PICICA: "Organizarei o meu discurso a partir de três pontos fundamentais. Vou
tentar em, primeiro lugar, definir a convenção financeira que hoje nos
domina e como ela tem transformado a relação que existe entre o público e
o privado. Em segundo lugar, buscarei analisar como o privado e o
público foram estabelecidos na constituição italiana de 1948, mas,
sobretudo, como eles se apresentam hoje na farsa da constituição
europeia. Finalmente, vou tentar entender como, em nome do comum,
poderíamos fraturar a convenção constitucional que nos mantém presos,
opondo dispositivos antagonistas ao exercício do poder financeiro e
construindo uma “moeda comum”. Em suma, o que poderia significar, por
dentro e contra a atual convenção financeira europeia, prosseguir com a
construção do comum?"
A propósito da constituição e do capital financeiro
Antonio Negri [i]
Organizarei o meu discurso a partir de três pontos fundamentais. Vou tentar em, primeiro lugar, definir a convenção financeira que hoje nos domina e como ela tem transformado a relação que existe entre o público e o privado. Em segundo lugar, buscarei analisar como o privado e o público foram estabelecidos na constituição italiana de 1948, mas, sobretudo, como eles se apresentam hoje na farsa da constituição europeia. Finalmente, vou tentar entender como, em nome do comum, poderíamos fraturar a convenção constitucional que nos mantém presos, opondo dispositivos antagonistas ao exercício do poder financeiro e construindo uma “moeda comum”. Em suma, o que poderia significar, por dentro e contra a atual convenção financeira europeia, prosseguir com a construção do comum?
1.1
A convenção coletiva que hoje domina a relação constitucional é uma convenção financeira. Onde antes se estabeleceu o valor-trabalho como um norma reguladora e de medida da atividade social e produtiva, agora elegeu-se a regra financeira.
Analisemos, então, a relação entre capital financeiro e constituição material. O capital financeiro, na situação atual, se coloca como a autoridade que confere legitimidade à constituição efetiva da sociedade pós-industrial. Se na época fordista, a constituição organizava a sociedade sobre a base do valor-trabalho como medida, e esse era o esquema de organização da sociedade industrial, agora, substitui-se aquele padrão por uma medida financeira. Disso resultou algumas consequências. Enquanto a medida-trabalho, na constituição fordista, se apresentava de forma rígida e relativamente estável, diretamente dependente da relação de força entre as classes (tal foi a condição de toda constituição no “breve século XX”), a convenção financeira, quando se materializa na forma constitucional, quando encarna de maneira hegemônica a relação político capitalista, se apresenta como um poder independente e excedente. O trabalho de André Orléan e Cristian Marazzi insistiu oportunamente sobre esse tipo de evento institucional. Trata-se de uma independência que, do ponto de vista do valor, consolida e estabelece uma “marca proprietária” (em termos de “propriedade privada”: veja sobretudo Leo Specht), mas que, contemporaneamente, se apresenta também como “crise”, como “excedência”, não simplesmente quanto às velhas e estáticas determinações do valor-trabalho, mas sobretudo em referência àquela “antecipação” e àquele “incremento” contínuo que lhes são inerentes no confronto com a captação financeira do valor socialmente produzido e em sua atuação numa extensão a nível global. Assim, a convenção financeira se apresenta, institucionalmente, como governança global, porque a crise é permanente, enquanto orgânica ao regime do capital financeiro. Aliás, seria melhor falar, nessa condição, de variações de fases do business cycle, antes que propriamente de crise.
Então, fica claro que, nessa nova configuração da regra constitucional, permanece a base material da lei do valor: não mais o trabalho individual que se torna abstrato, mas o trabalho imediatamente social, comum, diretamente explorado pelo capital. A norma financeira pode surgir de maneira hegemônica porque, no novo modo de produção, o comum emerge como potência eminente, como substância das relações de produção, e que vai cada vez mais invadindo cada espaço social como uma norma de valorização. O capital financeiro persegue esse caminho do comum, tenta antecipá-lo, persegue o lucro e o antecipa como renda financeira. Bem disse Harribey, discutindo com Orléan, que o valor não se apresenta mais aqui em termos substanciais, mas como uma simples contabilidade fantasmagórica: é o sinal de um comum produtivo, mistificado, mas produtivo, que se desenvolve sempre mais intensiva e extensivamente.
Vamos ao ponto que interessa. Por um lado, podemos destacar que, na sociedade contemporânea, nos processos de subsunção da sociedade ao capital, o valor de uso e o valor de troca se sobrepõem. De outro, adverte-se que o trabalho abstrato não se diferencia do trabalho concreto somente por representar a abstração da forma concreta do trabalho: essa seria, por assim dizer, uma diferença puramente epistemológica. A verdadeira diferença – aquela positiva – consiste no fato de que, no trabalho abstrato, igualam-se todas as formas de trabalho, e isso ocorre no âmbito de uma troca multilateral e cooperativa de atividades singulares produtivas.
Desta base emergem duas consequências:
A primeira é que a subsunção da vida, quando se apresenta como comando sobre as atividades produtivas através do meio das finanças, encarna um biopoder, ou seja, a capacidade de explorar, de extrair mais-valia, de acumular sobre a totalidade da vida social. O dinheiro, o produto financeiro e o banco se tornam meios de produção, não como uma força produtiva, mas como instrumento de extorsão de mais-valia (por exemplo, hoje na França todos os recursos arrecadados no imposto de renda servem para pagar os juros e o custo geral da dívida).
A segunda consequência é que o valor se apresenta no mercado, não tanto como substância, não tanto como mera quantidade de mercadorias, mas como um conjunto de atividades e serviços, cada vez mais cooperativos, sendo a vida subsumida pelo poder na sua totalidade e em toda a sua expressão singular. Em resumo, as relações de produção colocam em contradição os mercados e/ou as finanças, de um lado, e o comum produtivo, de outro.
1.2
A partir dos anos 90 – depois da longa crise iniciada nos anos 70 com a demolição do padrão de Bretton Woods – determina-se, então, de maneira sempre menos caótica, um novo padrão global que substitui aquele trabalhista.
Duas condições permitiram essa mudança. A primeira é a realização da globalização: é no confronto com a globalização que a convenção fordista cede um elemento central da sua legitimidade e de sua função, a saber: a base soberana do Estado-nação. A convenção monetária é subtraída do Estado-nação e conduzida a um padrão global. O débito público é subtraído da regulação soberana (conjuntamente pelo capital e pelos Estados-nação individuais) e sobreposto aos mecanismos de valor determinados, no mercado global, pelos detentores do capital financeiro. A concorrência entre esses atores se faz cada vez mais solidariamente em sua relação de confronto com os explorados.
A segunda condição consiste no fato de que, com a crise da soberania (nacional), o público é substancialmente patrimonializado de maneira privada, antes mesmo de o ser juridicamente. Quero dizer que a finalidade da acumulação é dobrada (escamoteada) nas regras de apropriação privada direta de todos os bens públicos.
Nessa situação, a função de mediação entre os interesses de classe que o poder e a propriedade pública (a partir dos anos 30) exercitavam (e aqui deve ser destacado até que ponto a representação política democrática não se confunde com aquela função de mediação) é profundamente debilitada, quando não esgotada inteiramente (a representação política é debilitada tanto quanto à propriedade pública, pois depois de inserida na globalização e no processo de esvaziamento da soberania, ela não é mais exercida pelo governo ou pela posse do público).
À procura de novas convenções, as bolhas se sucedem (a da new economics, asiática, argentina etc.). “Os mercados, por assim dizer, enlouquecem” – notam Marrazi e Orléan – “mas isso é totalmente coerente com o princípio da concorrência aplicado às finanças”. Assim, de fato, um bem não é procurado porque é raro, mas, paradoxalmente, sempre mais procurado quanto mais é requerido (abundante). Disso resulta que a crise não ocorre “porque as regras do jogo financeiro foram violadas, mas pelo fato de terem sido seguidas”.
A crise, em outras palavras, é endógena. Ela depende exclusivamente da desregulação dos mercados de capitais e da privatização crescente dos bens públicos. Cada valor de uso é, assim, transformado em ativos (títulos) financeiros sujeitos à especulação. A subsunção real da sociedade no capital funciona através da financeirização. “Nesse processo, a financeirização impôs a sua lógica ao mundo inteiro, fazendo da crise o fundamento de seu próprio modo de funcionar. É um processo de inclusão da cooperação, do mundo cognitivo e social, e, depois, de exclusão, isto é, de extensão do modo capitalista de produção a mercados pré-capitalistas, e de sucessiva expulsão e pauperização daqueles que, nesse processo, foram privados do acesso aos bens comuns. Uma espécie de reedição contínua da acumulação primitiva, de cercamento das terras (bens) comuns e de proletarização de uma massa crescente de cidadãos”.
Dizendo de forma mais clara:
- O dispositivo constitucional na maturidade capitalista subordina à abstração financeira do processo de valorização a força de trabalho viva como sociedade cognitiva e cooperativa. A biopotência do comum é totalmente submetida ao fetichismo da convenção financeira;
- O dispositivo constitucional capitalista deseja dar medida, estabelecer uma base regulamentar interna das crises, ou seja, é no terreno onde encontramos a ruptura da relação keynesiano-fordista que se exige novos acordos de medida. Valor-medida? Naturalmente, como já vimos, essa medida não é aqui algo substancial; é, antes, uma “convenção política”, de tempos em tempos determinada. Ou melhor: se em sua base não há um valor substancial, todavia, o que marca a convenção “capitalista” (que se adequada à atual organização do trabalho social para extrair o lucro ou para acumular uma renda financeira) é algo como uma medida, uma medida de classe, um dispositivo de poder. Vale a pena aqui recordar que Marx sempre definiu o valor subordinando-o à mais-valia. Ora, essa medida ainda está fundada sobre a relação entre tempo necessário e excedente de tempo não pago – naturalmente, mas somente na medida em que essa relação social é considerada globalmente e, assim, na tensão deste esforço indefinido, na tendência de aproximação de um limite absoluto. Nesse amontoado de bonecas russas, consiste também a permanência da crise;
- Para fixar essa medida política, o poder constitucional capitalista (e a convenção que o rege) deve construir uma nova forma de governo: a governance. Ela não age principalmente como um “poder de exceção”, mas como um governo atrelado a uma “emergência contínua” (uma exceção distribuída sobre o tempo que revela, negativamente, uma contínua instabilidade; positivamente, uma captação imprevisível da excedência, dos saltos, das desmedidas, etc.) dentro de uma temporalidade fraturada, uma “desatualidade” permanente.
Disso se segue que uma reflexão “constitucional” hoje pressupõe também colocar em discussão e repensar a linguagem e as práticas dos movimentos a partir das quais havíamos embasado, até agora, a nossa reflexão. Se trata de identificar os instrumentos “através dos quais pode-se impor ao capital financeiro uma nova relação de força”.
2.1
Voltemo-nos para a constituição italiana, para aquele art. 1º – “a república é fundada sobre o trabalho” – que desde a infância nos tem atormentado (ou nos provocado risadas). Recordamos simplesmente que o operaísmo nasce da declaração de que, naquela fórmula, em continuidade com o estatismo intervencionista dos anos 30, era fixada a convenção keynesiano-fordista como norma da exploração operária e de regulação política de uma sociedade em que – na melhor das hipóteses – o público era totalmente funcional à reprodução alargada do capital. A constituição de 1948 promove uma sociedade capitalista em termos reformistas: depois da União Soviética ter derrotado os exércitos do fascismo europeu, só a via do reformismo seria permitida aos capitalistas. Nessas condições, compreende-se como, na luta de classes, pode ser exercida a pressão dos proletariados sobre o salário operário, como instrumento de democracia, a ser praticada dentro e contra a produtividade do sistema: esse processo aumenta a renda (direta e indireta) da classe operária e da sociedade do trabalho.
Nesse quadro, o público se define como uma função de mediação da relação social capitalista, ou da luta de classes – e é em torno dessa função que se coagula e toma forma a representação política burguesa (nesse caso, italiana). Como se sabe, a constituição italiana nunca foi completamente realizada. Mesmo que fosse, não seria, de qualquer forma, constitutiva daquele mundo de maravilhas que nos descreviam a respeito do socialismo. Não querendo confundi-la com o espírito da Resistência e da Constituinte republicana, M.S. Giannini salientava, já nos anos 60, que pensar que o espírito da Constituinte se mantinha vivo significava desrespeitar ou enganar os cidadãos. Porém, a constituição de 48 foi rapidamente “homologada”, isto é, adaptada ao desenvolvimento incremental do capitalismo italiano, através da ação de regulação do Estado, como representante do capital social, isto é, como mediador da luta de classes. E, quando chegamos à crise dos anos 70 e as reformas capitalistas dos anos 80, inicia-se aquele processo reacionário de restruturação geral do sistema, no qual vivemos agora.
O que aconteceu naquele momento? As lutas operárias do centro do império e a luta de liberação do domínio colonial haviam quebrado a possibilidade da regulação fordista. O capital assume o desafio e promove o biocapitalismo na forma financeira. E não foi preciso recorrer a Foucault para que, já nos anos 60, tivéssemos começado a falar de trabalho social e de exploração do bios na definição das novas figuras de regulação capitalista, no contexto e depois dos tremores de 68. Nós nos referimos simplesmente ao fato de que, na repetição da crise fiscal da regulação pública, o capital havia começado a recorrer aos fundos de pensão e ao seguro social para reorganizar suas contas. O que tinha acontecido? Diante das transformações que as lutas da classe operária determinaram por dentro do sistema industrial, em face dos efeitos mortais da “recusa do trabalho” fordista e em relação à pressão biopolítica do trabalho social, diante da crise do Estado-plano, a resposta capitalista se deu pela retomada do controle político do lado externo do sistema industrial e a determinação da hegemonia política da esfera monetária sobre o conjunto da produção social. A crise fiscal de Nova York está no início deste ciclo político. E o retrata exemplarmente.
É preciso ter muita atenção a essa passagem (de outras formas, Marazzi, Offe, O’Connor, Aglietta e outros, já haviam apontado para o caráter social da mesma inflexão), porque aqui não se verifica somente a destituição do público da sua função de mediador da exploração (em benefício dos chamados “mercados”), mas começa a se desenvolver uma nova figura da exploração – a exploração direta do bios, a exaltação do welfare como base de valorização financeira. Trata-se do mundo de produção da saúde, do seguro da infância e da velhice, da instrução, da educação etc., o mundo no qual a “produção de homem pelo homem” se torna matéria-prima, ou melhor, o sangue que circula no sistema arterial do capital financeiro global. O mundo do trabalho é explorado enquanto bios, não somente enquanto “força de trabalho”, mas enquanto “força vivente”, não somente enquanto máquina de produção, mas enquanto corpo comum da sociedade trabalhadora.
Então, isso é o que acontece com o público no desenvolvimento destas práticas de exploração e da consequente valorização que a nova constituição europeia impõe através do chamado “governo técnico”. Depois de haver personificado a mediação do poder capitalista, na sua luta contra a classe operária e os produtores sociais, depois de ser o instrumento através do qual, diante da impossibilidade de empurrar a rigidez dos salários para baixo e de recuperar através da inflação as vantagens relativas de renda da sociedade operária… aqui encontramos, então, o público, que em nome do capital, começou a saquear os fundos de pensão, a esvaziar o Welfare state de seu senso emancipatório, a nutrir-se diretamente do comum produtivo. Tudo isso acontece através dos novos regimes monetários que são impostos aos cidadãos europeus. Na moeda europeia, o público é totalmente “assujeitado”, violentado pelo privado.
2.2
Se considerarmos muito rapidamente como se configura juridicamente o público na constituição europeia, estaríamos obviamente de frente a uma espécie de codificação do quão longe nós chegamos até aqui, definindo o processo como o novo ordenamento do biopoder capitalista.
Agora, quando se fala de constituição europeia, fala-se essencialmente de economic governance, e quando se fala de economic governance, frequentemente se menciona o conceito alemão de Ordo-liberalismus (disseram-nos que essa menção é encontrada até mesmo nos documentos oficiais). Ou seja, uma autoritária “economia social de mercado” que, não por caso, sob a pressão do mercado, perdeu qualquer dimensão social e reformista para exaltar, em nível máximo, a sua dimensão autoritária e ordenadora. Produto de uma escola que, assumindo distintas – e muitas vezes inquietantes – figuras públicas, estende-se e se transforma da década de 20 até hoje: ela domina continuamente os atuais processos constituintes europeus.
A estabilidade dos preços, a regulação repressiva de cada déficit orçamentário inadequado, a união monetária separada da união política, tornam-se os princípios que devem ser seguidos – com consequências dissolutivas de todo o tipo de regra formal democrática. O controle e a supervisão burocrática dos orçamentos são, em verdade, desprovidos de legitimação democrática (não somente das instituições nacionais, mas também das comunitárias); os remédios regulatórios são de tempos em tempos individualizados, para além de cada norma geral – a dimensão de justiça da ação comunitária é completamente esvaziada; por fim, em terceiro, as políticas europeias de regulação social, aquelas com características distributivas e compensatórias, resultam efetivamente dissolvidas. Para citar Jörges, na crise, a Europa é direcionada de uma construção jurídica para uma constituição autoritária e de um déficit de democracia a um default democrático.
Mas, uma vez fixado a temível face desta nova constituição do público, vamos ficar fascinados e presos no seu gorgonesco[ii] sorriso? Claro que não. Novamente, voltamos ao nível da composição material da multidão europeia, sobre a pergunta se podemos ou não considerá-la como classe. Ora, a separação entre ordenamento econômico do poder e estruturação social das classes trabalhadoras, o primeiro centralizado na constituição europeia, a segunda deixada a cada Estado-parte, não revela somente uma crise democrática profunda; ela produz – retomando novamente Jörges – uma espécie de big bang, revelando paradoxalmente aquilo que se queria esconder.
E o que aparece nessa revelação? A atribuição do desenvolvimento constitucional europeu a um poder monetário democraticamente incontrolável, a liberação de um biopoder tecnicamente independente e economicamente excedente com relação à miséria social que se impõe, a construção de um mecanismo regulado subtraído a cada balanceamento que não seja aquele de uma austeridade social insuportável – bem, tudo isso demonstra somente que o “novo” poder público encarnado na MES (“mecanismo europeo di stabilità”) e na TSCG (“trattato per la stabilità, il coordinamento e la governance”[iii]) representa uma assustadora máquina de acumulação privatística originária contra aquele tecido comum de cooperação social e aquele substrato de atividades produtivas comuns que a luta de classes e os levantes sociais tinham, até o momento, construído.
E se é verdade que esse processo destrói toda a possibilidade de uma política nacional mais ou menos democrática (já vimos como, no entanto, o “menos” prevalece); se é verdade que ele não ajuda a determinar as novas potências comunitárias – é, entretanto, verdade, também, que no processo de unificação em ato, paradoxalmente, a aplicação da golden rule destaca, ou melhor, traz à tona com força, uma nova consistência multitudinária, efetivamente resistente e virtualmente antagonista… para governar! Mas não será fácil governar esse proletariado que, na cooperação e na produção, pode organizar sua própria autonomia comum.
3.1
Como poderíamos romper, do ponto de vista dos trabalhadores e utilizando a força do comum (ou seja, da luta de classes), a convenção financeira (constitucional) que ora nos domina? Para tentar avançar nesse terreno, recordamos algumas definições e, antes de tudo, alguns pressupostos de nossa análise.
O capital financeiro é capital, tout court, então, não é uma realidade parasitária, nem simplesmente um conjunto de instrumentos de contabilidade; ele é, na verdade, uma figura de capital em sentido pleno, da mesma forma como o é o Estado e continuará a ser o capital industrial, e como foram outras figuras patronais, historicamente determinadas ou/e eliminadas no desenvolvimento da luta de classes. Uma relação social: mas entre quem?
Para compreendê-la precisamos definir com o máximo de precisão a posição assumida pelo “capital constante” com relação ao “capital variável”, ou seja, o comando capitalista com respeito à força de trabalho; e percorrer a forma atual do processo de submissão do segundo por parte do primeiro. Agora, esse processo de submissão – por ser “real”, isto é, total – é novo e singular. Na passagem que analisamos, a força de trabalho se reapropria de fato – enquanto força de trabalho cooperativa e cognitiva – de parte (fragmentos, atributos, formas etc.) do “capital fixo”.
Se por “capital constante” entendemos o conjunto de condições produtivas nas mãos do capital; se por “capital variável”, o conjunto de valores transferidos aos trabalhadores para se reproduzirem; e se por “capital fixo” entendemos a máquina e a estrutura disponibilizadas para o processo produtivo – podemos agora reconhecer (na passagem que analisamos) que a força de trabalho, longe de funcionar simplesmente como capital variável, veio se apropriando, melhor, incorporando uma parte do capital fixo. Ela se coloca assim em uma situação de virtual (relativa, mas potencial) estranheza a respeito do comando, isto é, da síntese capitalista. Se acrescentarmos à revelação da subtração e da incorporação de parte do capital fixo por parte da multidão trabalhadora os episódios ou os acontecimentos de reapropriação do “capital circulante” (na figura, por exemplo, da força de trabalho migrante), então a situação pode trazer, agora, um novo e positivo limiar crítico.
É nessa condição modificada que se realiza, prima facie, a subsunção do trabalho vivo ao capital constante, isto é, ao capital financeiro (o comando capitalista), como figura principal que hoje se apresenta. E se então a composição técnica da força de trabalho tornou-se muito rígida, havendo absorvido parte do capital fixo e circulante, se, por conseguinte, a síntese capitalista deve comandar essa composição (isto é, produzir flexibilidade, ou melhor, fragmentar, fazer falhar essa rigidez), o comando capitalista, portanto, não poderá atuar verticalizando-se a respeito do plano da produção, externalizando e exaltando (por assim dizer) o momento “político” do seu comando sobre qualquer outro elemento (ideologia, funcionalidade etc.). O capital financeiro corresponde a essas características e executa essa tarefa.
Pois bem, essa figura abstrata do comando capitalista está submetida a uma grande tensão – e, provavelmente, a uma contradição –, o fato de que hoje o processo de valorização, e, portanto, os processos de exploração do trabalho vivo, devem se tornar cada vez mais internos àqueles corpos que expressam diretamente funções produtivas e, na cooperação social, exercitam funções organizativas de produção. Tudo isso comporta, por sua vez, o investimento global da vida por parte do capital: o capital torna-se biopolítico. Mas há aqui uma contradição fundamental: de um lado, o capital exige uma completa interiorização do capital variável no processo de valorização (como estamos descrevendo até agora); de outro, em função do comando, temos uma forte, se não completa, abstração do capital constante (na forma financeira) pelo capital variável (enquanto trabalho vivo social e enquanto trabalho cognitivo irredutível – ao menos em parte – ao tornar-se mercadoria). Portanto, o capital financeiro parece interpretar a relação social que constitui o conceito do capital como uma relação eminentemente política.
Então, como vimos, na convenção do capital financeiro, o dinheiro assume o lugar do valor-trabalho. Na “relação política” que constitui o capital financeiro, a convenção de valor é monetária. A convenção monetária substitui o lugar da convenção valor-trabalho (isto é, representa uma nova figura de ultrapassagem da “lei do valor” interpretada exatamente na fase de exploração industrial do trabalho, à maneira individualista, fabricista e salarial). A convenção atual é, ao revés, singularizada, socializada e tornada dívida. Ao contrário do que se passava no keynesianismo, ela define a parte salarial como um resíduo da unidade monetária de qual o trabalho abstrato é o equivalente.
Como mover-se nesse novo terreno? Temos (as vezes cansativamente) repetido que a procura por uma nova constitucionalização do trabalho constitui uma tentativa completamente abstrata de reproposição da mediação publicista clássica, e temos concluído (citando o texto de Giso Amendola, “Constituição precária”) que “hoje o senso da constitucionalização possível reside na liberação, com relação à própria ideia de constituição, da sua mediação original de caráter público-soberanista e na compreensão de que a oposição aos processos de desconstitucionalização deve significar uma luta por aberturas contínuas de processos constituintes, lá onde a governance tende a neutralizá-las e a fechá-las através dos canais de expressão constituídos. Pode-se dizer, provocativamente, mas não tanto, que a subjetividade ‘precária’ – mais que a defesa da constituição enquanto tal – tem todo interesse em uma ‘precarização’ da própria constituição, isto é, para torná-la aberta ao desenvolvimento contínuo do processo de auto-organização”.
O novo terreno de luta constituinte, portanto, sobre o qual se luta, é aquele da governamentalidade. Que essa “não exclua o direito, mas antes o atravesse, provocando nele uma progressiva descentralização e flexibilização e, ao mesmo tempo, redefinindo sua tradicional pretensão de autonomia com relação a outras ciências sociais”, parece-me o ponto sobre o qual insistir. Basta refutar, aludindo a governance, a ilusão de que aí se possa dar uma espécie de “dualismo do poder” que estabeleça uma tensão até a explosão do processo constituinte. Não, não estamos seguramente em uma situação insurrecional, as lutas bolcheviques não são reeditáveis pois não estamos lidando com um dualismo simétrico de poderes em luta; estamos lidando, em vez disso, com a assimetria potente da nova figura da força de trabalho cognitiva – a sua “rica pobreza” – que é confrontada, é claro, com o domínio do patrão, do capital constante, mas não é induzida a precipitar no choque, uma vez que ela é, ao mesmo tempo, irredutivelmente resistente, rígida também na precariedade, tendo incorporado a parte de capital fixo e circulante.
Então chegamos ao verdadeiro problema, liberando-nos de cada pressuposto catastrófico ou palingenésico: o que significa assumir os processos constituintes (a partir da sempre nova produção de subjetividade e da incorporação da parte do capital fixo), não como algo conclusivo mas coessencial a um novo processo constitucional? Claro, uma nova constitucionalização do trabalho parece ser uma ideia antes de tudo reacionária, pura nostalgia da mediação público-soberanista, mas novamente: o que significa um processo constituinte que ocorra no reconhecimento da fragmentação, do pluralismo multitudinário do trabalho e da sociedade? O que significa constituir um “nós” comum em uma realidade social na qual cada identidade é dissolvida e na qual cada recomposição não pode ser, senão, “constituinte”?
Nesse ponto, se me permitem, gostaria de insistir, novamente, sobre a extraordinária oportunidade que a convenção constitucional monetária, imposta pelo capital, nos oferece: a de revelar imediatamente que o antagonismo anticapitalista não se refere a limitadas partes da força de trabalho social (ao trabalho vivo considerado de uma maneira individualista, localizada e salarial), mas o reconhece como multidão, portanto, como uma realidade singularizada, social, em uma relação de dependência (isto é, endividada), mas que, todavia, pode encontrar-se na reapropriação da riqueza, através do reconhecimento e da construção do comum. Realidade multitudinária: sem dúvida, em débito, submetida à alienação midiática, invadida pelas paixões tristes da insegurança, impedida pela desgosto e pela impotência política da representação democrática – mas também com desejo de expressar uma forte vontade de luta. O movimento dos “indignados” e aquele do “occupy” têm avançado amplamente na configuração desses comportamentos constituintes. Os movimentos italianos sobre os “bens comuns” são ativos sobre esse terreno. Aquilo que agora é essencial é assumirmos a dimensão “constituinte” para romper com todo e qualquer momento “corporativo”, identitário e/ou localístico de luta. Não queremos negar que cada momento de luta esteja ligado a interesses e/ou a lugares específicos, mas a luta hoje só existe se for construída contra a universal imagem do domínio financeiro. Nós nunca fomos ludistas no confronto contra o maquinário, mas antes sabotadores da exploração que advém da organização do trabalho, pois hoje não quebramos os caixas eletrônicos, mas sabotamos o sistema de domínio financeiro porque queremos constitucionalizá-lo – isto é, apropriar-nos – dos bancos, do poder que, através da moeda, organiza e premia, separa e domina, capta e tolhe o valor produzido pelos trabalhadores, autônomos e comuns.
3.2
Autonomamente e comumente.
Em relação ao “autonomamente”, expliquemos imediatamente. É nesse ponto de fato que o nosso proceder se entrelaça com aquele de analistas que, na revolução pós-60 dos saberes, começaram a reconhecer uma nova ontologia comum da sociedade e do direito. Em particular, como na década de 70, Claus Offe e seus companheiros, e, da mesma forma, hoje Teubner e a sua escola nos ajudam a compreender (com a teoria do Societal Constitucionalism), como a modernidade (ou a pós-modernidade) capitalista mostra atualmente uma insustentável tensão insuportável contra o domínio de estéreis alternativas entre a centralidade do público (estatal) e a instituições da propriedade privada – quando agora a subjetividade não aparece mais em cena como indivíduos autoreflexivos, mas antes como redes de eventos sociais. São novas formas de autopoiesis do coletivo, que através dos conflitos sociais, pedem o fim dos excessos da propriedade privada e propõem novos procedimentos de institucionalidade política e de processualidade social em diferentes setores da sociedade [sobre essas questões, outros companheiros poderão intervir].
Nós vamos tratar do outro termo posto na epígrafe: “comumente”. Também aqui é preciso uma explicação. Se há alguma coisa para ser conquistada para transformarmos de maneira verdadeira esta sociedade, esta coisa é o comum. E o comum não é uma totalidade, mas um conceito parcial – contrapõe-se ao privado e desmistifica o público. Se ele se apresenta como totalidade é porque o comando capitalista o apreende e o organiza na independência do Banco Central, subtraindo a democracia dos 99%.
Por outro lado, quando não assumimos mais o comum como a “parte ruim” da gratuidade, mas como uma tarefa a ser desenvolvida, uma espécie de dispositivo a realizar, o opomos ao privado e ao público, e, antes de tudo, começamos com a denúncia do fetichismo do dinheiro, porque reconhecemos que nesta convenção capitalista da instituição social encontramos o símbolo e o veículo da violência. Enquanto isso, a espectralidade das instituições financeiras cobre e mistifica um “algo comum” que não é mais simplesmente uma força de trabalho global da sociedade (fixada como valor objetivo nas mercadorias), mas um conjunto múltiplo de atividade cooperativa, criativa, excedente [e – aqui subentendida – não mais o “povo”, mas a “multidão” global]. Então – no projeto que emana desta potência, no sujeito que a encarna – surge o desejo de colocar a mão no vespeiro representado pela relação entre produção e finanças, lutando contra o empobrecimento daqueles que, ao produzir em cooperação social, são privados do produto comum – também e sobretudo daqueles (o Welfare, o bem-estar complementar) que são jogados na miséria.
A questão do Banco Central e do sistema de crédito é, assim, central do ponto de vista constitucional. O dinheiro tornou-se a medida constitucional dos direitos do cidadão e de cada decisão política – em nome do caráter absoluto do dinheiro e da sua função reguladora –, foram, assim, expropriadas pelo Banco Central. Essa, de fato, tornou-se não somente o depósito político do valor, mas o lugar de onde emerge a questão da relação de forças entre as classes que compõem a sociedade, quando a substância do valor é entendida como um tecido de relações sociais.
O dispositivo utópico que orienta a nossa prática subversiva consiste em impor uma convenção constitucional que funde e interprete uma “moeda do comum”. A moeda é sempre uma instituição social que acompanha as trocas, e todo valor social pode ser expresso em forma monetária. Se o banco produz moeda e se hoje ela é produzida como meio de produção, a democracia, o comando dos 99% deve se apossar da regra de emissão monetária e dobrá-la na direção da relação social através da qual, hoje, a forma do comum qualifica a cooperação produtiva.
A constituição consiste, em geral, na articulação da relação entre trabalho e intercâmbio, na apreensão da circulação entre atividades e necessidades, subordinando-as às necessidades das relações produtivas comuns e às funções sociais que delas derivam. Apenas se trabalharmos por dentro deste programa poderemos restituir à força de trabalho social, ao esforço e à invenção das singularidades que compõem a multidão, o produto do comum. Assim, poderemos realizar a nossa utopia que consiste em nos desligar do trabalho sob as bases da mais-valia, da escravidão da exploração capitalista, das determinações corporativas da sindicalização do trabalho – colocando, assim, a atividade humana como medida da liberdade e da igualdade da produção, no horizonte global, do comum.
3.3
Mas tudo isso é apenas uma utopia. Por outro lado, a capacidade de romper sobre a qual insistimos, é o produto imediato de nossa indignação. É possível construir uma estratégia constituinte que realisticamente componha a indignação e o desejo utópico? Quais dispositivos políticos podemos realisticamente colocar em ação para definir uma estratégia constituinte?
Ou melhor, talvez, para tomar o poder? Muito frequentemente lembramos nós mesmos que não há um Palácio de Inverno a ser conquistado. Repetimos isso corretamente para não confundir o conceito de revolução com aquele de ditadura, a ideia de democracia com aquela de um Uno soberano. Às vezes, tivemos que suprimir a oportunidade da primeira para evitar a consequência do segundo. O século XX nos impusera. Ora, mas agora estamos no século XXI. O que significa construir esse “nós – potência constituinte –, força do comum”, visto como um realístico ponto de partida das lutas, antes e contra a unidade constitucional do dinheiro, por dentro da nova subjetivação comum do trabalho abstrato?
Ora, eu penso que se trata de mover-se evitando certamente esse caminho utópico e, ao fim, trágico que era o do “breve século XXI”. Mas não por isso, deveríamos renunciar a um discurso institucional que não teria medo de tocar, de se apropriar, através de uma experiência militante, do elemento universalista da revolução passada e da atual experiência insurrecional dentro e contra a democracia capitalista. Por exemplo: o objetivo da renda incondicionalmente garantida se apropria claramente de um momento universalista e interpreta ao mesmo tempo uma instância constituinte, adequada às novas formas de produção das mercadorias e da nova composição social da subjetividade produtiva. Mas como do parto da montanha nasceu um pequeno ratinho[iv], ironiza-se! Isso significa não compreender como a renda universal e incondicional é um reconhecimento implícito de um sujeito produtivo comum.
Outro exemplo: há um Zeitgeist que em todo o Ocidente (mas não somente nele) desacredita os partidos políticos, nega a sua representatividade, denuncia o crescente efeito de alienação que se segue às denúncias de corrupção do poder e da correlata impotência dos súditos. É claro que aqui, através da crítica da figura publicista do partido político, contesta-se novamente “o público” – isto é, a função de “representação política” e a sua pretensão de não ser mais dependente da propriedade privada, a sua ilusão de constituir um instrumento de decisão democrática. Ora, retomando o tema sobre a síntese de experiências subversivas atuais e dos protestos universalistas, pode-se concluir que somente o reconhecimento e a prática do comum, como base produtiva e como objetivo da produção, como vida produtiva e busca da felicidade, dispostas em conjunto, podem, hoje, fundar verdadeiramente a democracia. Portanto, o que seria o desejo constituinte se não a pulsão de iniciar a construção de estruturas comuns que nos permitam reconhecer juridicamente ações de expropriação do privado, que legitimem instrumentos de apropriação do público e que nos permitam reconquistar a capacidade de decidir juntos – e de organizar, assim, com instituições adequadas, a força de trabalho e a inteligência comum das multidões?
[i] Intervenção em um seminário da Uninômade, ocorrido em Roma, no dia 26 de outubro de 2012. Tradução de Luiz Felipe Teves e Alexandre F. Mendes. Originalmente publicado em: http://www.uninomade.org/costituzione-e-capitale-finanziario/ Acesso no dia 15 de setembro de 2015.
[ii] [N.T.] Segundo a Wikipedia: “A Górgona (em grego clássico: Γοργών/Γοργώ; transl.: Gorgón/Gorgó) é uma criatura da mitologia grega, representada como um monstro feroz, de aspecto feminino, e com grandes presas. Tinha o poder de transformar todos que olhassem para ela em pedra, o que fazia que, muitas vezes, imagens suas fossem utilizadas como uma forma de amuleto. A górgona também vestia um cinto de serpentes entrelaçadas”. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/G%C3%B3rgona. Acesso em 15 de setembro de 2015.
[iii] [N.T] Ambos no original.
[iv] [N.T] Expressão idiomática cuja origem remonta ao poeta romano Horácio que, em sua Ars poetica (20 a.C.), utilizou-a para referir-se aos escritores que prometem grandes obras e depois atingem um resultado decepcionante.
Fonte: UniNômade
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