setembro 29, 2015

Big Jato, Quintal e Tolstói. POR José Geraldo Couto (BLOG DO IMS)

PICICA: "Os dois grandes vencedores do recém-encerrado Festival de Brasília, o longa-metragem pernambucano Big Jato e o curta mineiro Quintal, a despeito de tudo o que os diferencia, têm algo em comum. São, cada um à sua maneira, atualizações da célebre frase atribuída a Tolstói: “Quer ser universal? Comece pintando a sua aldeia”."

Big Jato, Quintal e Tolstói

POR José Geraldo Couto José Geraldo Couto: no cinema | 25.09.2015

Os dois grandes vencedores do recém-encerrado Festival de Brasília, o longa-metragem pernambucano Big Jato e o curta mineiro Quintal, a despeito de tudo o que os diferencia, têm algo em comum. São, cada um à sua maneira, atualizações da célebre frase atribuída a Tolstói: “Quer ser universal? Comece pintando a sua aldeia”.

No caso de Big Jato a aldeia é o vilarejo fictício de Peixe de Pedra, encravado no agreste nordestino, uma geografia natural e humana familiar tanto ao cratense Xico Sá, autor do romance autobiográfico que inspirou o filme, como ao caruaruense Cláudio Assis, que o dirigiu.

Romance de formação

Misto de fábula, “romance de formação” e crônica de costumes, o filme centra seu foco no garoto Xico, dividido entre duas fortes figuras paternas: o pai propriamente dito, Chico, homem rude e autoritário que conduz pelas redondezas seu caminhão limpa-fossas, e o tio Nelson, dionisíaco e folgazão radialista da precária emissora local. Ambos são vividos por Matheus Nachtergaele, em caracterizações primorosas, repletas de nuances inesperadas.



Desde o início, uma conversa entre pai e filho na boleia do caminhão, por estradas empoeiradas da região, impera um saboroso anacronismo, uma descarada liberdade de construção temporal, de maneira a criar um tempo fora do tempo. No “fenemê” do pai, o pequeno Xico pergunta se todo mundo “faz”, referindo-se evidentemente à defecação: “Até o Papa? Até o Messi?”

No início da breve viagem, Xico é um menino de uns dez anos (Francisco de Assis Moraes, filho do diretor); ao final, é um adolescente de quinze (Rafael Nicácio).       A fotografia suave e luminosa de Marcelo Durst acentua a atmosfera de fábula sem cair na estetização e sem perder o foco realista. O que se mostra é o real, é o cotidiano de uma comunidade do agreste, ainda que filtrado pela memória afetiva do protagonista.

O arcaico e o pop

Real e imaginário, aliás, não apenas dialogam, mas interpenetram-se o tempo todo nessa narrativa que conjuga o excremento e a poesia, o arcaico e o pop, o fóssil e a força vital. Algumas ideias são geniais, como a da banda de rock local Os Betos, que influenciou os Beatles e saiu de cena por pressão da indústria cultural para não ofuscar o sucesso do grupo inglês. “Let it lie”, o título de um hit dos Betos, é o lema que o radialista Nelson usa em todos os momentos, em delicioso idioma embromation.

Outro achado brilhante é o personagem do louco da aldeia, o Príncipe Ribamar, encarnado por Jards Macalé. Apaixonado pela princesa Isabel, ele lhe escreve longas cartas nunca enviadas e serve como conselheiro sentimental do jovem Xico.

Planos contínuos

A câmera de Cláudio Assis trafega por esse universo, ou antes o constitui, com segurança e sutileza, evitando o campo/contracampo e a fragmentação das cenas. Em geral tudo acontece no interior de seus planos longos, contínuos, em que a entrada de uma figura no quadro altera a composição dramática, as relações entre os personagens, a direção dos olhares. Por vezes é um movimento sutil de câmera, conjugado com ligeiras mudanças de foco, que transforma o sentido do que se mostra.

Um exemplo eloquente é a cena em que Xico está sentado num banco e vê, na calçada oposta, a garota por quem está apaixonado (Pally Siqueira), conversando com outro rapaz. Quando a cena começa, Xico está de costas, a câmera acompanha Ribamar, que vem sentar a seu lado. Os dois conversam e só depois de um tempo o louco percebe o alheamento do garoto e constata, pela direção do seu olhar, o interesse de Xico pela menina. Só então captamos a cena toda, tanto no sentido visual como dramático.

Um plano-sequência ainda mais admirável é o da iniciação sexual de Xico. Começa com um plano médio do menino com o pai numa mesa de boteco, depois a câmera acompanha os dois atravessando a rua, entrando no bordel em frente, até que Xico, entregue pelo pai, some de foco com uma puta ao fundo do quadro. Ao longo de uma tomada contínua, vemos de tudo: plano geral, plano médio, close, plano americano. Montagem realizada “na câmera”, numa linda cena de cinema.  

Haveria muito mais a dizer sobre Big Jato, sobre a contraposição poesia/matemática, sobre a atuação marcante de Marcélia Cartaxo, sobre a construção dos ambientes (a cadeia, a casa, a estrada, o bordel, a rádio), sobre a prosa poética agreste e desbocada etc., mas o espaço é curto e haverá outras oportunidades de abordar o filme.

Cabe destacar apenas mais uma coisa: a presença de certas marcas registradas de Cláudio Assis, como as cenas filmadas do alto, por uma câmera indiscreta que passa por cima de paredes e divisórias, e o momento em que um ator olha para a câmera, subvertendo uma regra do cinema clássico, e se dirige diretamente ao espectador com uma frase que podemos interpretar como declaração de princípios do próprio diretor. No caso de Big Jato a frase, dita pelo tio Nelson, é: “O sertanejo forte é aquele que parte, não aquele que fica parado, cheio de mosca nas ventas, rolando bosta numa vida sem sentido”.

O exílio, a partida, eis afinal o motivo que permeia todo o filme, cujo desfecho reafirma e atualiza a dialética sertão/mar presente no imaginário nordestino desde Antônio Conselheiro. Vale a pena esperar por Big Jato.

Quintal  

O curta Quintal, por sua vez, radicaliza a proposição de Tolstói. Em vez de pintar sua aldeia, o diretor André Novais Oliveira pinta seu quintal, ou melhor, o quintal de seus pais, Maria José e Norberto Novais, na modesta casa do casal em Contagem (MG). Mas por esse quintal passa o mundo todo, filtrado pela sensibilidade do cineasta e pela encantadora naturalidade de seus pais (Maria José foi premiada como melhor atriz em Brasília).

Combinando o mais prosaico naturalismo com a mais desbragada fantasia, Novais insere nos fundos da casa um misterioso portal que engole o pai e o cachorro da família. Um vento prodigioso faz voar pedras e caramujos e só não leva a mãe embora porque ela se agarra às grades da janela, ficando no ar na horizontal como numa cena de desenho animado. Passada a ventania, ela recolhe a roupa seca do varal como se nada tivesse acontecido.



Tudo é inesperado e radiante nesse filme que faz da incongruência uma fonte contínua de humor e reflexão. Não convém antecipar o enredo, mas basta dizer que entram em cena um político encrencado (que não é difícil associar ao senador Aécio Neves), uma academia de ginástica e uma tese de mestrado sobre bundas e óleos no cinema pornô. Tudo isso sem se afastar do quintal do título.

Cabe acompanhar com atenção a carreira do jovem diretor André Novais, realizador do notável longa Ela volta na quinta (também protagonizado por seus pais) e sócio-fundador da produtora mineira Filmes de Plástico.

José Geraldo Couto

José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Trabalhou durante mais de vinte anos na Folha de S. Paulo e três na revista Set. Publicou, entre outros livros, André Breton (Brasiliense), Brasil: Anos 60 (Ática) e Futebol brasileiro hoje (Publifolha). Participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80 (Brasiliense), Folha conta 100 anos de cinema (Imago) e Os filmes que sonhamos (Lume), entre outros. Escreve regularmente sobre cinema para a revista Carta Capital.

Fonte: BLOG DO IMS

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