooperação de tipo distribuído. Em cidades como Barcelona, Madri ou Zaragoza o “efeito Podemos” tem se composto desde o inicio por iniciativas cidadãs que funcionam como pontos de atração e bifurcação do sistema-rede criado no 15M. O municipalismo, como o caso de Ahora Madrid demonstra, soma mais que Podemos: sem a tesão de Municipalia antes e logo depois de Ganemos Madrid, a vitória teria sido impossível, pois a radicalidade democrática que é o “código 15M” teria ficado dominado por relações de forças entre entidades fechadas e encasteladas.
As coalizões sociais já estão num devir-municipalista ao passo que os jovens governos municipais precisam continuar atravessados pelos agenciamentos das coalizões sociais. Os Ganemos nasceram como oportunidades de ensaiar nas eleições municipais o assalto institucional proposto por Podemos, mas também como inflexão significativa, para além de Podemos. O processo de construção de Podemos, com a Assembleia Constituinte de Vista Alegre (em novembro de 2014), tem cobrado um preço demasiadamente alto porque limita a polifonia e um estilo de fazer política que pressupõe uma cooperação de tipo distribuído. Em cidades como Barcelona, Madri ou Zaragoza o “efeito Podemos” tem se composto desde o inicio por iniciativas cidadãs que funcionam como pontos de atração e bifurcação do sistema-rede criado no 15M. O municipalismo, como o caso de Ahora Madrid demonstra, soma mais que Podemos: sem a tesão de Municipalia antes e logo depois de Ganemos Madrid, a vitória teria sido impossível, pois a radicalidade democrática que é o “código 15M” teria ficado dominado por relações de forças entre entidades fechadas e encasteladas.
No Rio de Janeiro, é o ponto de vista da luta dos Garis
do Rio de Janeiro que nos introduz diretamente no contexto desse devir.
A luta dos garis estourou em fevereiro de 2014 e foi talvez a maior
vitória do movimento de junho. Os garis se inspiraram diretamente nas
dinâmicas autônomas e horizontais de junho e suas reivindicações
reverberaram com potência nas redes e nas ruas. A luta foi rápida e
vitoriosa (com um aumento salarial de 37%) e contou com um amplo apoio
social, se tornando a referência de todo o ativismo. Mas, ao passo que o
ativismo foi extenuando-se numa espiral sem fim de atos e repressão, os
garis se embrenharam no êxodo para fora da escravidão
de suas condições de trabalho e em fevereiro de 2015 se apresentaram de
novo para a luta salarial (que conseguiu arrancar 8% de aumento já no
momento da política de austeridade) e apresentar uma chapa independente
contra o sindicato mafioso. A reposta da Prefeitura do Rio (ou seja do
PT e do PMDB) se faz ao longo de dois eixos complementares: por um lado,
uma repressão feroz; pelo outro, automação e terceirização. Do lado da
repressão, são centenas de demissões, incluídos os membros da chapa
autônoma que disputava a direção do sindicato mafioso, mais de 30 garis
sob inquérito policial por “organização criminosa” e várias ameaças de
todos os tipos. Do lado da automação, o Município do Rio passou a
implementar conteiners de coleta do lixo que permitem aos caminhões de
operar automaticamente (sem os garis pendurados atrás tendo que correr
feito loucos para manter as metas de produção) e a terceirizar o
trabalho dos motoristas bem como gestão do próprios caminhões. Ou seja, a
luta dos garis já conseguiu – em pouco menos de um ano – determinar
aquele processo de inovação que a condição
neo-escravagista na qual eram mantidos permitia de adiar. Ao mesmo
tempo, com todas as dificuldade que isso pode implicar, a prática dos
garis, com os círculos de cidadania, o trabalho nas
favelas, as conexões com as outras tentativas de construção de um
“sindicalismo social”, colocam os Garis na posição de aprofundar suas
lutas diretamente no terreno de saber quem é que tirará proveito dessa
modernização que eles mesmos determinaram: o capital e
suas máfias ou os garis como agentes ambientais de uma nova cidadania? A
“coalizão social” aparece aqui não apenas como o terreno necessário e
urgente para que a luta autônoma tenha condições de
entrar no terreno constituinte, da gestão da empresa de limpeza urbana,
da questão do ambiente e da saúde nas comunidades e favelas. A luta é
metropolitana e implica a construção de coalizões de trabalhadores e
moradores para que a modernização da coleta se traduza em melhoria das
condições de trabalho de garis que poderão, além de manter o emprego,
ser agentes de proteção ambiental nos territórios onde isso é mais
urgente. O Comum já é o terreno de luta autônoma dos garis que, não por acaso, se constituíram num Circulo de Cidadania, o Circulo Laranja.
No caso da Espanha, o êxito nas próximas
eleições gerais das confluências baseadas na transversalidade e na
radicalidade democrática, seguindo o exemplo de Ahora Madrid, Barcelona
en Comù, Zaragoza en Comù etc., significaria a mudança histórica do
sistema rede 15M em um sistema de ordem superior, capaz
de integrar o sistema político e representativo. Essa seria uma ruptura
constituinte, algo que é, em todos os casos, a chave da situação diante
da qual toda “autonomia do político” é um obstáculo para que a promessa
do 15M se realize: Democracia Real Ya.
O desprezo pela relação entre
singularidade e estrutura, entre dinâmicas nacionais e contextos
continentais ou entre exceção e ciclo poderia nos levar a privilegiar de
maneira narcisista ou voluntarista as experiência mais fortes ou mais
próximas, ou pensar em uma estratégia de proliferação linear. Se a
situação brasileira constitui uma perspectiva sobre a transição de fase
que vive todo o continente sul-americano, o caso espanhol é inseparável
da decomposição-mutação do subsistema europeu centrado na União Europeia
(UE) como consequência das políticas de austeridade e das opções
políticas e geoestratégicas subjacentes. A “germanofobia” não constitui
uma chave séria de esclarecimento do enigma democrático europeu. Com
efeito, lógica supostamente internacionalista dos opositores de esquerda
ao projeto da UE não foge da ontologia das nações como chave de
existência política do capital e também de seu contrário: o
povo-nação-soberano submetido a um direito político estrangeiro. Aqui, a
narrativa nacional-popular se mostra, tanto na Europa quanto na América
Latina, como uma gigantesca armadilha. A obsessão pela soberania
nacional apenas nos lembra o das andere Mal als Farce de Marx: os subsídios do governo do PT
à multinacionais automotivas são emblemáticos: quanto mais o discurso é
neo-soberanista, quanto mais a política real amplifica toda forma de
dependência.
As lutas são tão globais quanto os processos de acumulação e precisam de espaços adequados: como a União Europeia ou o Mercosul:
na Europa, se trata de conectar a defesa do sistema de proteção social
com as lutas dos subalternos e dos imigrantes e apátridas; na América do
Sul, a conquista de um sistema de proteção social já precisa – desde o
início – inventar uma nova esfera, juntando as lutas dos indígenas com o êxodo dos refugiados, passando pelas multidões dos pobres que vivem e produzem as metrópoles.
Na Europa e na América Latina, a
esquerda nos mostras que é incapaz de pensar além do Estado: seja ele
socialista ou neokeynesiano no regime discursivo, ele apenas serve para
conter as lutas no regime de fato. Entre os dois continentes, a urgência
é sair dessa dupla armadilha, ir para o êxodo da invenção de novas
institucionalidades.
O sistema mundo está se autodestruindo. Nesta situação, somente o terreno europeu e o terreno sul-americano permitem de continuar a luta por democracia real. A oposição entre guerra e democracia se coloca como principal antagonismo no sistema mundial. A UE está hoje rodeada de zonas de guerra. Na América do Sul, a guerra está dentro das fronteiras, no coração das grandes metrópoles. Nas fronteiras da UE, a guerra é contra os migrantes e os refugiados, tratados como animais desembestados e perigosos. Nas metrópoles e nas florestas sul-americanas a guerra é contra os pobres e contra os índios, mas também contra os refugiados e os imigrantes.
Deve haver um modo de nomear o inimigo e o adversário sem convoca-lo e realiza-lo como em uma profecia auto-confirmada. Deve haver um partido dos sem-partido. Nem o suposto realismo decisionista do populismo, nem as dialéticas negativas ou progressistas que acompanham a esquerda contem alguma chave para evitar a catástrofe do sistema mundial. É preciso passar do (inter)nacionalismo à democracia real dos subalternos, do resistencialismo cínico ao poder constituinte, da comunidade à constituição do comum. Temos que ser prudentes, mas poderosamente altermodernos e não-modernos.
O sistema mundo está se autodestruindo. Nesta situação, somente o terreno europeu e o terreno sul-americano permitem de continuar a luta por democracia real. A oposição entre guerra e democracia se coloca como principal antagonismo no sistema mundial. A UE está hoje rodeada de zonas de guerra. Na América do Sul, a guerra está dentro das fronteiras, no coração das grandes metrópoles. Nas fronteiras da UE, a guerra é contra os migrantes e os refugiados, tratados como animais desembestados e perigosos. Nas metrópoles e nas florestas sul-americanas a guerra é contra os pobres e contra os índios, mas também contra os refugiados e os imigrantes.
Deve haver um modo de nomear o inimigo e o adversário sem convoca-lo e realiza-lo como em uma profecia auto-confirmada. Deve haver um partido dos sem-partido. Nem o suposto realismo decisionista do populismo, nem as dialéticas negativas ou progressistas que acompanham a esquerda contem alguma chave para evitar a catástrofe do sistema mundial. É preciso passar do (inter)nacionalismo à democracia real dos subalternos, do resistencialismo cínico ao poder constituinte, da comunidade à constituição do comum. Temos que ser prudentes, mas poderosamente altermodernos e não-modernos.
Nota:
[1]
Elas fugiram na floresta Lacandona, nas ruas de Seattle e Genova,
gritando Que se Vayan Todos nas ruas de Buenos Aires, acampando na Praça
Tahrir e na Puerta del Sol, defendendo a vida em Gezi Park e
levantando-se contra as tarifas de transportes, megaeventos e mega-obras
nas florestas e nas metrópoles brasileiras.
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Fonte: IHU
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