PICICA: "O lendário bispo do Xingu,
ameaçado de morte e sob escolta policial há seis anos, afirma que o PT
traiu os povos da Amazônia e a causa ambiental. Afirma também que Belo
Monte causará a destruição do Xingu e o genocídio das etnias indígenas
que habitam a região há séculos. Há 47 anos no epicentro da guerra cada
vez menos silenciosa e invisível travada na Amazônia, Dom Erwin Kräutler
encarna um capítulo da história do Brasil"
Sou uma escutadeira que escreve. Repórter desde 1988, documentarista desde 2005, ficcionista desde 2011.
Dom Erwin Kräutler: “Lula e Dilma passarão para a história como predadores da Amazônia”
O lendário bispo do Xingu,
ameaçado de morte e sob escolta policial há seis anos, afirma que o PT
traiu os povos da Amazônia e a causa ambiental. Afirma também que Belo
Monte causará a destruição do Xingu e o genocídio das etnias indígenas
que habitam a região há séculos. Há 47 anos no epicentro da guerra cada
vez menos silenciosa e invisível travada na Amazônia, Dom Erwin Kräutler
encarna um capítulo da história do Brasil
Eliane Brum
Nesta segunda-feira, um homem grande, de
sorriso caloroso e cabelos brancos, embarcou em um avião para o Brasil.
Para o Brasil apenas, não. Para a Amazônia. Depois de 40 dias na
Áustria, a terra onde nasceu, ele sente falta da geografia que escolheu
para ser sua desde o momento em que, ainda jovem e tropeçando no
português, descobriu maravilhado que o Reno é “um igarapé comparado ao
Xingu”. Dom Erwin suspira de saudades do rio, das gentes, dos cheiros e
até do clima da cidade paraense de Altamira, com temperaturas e humores
tão intratáveis que só agrada aos mais fortes. Este homem, que circulava
livremente por ruas imaculadas na primavera austríaca, onde foi
garimpar recursos para projetos sociais na Amazônia, volta agora para
sua rotina de prisioneiro. Há seis anos, Dom Erwin Kräutler, bispo do
Xingu, não dá um passo no Brasil sem estar sob a escolta dos quatro
policiais que se alternam para proteger sua vida.
Perto de completar 73 anos, Dom Erwin,
que acolheu e depois enterrou a missionária assassinada Dorothy Stang,
vive na mira de pistoleiros. Homens contratados por gente graúda para
calar uma voz que há quase meio século eleva o tom na defesa dos mais
pobres e dos mais frágeis, dos indígenas, dos ribeirinhos e dos
extrativistas da Amazônia. Dom Erwin tem escrito, com rara coerência, um
capítulo crucial de uma história pouco contada no Brasil: o papel da
Igreja Católica, especialmente a dos religiosos ligados à Teologia da
Libertação e às comunidades eclesiais de base, na proteção dos povos da
floresta – e da própria Amazônia – a partir da segunda metade do século
XX.
A maioria das etnias indígenas e das
comunidades amazônicas que conquistaram direitos e terras nas últimas
décadas deve parte de sua organização aos setores mais progressistas da
Igreja Católica. Assim como parte das lideranças políticas que hoje
influenciam os rumos do país surgiu na atuação de base da Igreja. Isso
vai muito além da religião – é História. E uma história cujo sentido as
alas mais conservadoras da própria Igreja preferem enfraquecer. Neste
capítulo, Dom Erwin, capaz de falar tão bem o grego clássico quanto a
língua dos Kayapó, é um dos protagonistas mais fascinantes.
E resistente. A cada ano, apesar da
idade avançada e das dores na coluna, ele visita 15 paróquias do Xingu.
Ao alcançá-las, peregrina pelas comunidades dos cafundós. Dorme no
barco, dorme em rede. Acostumou-se tanto à dieta local, que fica feliz
por comer peixe no almoço e no jantar, de segunda a segunda. É adorado
pelo povo mais pobre – e odiado sem reservas por parte da elite
paraense, que o ataca também pela imprensa de Belém do Pará.
Desde a decisão de Lula, e agora de
Dilma Rousseff, de arrancar Belo Monte do papel, o quase lendário bispo
do Xingu tem feito uma oposição incansável contra a hidrelétrica que
provoca controvérsia dentro e fora do Brasil. Por causa dela, tornou-se
uma presença incômoda para setores do governo e do PT que um dia apoiou –
inclusive com o seu voto. Incômoda, especialmente, porque é difícil
destruir a reputação de um bispo que mantém a coerência desde a ditadura
militar em uma das regiões mais conflagradas do país, ajudou a escrever
os artigos da Constituição de 1988 que garantem os direitos indígenas e
não recuou nem mesmo diante da ameaça de perder a própria vida.
Nesta entrevista, Dom Erwin diz o que
pensa contra antigos aliados com o mesmo desassombro com que denunciou
grileiros e estupradores no passado recente. Acusa o PT de “traidor” – e
diz que alguns petistas são “fanáticos religiosos”. Afirma que Lula e
Dilma implantaram uma “ditadura civil” ao “desrespeitar os direitos
indígenas assegurados na Constituição”. E afirma que Lula passará para a
História como “o presidente que destruiu a Amazônia e deu o golpe nos
povos indígenas”.
Às vésperas da Rio + 20, o depoimento de
Dom Erwin Kräutler abre uma janela para a compreensão da história
contemporânea. A entrevista a seguir foi feita na casa do bispo, em
Altamira, com os policiais militares que o protegem do lado de fora da
porta, mas atentos. Os quatro policiais demonstram uma preocupação que
transcende o dever: adoram Dom Erwin, que conhece suas mulheres e filhos
e escuta suas aflições de cada dia.
Em três horas de conversa, Dom Erwin não
evitou nenhuma pergunta. Vale a pena abrir um espaço para escutar com
atenção um homem capaz de apontar as contradições e ampliar a
complexidade do momento estratégico vivido pelo Brasil, no qual as
escolhas tomadas hoje determinarão o que seremos amanhã.
“QUANDO EU VI O XINGU, PERDI O FÔLEGO”
– O que o senhor faz quando está na Áustria e qual é a sensação de viver sem escolta, sem policiais ao redor?
Dom Erwin Kräutler – É
necessário que eu passe todos os anos pelo menos um mês na Áustria, com a
finalidade de conseguir recursos para manter e sustentar as obras
sociais e pastorais do Xingu. Tenho, além disso, muitos convites de
universidades e organizações que defendem os Direitos Humanos e o Meio
Ambiente. Quando é possível, eu me hospedo na minha casa materna/paterna
e vivo, fora dos compromissos, uma vida de “eremita”. Isso me faz um
bem enorme. Ando livremente pelos bosques da terra onde nasci. Admiro a
natureza, as flores, os campos, as árvores que na primavera se revestem
de sua folhagem de tons tão diversos. Levanto antes das 5 horas para
poder “ouvir o silêncio” matutino e ver os primeiros raios do sol. É
maravilhoso. É uma sensação de liberdade total que faz bem à alma e ao
coração.
Dom Erwin – Ouvi a
palavra Xingu pela primeira vez aos 4 ou 5 anos, durante a Segunda
Guerra Mundial. A minha mãe sempre falava do irmão dela, Dom Eurico
Kräutler, na época Padre Eurico, que estava no Brasil desde 1934. Uma
vez ele mandou, junto com a carta, algumas fotos. Eu lembro
perfeitamente das casas de palha – ele na frente, naquele tempo de
batina, com uma criança, um indiozinho, mostrando a câmara com o dedo.
Como a gente diz: Olha o passarinho! Foi a primeira foto do Xingu que vi
na minha vida.
– O que o senhor sentiu?
Dom Erwin – (rindo)
Senti uma profunda simpatia por aquela criança, que era diferente, que
estava pintada. Desde então, nós sempre perguntávamos à minha mãe sobre
os índios. Meu tio mandava as cartas, que eram lidas em casa pela minha
mãe, depois passavam para a minha tia, e então para a minha madrinha,
iam passando por todos os parentes. Tínhamos a foto de um índio na
parede. Eu lembro até o nome dele: “Patoit”. Significa “braço forte”.
Temos a foto dele lá em casa (na Áustria), com a mulher e o filho.
– Essa foto ainda existe?
Dom Erwin – Sem dúvida.
No meu quarto, na casa de meus pais, ela foi substituída por uma foto
mais recente, de uma índia Araweté com seu neném. Para nós, os Kayapó
eram pessoas distantes, diferentes, mas pareciam parentes. Porque quando
a gente falava do tio Eurico falava também dos indígenas do Xingu. Meu
tio só pôde voltar para a Áustria depois do fim da guerra, em 1948. Eu
tinha 9 anos e era coroinha, então eu lembro muito bem quando ele
chegou. Meu tio fazia palestras, sabe, com slides. E ele mostrou muito
sol nascendo, pôr do sol… Mas meu tio tinha a sua ideia a respeito dos
índios, com as quais eu não compartilharia hoje. Eu tive outra visão.
– Qual era a ideia dele?
Dom Erwin – A ideia
dele, e é preciso entender que ele era filho do tempo dele, era a de
“civilizar”, “apaziguar”, palavras que não me passam pelos lábios. Não é
por aí.
– É por onde?
Dom Erwin – São povos
diferentes. E nós os respeitamos na sua alteridade. E não apenas os
respeitamos, precisamos dar um passo a mais. Nós os amamos. Eu fiz essa
experiência. Lembro quando fui para uma aldeia aqui, dos Kayapó, e eu
não falava uma palavra em kayapó. Nada. Eu disse: “Nunca mais eu piso
nessa aldeia sem saber kayapó”. E aprendi. Não vou dizer que falo do
mesmo jeito que eu falo português, mas aprendi. E, na segunda vez em que
fui lá, você não imagina. Meu Deus! O sorriso mais largo e mais amigo,
mais íntimo, eu diria: “Agora ele é nosso, ele fala a nossa língua”.
Eles sabem que a gente se esforça e, através da comunicação por
palavras, compreendemos o mundo deles.
– Quando o senhor estava em
Koblach, sua cidade natal na Áustria, que movimento interno fez com que o
senhor atravessasse o oceano e ficasse aqui por quase meio século, já? O
que o levou a fazer um movimento tão largo, tão radical?
Dom Erwin – Eu era um
jovem como qualquer outro. Estudei, fiz faculdade de Filosofia, tocava
violão, fazia teatro. Tenho uma juventude muito bonita, com muitos
amigos e amigas. Depois veio o pessoal de outras províncias, que não
falavam a nossa língua, o nosso dialeto. E eram colocados à margem. E
isso me doía. Mas por quê? Simplesmente porque são diferentes, porque
falam outra língua, são excluídos? Nós começamos, então, na juventude, a
criar nossos movimentos e a buscar essa gente que ficava na margem. Nós
conseguimos integrá-los. Foi nesse momento, ao me confrontar com a
exclusão pela diferença, que surgiu a ideia de ser padre. Estudei
Teologia, me ordenei. Era da mesma congregação do meu tio, dos
Missionários do Sangue de Cristo. Naquele tempo, meus superiores queriam
que eu continuasse os estudos de filologia antiga: grego e latim. Eu
gosto disso até hoje. Leio a Bíblia em grego, o Novo Testamento…. Mas,
de repente caiu a ficha: “Eu vou para o Xingu”. Quer dizer, a gente não
dizia: “Eu vou para o Brasil”. A gente dizia: “Eu vou para o Xingu”.
– Por que “eu vou para o Xingu”?
Dom Erwin –
Acho que aí tem também toda a história da criança, que eu nunca
esqueci. O Xingu era exatamente onde estão os Kayapó. E não apenas os
Kayapó, mas seringueiros, pescadores, e uma cidadezinha miúda,
pequenininha, que era Altamira. Altamira em 1950 tinha 1.800 habitantes.
E eu então sonhei com isso. E disse para os superiores que queria ir
para o Xingu: era 12 de janeiro de 1965. Ordenei-me padre em julho de
1965. Despedi-me de casa no dia 2 de novembro, aniversário do meu pai.
Fui para Hamburgo, no norte da Alemanha, e vim com um cargueiro. Eram só
dois passageiros, fora a tripulação. Eu nunca tinha visto mar, esse
tipo de coisa. Era um rapaz novo, 26 anos. E atravessei o Atlântico.
– Quantos dias, naquela época?
Dom Erwin – Nós saímos
no dia 4, à noite, e depois atracamos em Tenerife, nas Ilhas Canárias,
no dia 11 de novembro. Passamos lá um dia, zarpamos de novo e chegamos
no dia 18. Eram 4h da tarde quando pisei pela primeira vez em terra
brasileira, em São Luís do Maranhão, onde fiquei quatro dias, antes de
seguir viagem, ainda de navio, para Belém. Lá em São Luís dormi no
convento dos franciscanos e comecei a aprender português.
– Não sabia nada?
Dom Erwin – Nada.
– O que tinha na sua mala?
Dom Erwin – Eu não
trouxe lembranças da minha terra, não trouxe nada. Uma ou outra foto da
família. O que eu trouxe eram coisas que eu queria dar para as crianças
daqui. Porque o pessoal de lá me encheu de mil e uma coisas pra trazer.
Veio tanta criança aqui nesta casa: “Quem é o padre que trouxe boneca?”.
Fiquei feliz da vida. Boneca pra cá e pra lá. Depois surgiu um
problema, porque alguém disse: “Mas o senhor deu boneca até para crente,
e nós não ganhamos ainda nada”. E eu respondi: “Vou perguntar se era
crente ou católico? Para mim se tratava de uma boneca – e boneca
bonita!”. De coisas pessoais eu só trouxe os cadernos do tempo da
universidade, tanto da faculdade de Filosofia quanto da de Teologia.
Tenho até hoje! Fora isso, um crucifixo que ganhei e um cobertor. Até
hoje eu tenho esse cobertor. Está na minha cama.
– Qual a diferença que o senhor sentiu entre o Xingu mítico, do seu imaginário, e o Xingu real, daquele primeiro olhar?
Dom Erwin – O Xingu me
impressionou de uma maneira que eu nunca tinha sentido. Porque lá na
Áustria nós temos o rio Reno, mas é um igarapé, em comparação com isso
aqui. Então, na primeira vez que vi, em 21 de dezembro de 1965, a bordo
de um avião DC3 da Cruzeiro, vindo de Belém, Nossa Senhora, que
maravilha! Eu fiquei tão encantado com essa terra, e até hoje estou. E
essa é uma das razões de ter reservas muito grandes quanto à destruição
que está pairando sobre o Xingu e sobre todos nós. Eu fiquei tão
impressionado, que faltaram palavras. Acho que perdi o fôlego. Não era
um chorar… Era uma alegria. Uma mistura de alegria e de se maravilhar
por alguma coisa. Você fica olhando e olhando… Você não precisa falar,
você assimila, por assim dizer, essa maravilha toda. E fica encantado.
Utiliza-se no português a palavra “encantado”. O Xingu encanta.
– Por quê?
Dom Erwin – O Xingu é
diferente de todos os outros rios do mundo, ao menos daqueles que eu
conheço. Talvez algo mítico, também, por causa dos povos indígenas que
há milhares de anos vivem aqui. Então, eu vejo como os índios veem. Os
Kayapó não chamam de Xingu, chamam de Bytire. “Tire” significa grande,
majestoso. O “by”, segundo a explicação de um velho kayapó, quer dizer
algo muito misterioso, inexprimível. E, por isso, sagrado, intocável,
inviolável. Eu disse: “Aqui eu vou viver”. Eu nunca pensei em voltar,
sabia? Nunca.
– O senhor sente que esta é a sua terra?
Dom Erwin – Eu não vou
negar as raízes, claro… O mundo de lá agora é diferente, e eu me sinto
um peixe fora d’água. Passo um mês na Áustria, mas depois volto para cá.
A minha vida é viver aqui.
– No Brasil inteiro, e
especialmente no Norte, existe o uso político de um sentimento que pode
ser resumido pela seguinte frase: “Os gringos estão invadindo a
Amazônia”. O senhor é tratado como um gringo?
Dom Erwin – Não. Nunca
fui. Também o pessoal raramente me pergunta onde eu nasci.
Naturalizei-me brasileiro. Tenho passaporte brasileiro, carteira de
identidade, título de eleitor, tudo.
– O senhor é brasileiro?
Dom Erwin – Sou.
– Um brasileiro que nasceu na Áustria… Eu já vi o senhor dizendo isso.
Dom Erwin – Sempre
digo isso: um brasileiro nascido na Áustria. Não fui mandado para cá.
Foi uma decisão minha. Eu me identifiquei com o Xingu, com o Brasil.
Claro que não nasci aqui, meus pais e meus antepassados são de outro
país. Meus ancestrais já moravam lá em 1400 e pouco. Trata-se de uma
família muito tradicional. Mas cada um faz a sua escolha. Quando cheguei
aqui, eu sabia que ia ficar. Eu podia ter voltado no dia seguinte, se
eu não me agradasse. Tem muito trabalho em qualquer canto do mundo. Mas
nem por um segundo isso me passou pela cabeça.
“EU NUNCA PENSEI QUE O LULA PUDESSE MENTIR NA MINHA CARA”
– O senhor é uma das vozes mais críticas contra Belo Monte. Por que o senhor não quer uma hidrelétrica no Xingu?
Dom Erwin – Altamira
sofreu o primeiro “choque” com a construção da Transamazônica. Eu me
lembro de quando chegou aqui o presidente Médici (Emílio Garrastazu
Médici, general que foi presidente do Brasil no período mais violento da
ditadura militar, de 1969 a 1974). Ele deu início às obras, no lugar
chamado “Pau do Presidente”. Você foi lá ver (o “pau do Presidente”)?
– Ainda não…
Dom Erwin – Não perde
nada. Só ficou aquele tronco da castanheira, a placa roubaram… Eliane,
você naturalmente sabe que aqui se usa essa expressão “pau do
presidente” com certa malícia!
– Posso imaginar… O senhor presenciou a derrubada da castanheira?
Dom Erwin – Sim. Todo o
pessoal delirando no palanque… delirando mesmo! Batendo palmas! Gente,
derrubando uma árvore daquelas! E dizendo que era o progresso que estava
chegando. Cortou-me o coração… Como é que pode? Aplaudir que a rainha
das árvores do Pará ou da Amazônia tomba, e com um estrooondo tremendo.
Como é possível? Está escrito na placa que roubaram: “O presidente da
República dá início à conquista deste gigantesco mundo verde”. E havia
uma placa em uma das três colunas feias, bem feias que fizeram: “Depois
de XX meses o presidente voltará para inaugurar, dando mais um passo
para integrar…”. Era essa a época: “Integrar para não entregar” e
“Brasil, ame-o ou deixe-o”… Coisas desse tipo. Eu vi.
– Isso tudo o senhor estava assistindo de onde?
Dom Erwin – No meio do
povo que foi lá ver o presidente. Tinha dois bispos, vestidos com trajes
episcopais, que pensavam que seriam chamados a subir no palanque: o
bispo daqui, que era meu tio, e o bispo de Marabá. Não os chamaram lá
para cima porque o de Marabá não era amigo dos militares. Ele tinha
denunciado um monte de coisas. Naquele tempo era a guerrilha do
Araguaia, então não chamaram os bispos para subir no palanque… Eu
pensei: “Bem feito!”. Mas eu não tinha coragem de dar minha opinião,
porque era menino recém-chegado. Mas os bispos também achavam que o
progresso estava chegando… Altamira era uma cidade esquecida, no meio da
mata.
– É muito simbólico derrubar uma
castanheira, uma árvore gigante, como símbolo da chegada do progresso e
do desenvolvimento, não?
Dom Erwin – Depois se
falava em “benefício”. Tem que “beneficiar” a terra para você
encaminhar, por exemplo, um crédito bancário. Então tinha que derrubar.
– O que era Altamira antes da Transamazônica?
Dom Erwin – Era uma
cidadezinha esquecida. De dia faltava água, de noite faltava luz. Tinha
um motor da prefeitura que tinha funcionado pela última vez nos 15 anos
da filha do prefeito. Nos anos 60 queriam fazer uma picada para Santarém
para ligá-la ao mundo e mataram não sei quantos índios. Depois veio a
Transamazônica. Um compadre meu, que trabalhava como telegrafista
naquele tempo, disse: “Olha, compadre, agora vem o progresso. Tinha um
telegrama de um tal de Incra dizendo que vão construir uma estrada.
Estão dizendo que vai chover dinheiro”.
– Um discurso muito parecido com o de agora, não? Vai “chover dinheiro”, o progresso vai chegar…
Dom Erwin – Essa é a
ideia: o “progresso” vai desbravar toda essa região. Então, de fato,
começou no quilômetro 5, com a derrubada daquela árvore, onde tudo era
mato. E hoje você vê tudo descampado. O traçado da Transamazônica já foi
feito assim porque se pensou em futuras hidrelétricas, como Belo Monte.
Nos anos 70 já fizeram toda a pesquisa. Em 1950, Altamira tinha 1.200
habitantes. Em 1960, 2.800. E depois, acho que de 1965 em diante, uns 4
mil, 5 mil. Mas depois veio o boom… o pessoal veio do Nordeste,
primeiro, depois do Sul. Aí Altamira ganhou outras feições. E com a
Transamazônica, em 1975, se falava numa possível hidrelétrica, mas era
uma coisa muito distante. Nos anos 80, então, a coisa já pegou mais
vulto, até que, em fevereiro de 1989, vieram os índios…
– O senhor estava presente no I
Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em 1989? (Na ocasião, Tuíra,
índia kayapó, encostou a lâmina do seu facão no rosto de Antonio Carlos
Muniz Lopes, da Eletronorte, para expressar sua indignação contra o
projeto de Belo Monte, naquela época chamado de Kararaô. A foto da cena
correu o mundo).
Dom Erwin – Não. Eu
estava na Suíça… Os índios vieram falar comigo. Queriam marcar o I
Encontro dos Povos Indígenas do Xingu. Então eu encontrei, naquele
tempo, não vou dizer o primeiro escalão, mas o segundo escalão do Banco
Mundial, em Berna. E me avisaram: o Banco Mundial só vai fornecer o
crédito (para a obra) se a cláusula indígena e a cláusula ambiental
forem observadas e cumpridas. Isso, para mim, foi o sinal de
arquivamento. Pensei: esse perigo já passou. Enquanto eu estava lá,
ocorreu o episódio com a Tuíra, aqui. Eu conheço muito bem esse Antonio
Carlos Muniz…
– Como o senhor o conheceu?
Dom Erwin – Ele me
convidou, quando estive em Brasília, nos anos 90, para o gabinete dele, e
me mostrou todas as coisas. Ele queria cativar-me, conquistar-me para o
projeto. Fui muito bem tratado, sabia? Mas quando a gente é tratado tão
bem, com beijinho etc, é preciso ficar cismado. Quando é assim, tem boi
na linha. Não é porque te querem bem, mas eles querem te preparar,
querem aproveitar que você está sozinho e te convencer.
– Brasília o assusta, nesse sentido?
Dom Erwin – Sim, me
assusta. Meu Deus! Estive duas vezes com o Lula, também, e com outras
pessoas. Eu tinha contatos bons, gente boa em Brasília que estava no
nosso lado. Agora, ultimamente, estamos num certo isolamento. Porque
aquele povo que antigamente lutava conosco, que estava do nosso lado,
que defendia a mesma coisa, que lutou pela mesma causa, agora defende o
contrário.
– Quando o Lula foi eleito, o
movimento social da Amazônia tinha certeza de que Belo Monte estava
definitivamente sepultada. Como foram seus encontros com o Lula?
Dom Erwin – A primeira
vez foi em 19 de março de 2009. Fui com um advogado do CIMI (Conselho
Indigenista Missionário), amigo meu de longa data, e com um assessor
político do CIMI, que agora foi conquistado para ser membro do gabinete
da presidente. Fiquei com o Lula uns 20 minutos, talvez meia-hora.
Apresentei as nossas angústias e as nossas preocupações, e ele foi o
primeiro a insistir que houvesse um diálogo construtivo, que se
avaliasse os prós e os contras. Eu disse: “Olha, eu queria que o senhor
ouvisse o povo”. Ele perguntou: “Que povo?”. Eu disse: “O povo do Xingu,
os representantes do povo do Xingu”. Ele disse (Dom Erwin imita a voz e
o jeito de Lula): “Manda chamar!”. Acertamos então uma segunda visita.
Lembro que, ao final desse primeiro encontro, eu disse: “Lembranças para
Marisa, sua esposa”. O Lula ficou até assustado, porque não estava
acostumado a receber saudações para sua esposa. Quando alguém se
encontra com o presidente, não lembra que ele é casado. Senti o Lula
como alguém muito amigo, simpático.
– Foi a primeira vez que o senhor o viu?
Dom Erwin – Não, já tinha visto em campanha.
– Como o senhor percebeu o Lula?
Dom Erwin – Ele era
aquele trator, falava pra cá e pra lá. A gente via que ele estava em
campanha, que a gente era uma peça lá daquela campanha. Dá a mão, tira
foto… Mas, em 2009, foi um encontro… muito amistoso. Eu ainda esperava
que ele fosse se convencer de que não era por aí. Até escrevi: “Graças a
Deus, Lula entendeu”. E nós marcamos outra audiência, em 22 de julho do
mesmo ano. Foi muito interessante. Levamos dois índios, dois
ribeirinhos, a Antonia Melo (uma das principais lideranças do Xingu),
dois procuradores da República e o professor Célio Bermann (do Instituto
de Eletrotécnica e Energia da USP). Mas o Gilberto Carvalho (chefe de
gabinete do então presidente Lula, hoje ministro da Secretaria Geral da
Presidência da República no governo Dilma) queria que só eu falasse em
nome de todos. Do outro lado havia o setor energético do governo, todos
os figurões… Nós, de um lado, humiiildes, coitados, nos sentindo como um
peixe fora d’água e, do lado de lá, essa gente que mandava e até hoje
está mandando… Mas a gente tinha segurança daquilo que nós queríamos. E,
quando o Lula chegou, ele sentou-se ao meu lado. Eu disse: “Presidente,
o senhor vai ter que ouvir esse povo. Esse povo veio de longe, quer
falar com o senhor. Não pode pegar só dois que representem os outros,
porque eles vão sair com uma frustração que não tem tamanho!”. O Lula
então disse (e Dom Erwin imita o vozeirão do então presidente): “Deixa
comigo! Vamos fazer!”. Então, de fato, ele deu a palavra a todos.
– O que eles disseram?
Dom Erwin – O povo
falou de sua angústia, de que não podiam deixar a sua terra. Depois, os
procuradores da República falaram das inconstitucionalidades do projeto
de Belo Monte, de que os índios não tinham sido ouvidos. O Célio Bermann
colocou então os pontos técnicos e financeiros que tornavam o projeto
inviável. E aí é que eu vi o Lula levando susto. Ele olhou para a turma
dele, dizendo: “Vocês vão ter que dar uma resposta imediata para o
professor”. Mas esta resposta não veio até hoje.
– O senhor acha que o Lula estava sendo sincero ou era teatro político?
Dom Erwin – Era teatro,
jogo político… Depois ele me segurou no braço e disse (imitando a voz):
“Dom Erwin, nós não vamos empurrar esse projeto goela abaixo de quem
quer que seja. Conte comigo. O diálogo tem que continuar. Segundo: o
Brasil tem uma grande dívida com os atingidos por barragens, e essa
dívida, até hoje, não foi sanada. Tem muita gente perambulando por aí
que não recebeu a indenização, e a vida praticamente foi cortada para
eles. Terceiro: Nós não vamos repetir (a hidrelétrica de) Balbina.
Balbina é um monumento à insanidade. E quarto: o projeto só vai sair se
for vantagem para todos”.
– O Lula disse isso?
Dom Erwin – Disse!
Textualmente, sentado ao meu lado, me segurando nesse braço (mostra o
braço esquerdo). Eu pensei, bom… o presidente não iria falar isso se não
fosse verdade. Mas, as mulheres têm mais sensibilidade, têm mais
intuição. A comadre Antonia Melo não quis nem tirar retrato. Os outros
todos bateram foto com o Lula. Eu fiquei até estranhando, mas ela
sentiu, naquele tempo, que era apenas um show. Engraçado, as mulheres,
neste ponto, têm uma intuição que os homens não têm. Eu pensei: “Não, o
Lula não vai mentir na minha cara!”. E ainda por cima segurando no meu
braço… (Imita novamente a voz de Lula): “Dom Erwiiiin….”.
– O senhor imita bem a voz do Lula… O senhor saiu aliviado?
Dom Erwin – Aliviado
não vou dizer, mas muito esperançoso, porque no final ele ainda disse:
“O diálogo vai continuar, nós vamos nos encontrar de novo”. E aí, de
repente, eu me dei conta de que não houve diálogo nenhum. Porque ele
falou, mas não perguntou quais eram as nossas ideias, não perguntou o
que nós achávamos, nem como pensávamos que seria possível resolver
certos impasses.
– Como foi o clima dessa reunião?
Dom Erwin – A primeira
parte da audiência com o Lula foi sem ele. Só com o setor energético,
Funai e outras instâncias do governo. Esse pessoal do governo xingou os
procuradores da República, dizendo que eles não entendiam nada, que não
era do ramo deles, que estavam se metendo em assunto que não dizia
respeito a eles. E até foram alteando a voz, viu? Fiquei até assustado,
pensando que a educação tinha passado muito longe daqueles senhores.
Lembrei-me de que quem grita revela que não tem argumentos para
convencer o interlocutor. No fundo, essa turma tinha que admitir que a
razão e o bom senso estavam do nosso lado. Assim, optaram por atitudes
autoritárias e de prepotência, querendo nos intimidar, dizendo que não
entendíamos nada do assunto. Do nosso lado, ninguém perdeu em nenhum
momento a compostura. Não respondemos aos gritos. Os berros saíram da
goela deles. Neste exato momento, o Lula entrou “em cena”, perguntando:
“Vocês estão vivos?”. Porque era um berreiro, não era diálogo. A entrada
do Lula na sala parecia uma ducha de água fria em cima da turma dele.
De repente, eles se recompuseram. Achei ridículo! Pareciam meninos
briguentos na sala de aula que, quando o professor entra de repente,
ficam com medo de algum castigo ou de nota baixa e então se ajeitam. Aí o
Lula me cumprimentou efusivamente, como se fôssemos amigos de longa
data, “companheiros” de luta desde a primeira hora. E, não nego, me
senti bem à vontade e agradeci a ele por ter nos recebido, elogiando
esse gesto aberto de busca de “diálogo”. Pois naquele momento acreditei
realmente no diálogo.
– E não foi?
Dom Erwin – Só caí na
real quando, em outubro do mesmo ano, passei uma semana em Brasília
esperando a continuação desse diálogo. A audiência foi adiada de uma
manhã para a tarde, de um dia para o outro, até que, finalmente, recebi
um telefonema na sexta-feira à noite em que Gilberto Carvalho me pedia
desculpas, dizendo que não era mais possível ser recebido pelo
presidente, pois ele tinha precisado viajar para a Venezuela. Essa
viagem certamente já estava programada no início daquela semana e servia
de pretexto para evitar o constrangimento de ser obrigado a me dizer
que o presidente e seu staff não estavam mais interessados na
continuação do “diálogo”. Em 23 de setembro de 2009 eu tinha escrito uma
carta ao Lula, tratando-o ainda de “meu presidente”. Nunca recebi
resposta.
– O senhor tinha acreditado na promessa de diálogo feita pelo Lula?
Dom Erwin – Eu
acreditei. Havíamos dado um passo importante, porque havíamos chegado
até lá. E agora, aquele setor do governo, embora tenha gritado antes,
teria que dar resposta por ordem do presidente. Mas nunca houve diálogo.
Naquele encontro nós mostramos o que ia acontecer, o absurdo dessa obra
em todos os sentidos, inclusive em sua viabilidade financeira. E
ninguém nunca nos respondeu nos provando que estávamos errados. O Célio
Bermann falou, e eu entreguei para o Lula um resumo da posição do
Oswaldo Sevá Filho (professor e pesquisador de Engenharia Mecânica da
Unicamp), que não pôde nos acompanhar porque estava doente, assim como a
posição de outros grandes professores e pesquisadores dessa área no
Brasil. E todos mostravam a inviabilidade de Belo Monte, assim como a
destruição que ela vai provocar. Por que esse povo não recebeu uma
resposta?
– Por quê?
Dom Erwin – Porque não
há resposta. Os argumentos são imbatíveis. Tem que desmontar a opinião
das maiores cabeças dessa área no Brasil, tem que ter argumentos
fundamentados na realidade, mas o governo não tem. E, se não tem,
precisaria assumir: “Nós temos que fazer isso. É uma decisão política, e
não técnica”. Se a decisão fosse técnica, Belo Monte jamais seria
feita. Por isso, o diálogo foi abortado desde o início. Aquilo que Lula
fez era só um show para agradar ao bispo.
“HÁ GENTE DO PT QUE PARECE FANÁTICO RELIGIOSO”
– No caso de Belo Monte, o
governo defende que os índios não serão atingidos. Mas muitos
ambientalistas e pesquisadores refutam essa afirmação, mostrando que não
é possível barrar um rio sem que isso afete as comunidades que vivem em
torno dele. Como o senhor vê essa questão?
Dom Erwin – Se o
projeto de Belo Monte se concretizar, esses povos que moram na Volta
Grande do Xingu serão atingidos. O governo nega, porque, para o governo,
atingir o povo indígena é só quando se inunda, alaga a aldeia. A
inundação, de fato, não vai acontecer. Mas o contrário acontece:
corta-se a água. Se você observar o mapa, vai perceber que, nos 100
quilômetros da Volta Grande do Xingu, vai se chegar a um mínimo de água.
Tenho absoluta certeza de que não haverá mais condição de pescar e de
abastecer esses povos. Depois, será prejudicada a agricultura. E, por
fim, eles não terão como se locomover. Ficarão barrados. Um povo
submetido a uma vida nessas condições não sobrevive. Ou sobrevive por um
tempo, depois acaba. Vão se esfacelar. Talvez se tornem índios
citadinos. Perderão a cultura, perderão a língua. Estarão aqui, em algum
subúrbio de Altamira. Não vou dizer que deixarão de serem índios, mas
já não serão mais indígenas que vivem dentro de seu próprio contexto,
com suas organizações e com a sua língua.
– É uma cultura que morre, um jeito de estar no mundo que morre, é isso?
Dom Erwin – Temos que
fazer uma distinção: existe a morte física e existe a morte cultural. E
aqui no Xingu, por causa de Belo Monte, poderão acontecer as duas
coisas. A morte cultural, porque arrancarão deles a possibilidade de
sobreviver em determinado espaço que, para eles, é muito significativo,
porque é o chão de seus mitos, de seus ritos, é onde enterraram seus
antepassados. Se você arranca isso dos indígenas, você corta o cordão
umbilical deles com a terra. Precisamos compreender que eles têm outro
relacionamento com a terra, diferente do nosso. Para nós, a terra é
coisa que se compra e se vende. Para eles, não. Além da morte cultural, é
provável que também aconteça a morte física, porque eles não estão
preparados para viver na cidade. Os Arara, por exemplo, foram dizimados
por doenças depois de serem contatados. Essa história nunca foi bem
contada.
– O senhor afirma que Belo Monte
é só a primeira de muitas barragens, uma forma de vencer a resistência
para impor um projeto que é muito maior e que vai destruir o Xingu por
completo. Como o senhor tem tanta certeza disso?
Dom Erwin – Todos os
argumentos científicos sérios mostram que essa hidrelétrica não vai
funcionar durante o ano todo. No verão, o Xingu baixa muito de nível e
não existirá volume de água suficiente para fazer funcionar as turbinas.
Portanto, vão investir bilhões e bilhões de reais em uma hidrelétrica
que durante meses não funciona. Isso é um absurdo. E o governo sabe
perfeitamente que é um absurdo. Então, é lógico que Belo Monte será só a
primeira barragem. É preciso fazer tudo para que a população aceite
essa primeira barragem, depois de décadas de resistência. Para, então,
virem as outras. Porque só com as outras Belo Monte será um bom negócio.
A segunda, a terceira e a quarta vão barrar o rio até lá em cima, em
São Félix do Xingu. E aí, todas essas áreas que estão nas margens
esquerda e direita do Xingu, que são áreas indígenas já homologadas, vão
sofrer. E aí, os Assurini, os Araweté, os Paracanã, os Arara, e os
Kayapó vão ser atingidos. É por isso que os Kayapó lá de cima, até mesmo
os do Parque Nacional do Xingu, estão contra, embora estejam a mil
quilômetros de distância. Eles já conhecem essa história. Depois de
construir a primeira barragem, a tempestade passa, a resistência diminui
– e aí completar a obra fica mais fácil. Esta é a estratégia do
Governo. E aí eu afirmo: é o golpe fatal. Vão matar os índios, cultural e
fisicamente.
– Parte da população brasileira
acredita que os índios têm terra demais e há, inclusive, aqueles que
acreditam que os indígenas são um entrave para o desenvolvimento. Por
que parte dos brasileiros pensa assim?
Dom Erwin – Bom,
primeiro precisamos entender que, para os índios, a terra não é uma
mercadoria. Vou contar uma história real para que as pessoas entendam
melhor essa relação totalmente diversa que o índio tem com a terra. Um
branco mostrou um papel em que estava escrito: “República Federativa do
Brasil, Título Definitivo de Terras, deste igarapé até o outro, fazendo
frente com o rio Xingu e de fundos 2, 3, 5, 10 quilômetros”. Então, o
índio perguntou: “Como você pode, com esse papel, dizer que é dono?
Como? É um papel. Você fez a mata? Não. E a caça que está dentro da
mata? Não. Você fez o rio e os peixes que estão no rio? Não. Você faz
chover? Não. Você faz o sol brilhar? Não. Então, como você pode me
mostrar um pedaço de papel e dizer que é dono?”.
– São formas de ver o mundo totalmente opostas, né? Só que uma delas tem o poder de impor sua visão de mundo como verdade única…
Dom Erwin – Essa
cultura se choca com a cultura da sociedade majoritária, que trata a
terra como mercadoria. E como mercadoria a terra tem de ser aproveitada,
porque ela só faz sentido se for exaurida. Então, “aproveita” até
arrasar a terra. Enquanto não tiver tirado a última gota de sangue, isto
é, enquanto não tiver arrancado o minério e todas as riquezas do solo e
do subsolo, o homem forjado nessa mentalidade não estará satisfeito. É
claro, portanto, que as pessoas que veem a terra como mercadoria, num
sistema de livre mercado, vão achar que o índio tem terra demais. O
interessante é que essas mesmas pessoas nunca disseram: “Tal fazendeiro
tem terra demais”. Não, isso não. Quando um fazendeiro bota uma placa e
diz que a terra é dele – e aqui a grilagem de terra, como se sabe, é
enorme, essas mesmas pessoas não reclamam. Mas, quando se faz a
demarcação de uma área indígena, todo mundo grita. E, o mais curioso, há
cidadãos que de repente aprendem geografia: “Eles têm uma terra do
tamanho da Bélgica! Têm uma terra do tamanho de Portugal, uma terra do
tamanho da Suíça!”.
– O que é terra, para os índios?
Dom Erwin – Para os
índios, terra é vida. E, para o sistema da maioria dos brasileiros,
terra é mercadoria. Talvez se consiga ainda fazer com que uns e outros
entendam, pelo menos, que, ao demarcarmos as áreas indígenas na
Amazônia, nós salvamos um pedaço da Amazônia.
– O senhor acredita que parte da Amazônia ainda está preservada por causa desse embate de visões de mundo?
Dom Erwin – Sim. E as
pessoas precisam lembrar que a Amazônia tem uma função reguladora do
clima mundial. Quer dizer: se a Amazônia acaba, o gaúcho lá embaixo, o
mineiro, o capixaba vão sofrer as consequências. E nós ainda não sabemos
qual é o alcance real dessas consequências. Se a temperatura aumentar
três ou quatro graus, só para ficar num exemplo, será terrível! A
verdade é que as consequências da destruição da Amazônia não cessarão
nas fronteiras nem do Norte, nem do Brasil. Assim, os brasileiros de
todas as regiões deveriam agradecer que há áreas de preservação
indígena, há reservas extrativistas e há parques nacionais. É só porque
existem essas reservas que há uma parte da Amazônia ainda preservada.
Mas, infelizmente, as pessoas não percebem que a destruição da Amazônia
também atingirá a sua vida.
– É curioso como as pessoas se sentem a salvo, não?
Dom Erwin – Pelas
informações que recebi, estão planejadas 61 hidrelétricas para o Brasil,
a maioria delas aqui na Amazônia. E mesmo a EPE (Empresa de Pesquisa
Energética) não nega que serão atingidas diretamente áreas indígenas e
também parques nacionais. Falam na maior cara de pau. Então, eu gostaria
de saber o que vai sobrar.
– A maioria dos setores da
sociedade, inclusive o governo, fala em “desenvolvimento sustentável”.
Ninguém diz que não quer o desenvolvimento sustentável. Mas, na prática,
o discurso que atravessa a sociedade é o de uma oposição entre
desenvolvimento e meio ambiente. Por que o senhor acha que essa visão
ainda persiste com tanta força?
Dom Erwin – É um mito.
Que desenvolvimento é esse? Quem vai ser beneficiado com esse
desenvolvimento? Basta ver hoje a situação em que está Altamira. E a
obra está só no começo. Das condicionantes prometidas, nada. De 40
condicionantes colocadas pelo próprio Ibama, e outras 24 da Funai, quase
nada. Não tem infraestrutura, nem habitação, nem saúde, nem educação.
Para mim, desenvolvimento é dar à população a possibilidade de viver com
dignidade. Ou seja: vamos aplicar em saúde, em educação, em transporte,
em habitação, em saneamento básico e em segurança. Mas, aqui,
desenvolvimento é fazer dinheiro, é garantir energia para as grandes
multinacionais e exportar matérias-primas. Vai beneficiar a quem esse
desenvolvimento? O pessoal ainda não acordou. E esses grupos, a favor de
Belo Monte e dos grandes projetos para a Amazônia, disseminam a falsa
ideia de que a gente é contra o desenvolvimento, contra o progresso. Mas
nós sempre lutamos pela saúde nessa cidade, pela educação, pelo
saneamento básico. Esse desenvolvimento que pregam é para uns poucos,
não é para o povo.
– A população tem medo de um “apagão”…
Dom Erwin – Sim. Esses
grupos, favoráveis às grandes obras na Amazônia, ficam também operando
com o fantasma do blecaute, do apagão. Ficam dizendo: “Olhe, os gaúchos
que se cuidem, porque no inverno gaúcho não terá mais chuveiro elétrico,
e depois não vão mais poder ver a novela das oito”. Mentira! Essa
energia será exportada em forma de lingotes de alumínio. E ela não é
nada limpa… E muito menos barata. Nós não temos excelentes
universidades, cientistas de primeira classe, tecnologia de ponta? Por
que não se investe agora para procurar fontes alternativas de energia?
Aqui, nós temos sol das seis da manhã às sete da noite. No sul da
Alemanha, por exemplo, não há mais uma casa que não tenha placa solar. E
olha que eles têm um inverno comprido. Lá, em dezembro, o sol nasce às
9h, 10h, e às 5h da tarde já está escuro. E nós, aqui, às 6h já
assistimos ao sol nascer. Temos sol até às 7h da noite. Por que não
aproveitamos essa dádiva divina? E depois existe o litoral… O Brasil tem
um litoral enorme, que não tem fim. Por que não aproveita um pedaço,
pelo menos, onde não há turismo, para investir mais em energia eólica?
E, ainda, grande parte dos linhões de transmissão está obsoleta.
Perde-se uma enormidade de energia por causa dessa deterioração. Por que
não investir no reparo e no restauro dos linhões de transmissão?
– Por que o senhor acha que o governo quer tanto fazer Belo Monte?
Dom Erwin – Esta é
minha grande pergunta. Eu não tenho resposta. Apenas vou adivinhando.
Por que o Lula era contra e de repente está a favor? Por que o PT era
contra Belo Monte e depois de chegar ao governo passou a defender
exatamente aquilo que antes combatia? Por que os deputados que nós
elegemos aqui hoje são a favor e não sabem nem por quê? O que há por
trás? Por que essa metamorfose camaleônica? Na campanha era contra, como
é o caso do deputado Zé Geraldo (PT-PA), que andava aqui embaixo, na
beira do rio, dando as mãos e rezando, de camisa branca, participando de
místicas. E agora, meu Deus! Ele defende exatamente o contrário: “Belo
Monte tem que sair, a gente não pode colocar a Amazônia debaixo de uma
redoma”. Ninguém está propondo uma Amazônia intocável. O que nós que nos
unimos na posição contra Belo Monte defendemos é que as riquezas da
Amazônia sejam usufruídas de uma maneira inteligente – e não de uma
maneira burra.
– Historicamente, o movimento de resistência à Belo Monte sempre apoiou o Lula. O que aconteceu?
Dom Erwin – Aqui, a
resistência contra Belo Monte se identificou com o PT, ou o PT se
identificou com a resistência contra Belo Monte. Isso até o Lula tomar
posse. Quando descobrimos que o Lula tinha mudado de ideia, caímos das
nuvens. Meu Deus, como é que pode? E então os petistas daqui também
mudaram de lado. Começaram, inclusive, a hostilizar as pessoas que ainda
defendiam o Xingu contra esse monstro. Há gente que antigamente sentava
aqui nesta sala e que hoje não aparece mais, porque sabe que o bispo
permanece na sua posição contra Belo Monte. Há gente do PT que parece
fanático religioso. Fanático religioso é terrível, né?
– Por quê?
Dom Erwin – Porque não
tem discussão, não tem diálogo. Com fanático você nunca vai entabular um
diálogo que preste, ele já se julga dono da verdade, tem a sua certeza.
Então, o PT diz: “As razões defendidas pelo partido têm que estar acima
da própria consciência dos partidários”. E muita gente reza pela
cartilha do PT porque acha que aí está tudo resolvido. Na realidade eu
não posso, por causa da minha filiação partidária, ter opinião própria,
ou opinião divergente. Aqui, quem tinha opinião própria e não quis trair
a sua consciência, como Antonia Melo, se desfiliou do partido.
– Foi um golpe muito grande essa mudança de posição com relação à Belo Monte?
Dom Erwin – Foi uma
traição, um golpe tremendo. É muito duro você ser traído por pessoas a
quem você deu as mãos. Inclusive foram perguntar, à boca pequena: (fala
baixinho): “Bispo, em quem vai votar? O senhor não pode falar isso no
sermão, mas em quem o senhor vai votar?”. Eu disse: “Eu vou votar no
Lula. Afinal de contas, é o partido que nasceu e surgiu das bases, etc.
Temos que lutar por outro Brasil, gente”. Tempos depois o povo passou a
dizer: “Agora o bispo está engolindo…”.
– Está sendo difícil engolir o que o senhor chama de “traição”?
Dom Erwin – Eu nunca
falei em público sobre o meu voto, mas todo mundo sabia que nós
queríamos um Brasil diferente, um Brasil justo, fraterno, sem corrupção,
um Brasil com ética e com todos esses ideais que nós tínhamos e ainda
defendemos. Mas os caciques do PT da primeira hora foram embora. Quem
está aí dos antigos? Se afastaram. Notaram que foram traídos também. Eu
me sinto traído. Agora dizem: “O bispo era a favor dessa petezada”. E
agora eu tenho que engolir os sapos…
“HOJE VIVEMOS EM UMA DITADURA CIVIL”
– O senhor acha que a construção de Belo Monte marcará negativamente a biografia de Lula e de Dilma Rousseff?
Dom Erwin – Se Belo
Monte se concretizar, o Lula será lembrado como aquele que destruiu a
Amazônia, e deu o golpe nos povos indígenas. É a expressão mais macabra
de seu orgulho: fazer um monumento para si à custa de povos que, através
do mesmo monumento, condenou à morte. E, no fundo, no fundo, este
monumento irá ajudar mais o Exterior do que o Brasil. O Lula vai entrar
para a História como aquele que arrasou o Xingu. Não apenas com o rio,
mas também com os povos do Xingu. E eu não gostaria de carregar uma fama
como essa nas minhas costas, até morrer – e ainda para além da minha
vida neste mundo.
– O que o senhor quer dizer com “monumento”?
Dom Erwin – O Lula quer
ter esse monumento no nome dele. O Lula não tem ideia de
desenvolvimento. Desenvolvimento para ele é ter mais dinheiro à
disposição e exportar, exportar, exportar, aumentar o PIB. Só que essa
obra não terá ressonância na melhoria da vida do povo. Pelo contrário.
– O senhor acredita, então, que o Lula não entende a Amazônia?
Dom Erwin – Nunca
entendeu. E muito menos entende de índio. Ele nunca se deu ao luxo de se
aprofundar nisso. Para a Amazônia, ele só veio em campanha. Mas ele não
tem ideia da complexidade da Amazônia e também nunca perguntou… Você
não pode comparar o Rio Grande do Sul com o Pará. Quando visito o Sul,
me dizem: “Mas onde o senhor mora?”. Eu respondo: “Altamira”. Eles então
dizem: “Ah, é, Altamira? Nós também temos uma tia no Recife”. Recife.
As pessoas nem sabem direito onde fica o Norte. Confundem com o
Nordeste. As culturas aborígenes aqui, as culturas autóctones, são
diferentes. E tem que viver aqui para compreender isso. O Lula nunca
entendeu – e nunca achou que era preciso entender. E, no final do
mandato, ele entrou em delírio.
– Delírio?
Dom Erwin – Delírio. Poder. Ele se deleitava com as cifras, com as estatísticas. Aqui mesmo ele falou lorota.
– Lorota?
Dom Erwin – Disse que o
pessoal que é contra Belo Monte são uns “meninos e umas meninas que não
compreendem”. Disse que ele também, quando era mais novo, era contra
Itaipu, porque diziam, naquele tempo, que ia alagar a Argentina. Ele
zombou da dor e das reivindicações legítimas das pessoas de Altamira com
ideias e vivências diferentes das dele. Eu disse, ao ouvir o seu
discurso: “Meu Deus, e isso na boca do presidente!”.
– Desqualificou quem protestava?
Dom Erwin – Desqualificou.
Em 2006, num banquete oferecido pelo então governador do Mato Grosso,
Blairo Maggi, ganhador do troféu “motosserra de ouro” por sua
contribuição ao desmatamento do país, Lula também havia se deixado levar
a uma declaração comprometedora. Identificou os índios, os quilombolas,
os ambientalistas e até o Ministério Público como “entraves” para o
progresso. Considerou ainda “penduricalhos” os artigos da legislação
ambiental, pois estes parâmetros legais estariam travando o
desenvolvimento do país. Por isso a ordem é de desconsiderar ou, pelo
menos, não dar tanta importância a impactos sociais e ambientais. Caso
contrário o país, na opinião de Lula, estaria condenado à estagnação.
Pode até ser que o presidente posteriormente tenha se arrependido do que
falou de improviso, mas a mídia já havia divulgado a gafe.
– Como o senhor vê o discurso do “A Amazônia é nossa!”, que parece servir para tudo, inclusive para destruí-la?
Dom Erwin – A Amazônia é
nossa… (ri) Ninguém nunca duvidou da soberania do Brasil sobre a
Amazônia. Quem vai duvidar? Quem vai acreditar em algo como: “Agora vêm
uns americanos apoderar-se daqui….” Não faz nenhum sentido. Isso não vai
acontecer. Quem vê, em sã consciência, a configuração do mundo de hoje
sabe que isso não vai acontecer nunca. Agora, o mesmo Lula e presidentes
anteriores que disseram “A Amazônia é nossa” entregaram parte dela para
as multinacionais que mandam aqui. De onde vêm essas firmas todas? São
todas multinacionais. Têm a sua parte brasileira, sem dúvida. É preciso
ter nome brasileiro, mas o capital…
– Mas esse discurso xenófobo
costuma funcionar, né? Ele transforma um outro hipotético em inimigo
maior e tira o foco do que realmente está em jogo… A gente vê isso em
toda parte, inclusive com nossos vizinhos…
Dom Erwin – Sim, é um
nacionalismo besta, nós já o conhecemos da História. E em que deu?
Nacionalismo é ruim, sempre traz ao povo a aversão contra o que vem de
fora. Deteriora todo o relacionamento, porque o recado é: “Nós somos os
tais, os outros não são nada!”. Inclusive reclamam disso, às vezes,
quando a gente anda lá fora, em outros países latino-americanos. Eu me
lembro de um encontro do qual participei e todos tinham de se
apresentar. Então eu disse: “Soy el obispo de la circunscripción
eclesiástica más grande de Brasil”. O Xingu é a maior prelazia do Brasil
e eu achei que era importante dizer, para que entendessem de onde eu
vinha. Mas me olharam com certo desdém e disseram: “En Brasil, todo es
lo más grande”. Os países latino-americanos têm uma aversão muito forte
ao imperialismo brasileiro.
– É como se o Brasil fosse “os Estados Unidos da América do Sul”, né? Ouço essa expressão por onde ando…
Dom Erwin – Eu me calei
e não disse mais nada. Então, se nós, dentro do Brasil, criamos esse
tipo de xenofobia, precisamos nos dar conta de que isso é do tempo do
onça, pertence a uma época histórica ultrapassada. Temos de mudar a
nossa cabeça para estarmos à altura desse novo momento histórico. Num
mundo chamado globalizado não podemos viver desse jeito. Por que não nos
irmanamos realmente? Aqui no Brasil nós gritamos nossa aversão contra o
estrangeiro e, quando o brasileiro vai lá fora, ele sente o mesmo na
pele.
– O senhor viveu na Amazônia o
projeto da ditadura militar, a mentalidade do “Brasil Grande”. O senhor
encontra semelhanças entre o projeto de desenvolvimento para a Amazônia
da ditadura e o projeto de desenvolvimento para a Amazônia dos governos
democráticos de Lula e de Dilma?
Dom Erwin – Sim. Para mim, a única diferença é esta: hoje, temos uma ditadura civil… eleita.
– Por que uma ditadura?
Dom Erwin – Ditadura é
quando alguém manda sem respeitar a Constituição: “Quem manda sou eu”. O
paradigma é Belo Monte. Ao contrário do que o Lula afirmou, é um
projeto imposto. As audiências públicas, previstas em lei, foram meros
rituais para inglês ver. Montaram um enorme aparato policial para
intimidar quem é contra Belo Monte. Os que serão realmente atingidos
pela barragem não tiveram oportunidade de se manifestar. A maioria deles
nem conseguiu se fazer presente, porque não mora na cidade em que a tal
de audiência aconteceu. Sustento até hoje a convicção de que as
licenças concedidas para o início da obra são inconstitucionais. As
condicionantes previamente estabelecidas pelo próprio governo através do
Ibama, como já falei, não foram cumpridas. O caos em Altamira é a prova
mais eloquente de que o governo desrespeitou uma cidade com mais de 100
mil habitantes, tratando-a como o lixo do mundo. Os parâmetros
constitucionais que amparam os cidadãos em termos de saúde, educação,
habitação, saneamento básico, segurança, transporte simplesmente não
foram e não estão sendo respeitados. E o governo faz vistas grossas. Não
está nem aí. E ainda há político que, com a maior cara de pau, afirma
que se trata do preço a ser pago pelo progresso. Verdade é que nem ele
mesmo e nem a sua família o pagam. É o Pará que continua sendo tratado
como “colônia”, explorado e aviltado, condenado a pagar, em termos
ambientais e de prejuízos para seu povo, um preço exorbitante pelo
“progresso” do resto do Brasil.
– De que forma os presidentes Lula e Dilma teriam desrespeitado a Constituição?
Dom Erwin – Os artigos
231 e 232, que na Carta Magna do Brasil tratam dos indígenas, estão
sendo desrespeitados. As oitivas indígenas previstas em lei não
aconteceram. Podemos inclusive provar que os índios foram enganados.
Prometeram-se oitivas a eles e, depois, maquiaram de “oitiva” um simples
encontro informal em que os índios foram meros ouvintes e em nenhum
momento lhes foi perguntada a sua opinião. Má fé! Enganação! Pouca
vergonha! Se o governo toma posições que não se coadunam com a
Constituição Federal, então o Brasil, como Estado democrático de
Direito, corre sério risco. O governo não está acima da Constituição. Se
o governo se comporta de modo inconstitucional, então vivemos novamente
numa ditadura.
– O Edison Lobão, ministro de
Minas e Energia, falava em “forças demoníacas contra as hidrelétricas”. E
o senhor já se referiu à Belo Monte como “monstruosidade apocalíptica”.
Quando o senhor fala em “monstruosidade apocalíptica”, o senhor está
dizendo exatamente o quê?
Dom Erwin – Demoníacas
são as forças que o Lobão emprega para arrasar o Xingu. A destruição não
vem de Deus. E o Lobão fala sem conhecer nada daqui. Nunca o vi por
aqui. De lá, da altura do Planalto, são decididas as coisas. Aliás, é
essa a nossa triste sina aqui na Amazônia. As decisões são sempre
tomadas alhures, sem conhecer a nossa realidade, sem perguntar nada a
ninguém. O nosso Pará e a Amazônia continuam sendo tratados como
província. Antigamente o Brasil era uma “colônia”. A metrópole era
Lisboa. Hoje a metrópole pode ser São Paulo, Rio de Janeiro, Belo
Horizonte, Porto Alegre. Nós aqui somos tratados como colônia. Uma
colônia é onde a gente vai buscar as coisas. É por isso que a Amazônia é
apelidada de “província mineral”, “província madeireira”, “província
energética” e “última fronteira agrícola”. O pessoal vem, tira o que
tem, e não sente nenhum remorso, ou o dever de pagar a conta. Carajás é o
caso mais emblemático: arranca-se o minério, o que sobra é uma paisagem
de crateras lunares. Quando a referência é a riqueza natural, se afirma
em alto e bom som: “A Amazônia é nossa”. Por outro lado, quando a
Amazônia necessita realmente de colaboração efetiva, de solidariedade
concreta, tem-se a impressão de que nem pertence ao Brasil, é outro
país. São dois discursos conflitantes. “A Amazônia é nossa”, mas na
prática ela não é nossa – ou só é nossa quando precisamos dos recursos
dela. De resto, está lá longe, que ela mesma se vire.
– Por que o senhor acha que essa relação colonial de exploração se perpetua na Amazônia até hoje?
Dom Erwin – É uma
relação histórica. Vale inclusive lembrar que o Pará só aderiu à
independência um ano depois do assim chamado “Grito do Ipiranga”. A
Amazônia sempre pareceu outro mundo. E esta realidade se perpetuou até
os dias de hoje. A Amazônia é “outro Brasil”, é “colônia” para o resto
do Brasil, é a “província” prenhe de riquezas naturais para os outros,
não para o uso e benefício próprio. Creio que o estado do Pará seja o
mais rico em recursos naturais. No entanto, continua um dos mais pobres
do Brasil.
“NÃO HÁ PALAVRAS PARA O QUE SENTI DIANTE DO CAIXÃO DA DOROTHY”
– O senhor acha que a luta contra Belo Monte é perdida?
Dom Erwin – Não, não acho. Eu não sou o tipo que pendura as chuteiras logo.
– A resistência parece estar
diminuindo, agora que as obras já começaram e comunidades inteiras foram
retiradas. Qual é a sua percepção?
Dom Erwin – Parece que a
resistência está diminuindo. Mas as aparências enganam. Tem menos
palanque, menos passeatas, menos manifestações públicas. Mas tem mais
imprensa. Belo Monte, nos meios de comunicação nacional e internacional,
continua sendo manchete, até de forma mais intensiva. De onde não se
esperava nenhum apoio, surgem hoje vozes bem críticas e questionadoras.
Há gente que anos ou até meses atrás defendeu Belo Monte e que hoje se
manifesta contra. Logicamente, o caos que se instalou em Altamira ajuda o
povo refletir. Foi isso que nós esperávamos? É esse o progresso tão
sonhado? É esse o desenvolvimento prometido pelo governo e cantado e
decantado em verso e prosa pelos políticos como “salvação do oeste
paraense”?
– Como é a convivência em
Altamira, entre opositores de Belo Monte e o pessoal do Consórcio Norte
Energia, que executa obra? Afinal, Altamira é uma cidade não muito
grande…
Dom Erwin – Nós sempre
usamos meios pacíficos para expressar e manifestar nossa posição. Quem
reage de modo agressivo é o governo e seu Consórcio Norte Energia S.A.,
que lapida e viola direitos, fere a própria Constituição Federal e chega
ao absurdo de interditar a presença de representantes do Movimento
Xingu Vivo para Sempre nas proximidades do canteiro de obras. Eu sou e
sempre fui contra qualquer emprego de violência. Eu sou pela não
violência, mas uma não violência ativa. Vamos usar de todos os meios não
violentos para conseguir derrubar essa obra monstruosa. A prova que a
violência está do outro lado é que estou há seis anos completos sob
proteção policial. Por que teriam decidido me colocar sob a tutela da
Polícia militar, se não estivessem com medo de alguma agressão que
poderia ser fatal? Quem matou a Irmã Dorothy? Quem matou o Dema (Ademir
Alceu Federicci, líder comunitário assassinado em 2001 no Pará)? Quem
mandou matar tantos outros na Amazônia? Será que foram os engajados na
defesa dos Direitos Humanos e do Meio Ambiente na Amazônia contra as
investidas inescrupulosas dos facínoras de paletó e gravata em todos os
níveis da política e da economia, das grandes empresas e dos grileiros
de plantão?
– Como o senhor lida com a necessidade de escolta 24 horas por dia, todos os dias? Imagino que seja bem difícil…
Dom Erwin – A gente não
se acostuma. O relacionamento com os militares é muito bom, eles são
muito respeitosos, são discretos. Agora, por exemplo, como você está
aqui, eles não vão ficar na porta para ouvir o que você está falando,
porque você havia telefonado, e o nosso encontro estava combinado. Mas
eles são muito sensíveis quando desconfiam. É uma vida complicada para
mim. Ao atravessar a praça para rezar a missa, ou para almoçar, ou para
qualquer movimento meu, tenho que levar os policiais comigo. Ao ser
convidado para um aniversário, para um batizado, tenho que dizer: “Vão
dois ou três policiais comigo”. Se você me convida, vamos supor, para
jantar hoje à noite, na beira do cais, comer um peixe, tenho que
avisá-la: “Aceito, mas eu vou com dois homens”. Assim, geralmente
declino de qualquer convite social.
– O senhor não tem mais privacidade…
Dom Erwin – Não. Desde
29 de junho de 2006, às 22h. Nesta data, neste horário, apareceu o
comandante com dois policiais aqui e, desde então, estou sob escolta.
Para mim, a vida mudou muito desde então. Proibiram-me tudo. Em vez de
andar às 5 horas da manhã na beira do Xingu, é aqui nesse corredor que
eu ando: 65 passos para frente, 65 para trás.
– E vai ser assim para sempre?
Dom Erwin – Pelo que eu
vejo… Em 26 de janeiro de 2009, o superintendente regional da Polícia
Federal no Estado do Pará, Manoel Fernando Abbadi, me recebeu em
audiência. Foi muito gentil e compreensivo. Naquela ocasião, ele me
aconselhou seriamente a não solicitar a saída do programa de proteção.
Ao me desligar do programa, eu me tornaria alvo fácil dos que querem me
eliminar e poderiam fazê-lo sem maiores obstáculos, já que viajo muito
pelo interior.
– Por que o senhor está ameaçado de morte?
Dom Erwin – Acho que há
quatro motivos. O primeiro é a Dorothy (Stang). Esse pessoal que a
matou, que mandou matá-la, sabe que tenho as informações. Eles não me
veem com bons olhos.
– Informações?
Dom Erwin – Eu sempre
tomei partido em favor dela. Disseram que a Dorothy estava armando o
povo e não sei mais o quê… Eu, que aceitei essa mulher aqui, sempre a
defendi. Tinha falado para ela: “Cuidado, Dorothy”. Alguém até fretou um
avião aqui em Altamira para me encontrar em São Félix do Xingu. Pediram
que eu tirasse a Dorothy “de circulação” e a mandasse de volta para os
Estados Unidos. Fretaram, sim, um avião! Uma hora e meia de voo. Eram 9
horas da manhã. Eu rezava o breviário na casa paroquial, pouco antes de
ir para uma comunidade. De repente, bateram na porta, e eu abri: “O que
vocês fazem aqui?”. Eram fazendeiros. “Temos que falar urgente com o
senhor, fretamos um avião para encontrar o senhor. O senhor vai ter que
tirar essa mulher de Altamira”.
– E o senhor já disse isso para a polícia?
Dom Erwin – Polícia?
Naquele tempo eu não falei com a polícia. Não falei porque não confiei,
mas aguardei ser chamado em juízo para contar o que sei. Isso nunca
aconteceu. Não se lembraram de que fui eu que a admiti em 1982 na
prelazia do Xingu e sugeri a ela que fosse para a Transamazônica-Leste,
para a área que hoje corresponde ao município de Anapu. Em 15 de
fevereiro de 2005 enterrei a Dorothy. Enterrei. Você não imagina o que
passa no coração de uma pessoa quando está diante de alguém que durante
tantos e tantos anos trabalhou e que deu o melhor que podia dar. Que
pediu para mim para trabalhar entre os pobres mais pobres. E eu disse:
“Mulher, tu não vais aguentar isso. Tu vens lá dos Estados Unidos, com
conforto e tudo, tu não vais aguentar”. E ela: “Mas me deixe”. Deixei, e
ela ficou até o dia em que foi assassinada. De repente, no aeroporto de
Belém, quando estou voltando para cá, recebo um telefonema: “Mataram a
Dorothy”. E aí foi aquela confusão toda, e finalmente a enterrei, lá em
Anapu.
– O que o senhor sentiu?
Dom Erwin – É uma
experiência terrível! Terrível! Impossível de descrever. Vieram
senadores, deputados, representante do Lula, vieram tantos políticos
para o enterro. Ficamos lá, diante do caixão, bandeira brasileira por
cima do caixão…. Eu posso lhe dar todos as homilias que eu fiz nos
aniversários de morte da Dorothy. A cada ano que passa celebramos a
morte dela, e eu faço um homilia especial. Mas o que eu senti lá naquele
momento, diante do caixão, não tenho palavras para expressar, não há
palavras para mim. (Faz um longo silêncio). Mataram a Dorothy. Não
morreu de morte morrida, como se diz, mas de morte matada. E por quê?
Porque se colocou do lado de pobres coitados que não têm onde cair
morto. E o fato de ela se colocar ao lado dos pobres coitados fez com
que a ganância e a ambição desses insaciáveis fosse colocada em xeque.
– O que mudou depois da morte dela?
Dom Erwin – É até
constrangedor para mim responder a esta pergunta. Houve avanços, sim, na
gestão e na administração dos PDS (Projetos de Desenvolvimento
Sustentável). O povo simples até hoje se sente respaldado pela morte da
Irmã na luta pelos seus direitos à terra e à sobrevivência naquela
terra. A Romaria da Terra, que se realiza em Anapu todos os anos, no mês
de julho, é prova de que o povo daquela área rural continua firme e
decidido na defesa do que é dele. Mas há o outro lado, que é muito
triste. Por isso digo que é constrangedor responder. Há gente que hoje
ocupa cargos políticos e melhorou de condições de vida que antes andava
de braços dados com a Irmã Dorothy e conosco. Hoje está do outro lado e
defende o que antes condenou. Chamo esse tipo de gente de traidor, como
também chamo o partido que incorpora hoje essas pessoas de traidor.
Venderam a mãe, traíram os ideais, perderam a ética.
– E quais foram as outras razões, além da morte da Irmã Dorothy, para a sua escolta permanente?
Dom Erwin – A segunda
razão para a proteção é que eu sou presidente do CIMI (Conselho
Indigenista Missionário) e me empenho em favor dos povos indígenas.
Sempre lutei ao lado deles. Sei que a Igreja cometeu muitos erros ao
longo da sua história, mas não adianta lamentar o passado e condenar o
que aconteceu. O importante é fazer diferente. Como o nosso papel foi
fundamental na inserção dos direitos indígenas na Constituição
Brasileira, foi neste contexto que eu sofri um acidente em 1987.
– Um acidente ou uma tentativa de homicídio?
Dom Erwin – Até hoje
nunca investigaram. Eu fiquei seis semanas no hospital. Quebrei a cara,
literalmente. Mas me consertaram. Um padre morreu, com apenas 31 anos.
Os primeiros dias foram terríveis. Eu aprendi o que era dor no hospital,
sem poder dormir. A noite não passa, e você começa a avaliar também a
sua vida. Pensei muito na família do padre que morreu, único filho homem
daqueles pais. Foi terrível.
– Como foi esse acidente?
Dom Erwin – Em agosto
de 1987, durante cinco dias, um dos jornais de maior circulação no país
publicou matérias horríveis contra o CIMI. Acusaram-nos de tudo. E eu
era presidente do CIMI. Foi constituída uma Comissão Parlamentar Mista
de Inquérito. Você ouviu falar em Márcio Thomaz Bastos, né? Naquele
tempo ele era presidente da OAB. Encontrei-me com ele na sede da CNBB.
Dom Luciano Mendes era o presidente da CNBB e meu grande amigo, defensor
intransigente dos povos indígenas e de seus direitos. Considero-o um
santo! Pois bem, Márcio Thomaz Bastos me disse: “Dom Erwin, não se
preocupe. Essas acusações não têm nenhum fundamento, são grosseiras e de
baixo nível. Vamos elaborar um dossiê completo e responder a cada
calúnia”. Os advogados do CIMI me pediram que eu não saísse de Altamira,
ou pelo menos que não fosse distante. Brasil Novo fica a cerca de 45
quilômetros de distância. E as comunidades da Transamazônica estavam
reunidas lá para exigir do governo o conserto das estradas. O inverno,
período das chuvas, estava chegando, e as estradas estavam
intrafegáveis. Não tinha acesso para hospital, para médico e até uma dor
de dente podia ser fatal. Eu então fui me solidarizar com esse povo no
dia 15 de outubro de 1987. Rezamos missa, cantamos. E aí me perguntaram
se eu não poderia voltar no outro dia, porque seria o encerramento da
manifestação deles. Mas caíram na besteira de avisar pelo alto-falante:
“Olha, nosso bispo vai voltar amanhã, e às 3h da tarde vamos celebrar a
missa. Depois a gente encerra a nossa manifestação lendo a carta de
nossas reivindicações”. Aí eu fui lá. Exatamente no meio do caminho, o
acidente aconteceu. No topo da ladeira, eu vi um carro de cor clara. E
pensei que esse carro viesse ao meu encontro. Mas ele não veio até hoje.
Dizem que estava lá apenas para dar o sinal. Bem no topo da ladeira,
que abre para uma reta, veio um caminhão e abalroou o nosso Gol. Mesmo
gravemente ferido, eu não perdi a consciência em nenhum momento e vi
ainda dois homens descerem do caminhão e empreenderem a fuga. Bati no
ombro do padre ao meu lado e chamei o seu nome. Não respondeu mais.
Estava morto.
– Foi uma tentativa de homicídio?
Dom Erwin – Era o que
se dizia. Mas até hoje não foi feita nenhuma investigação. O motorista
desapareceu. No carro que estava lá no topo da ladeira para dar o sinal
de que estávamos vindo estava o delegado de Brasil Novo. Ele foi morto
poucos meses depois, quando assistia à televisão, na sua casa. Queima de
arquivo? Não sei. Só sei que eu fiquei fora de combate e até hoje não
fui chamado à Brasília para depor e tomar posição frente às calúnias e
difamações criminosas. O processo foi arquivado. Um desconhecido foi ver
o padre falecido no necrotério do hospital em que me internaram para os
primeiros socorros. Afastou o lençol da cabeça do falecido e declarou:
“Foi o errado que morreu!”. Coisa macabra! Até hoje há pessoas que não
admitem o meu trabalho junto aos índios. E xingam: “Esse bispo não tem o
que fazer, fica defendendo esses caboclos”. A defesa dos índios, então,
é a segunda razão para que minha vida seja protegida. A terceira razão é
Belo Monte. No jornal O Liberal estava escrito: “Esse religioso que
está em Altamira tem que ser eliminado”.
– Mas quem disse isso?
Dom Erwin – Em 2006,
empresários e políticos declararam guerra contra o bispo do Xingu e os
movimentos sociais. Gritaram do alto de seus palanques: “Vamos para a
guerra!“. E prometeram “descer o cacete“, numa explícita incitação à
violência. Alicerçaram essa sórdida investida em um artigo publicado na
página 11 do jornal “O Liberal”, de Belém do Pará, de 5 de junho de
2006. O artigo era assinado pelo economista Armando Soares e intitulado:
“Reagir é a palavra de ordem”. Até a própria CNBB moveu um processo.
Então, entre outras coisas, sempre gritavam: “Enquanto esse bispo
existir, Belo Monte não vai sair”. Uns meses atrás, um cara ainda gritou
na frente de uma funcionária nossa: “Mataram a Dorothy, que não tinha
nada a ver. Quem tinha de estar morto era esse bispo”. É com toda essa
hostilidade que alguns me tratam. É uma minoria, eu diria até
insignificante, mas muito barulhenta. Uma máfia. O povo não está contra o
bispo, disso tenho certeza. Pelo contrário, nunca recebi tanta
declaração de amor como a partir desses episódios. Na igreja, botaram
faixas: “Nós te amamos”. Uma mulher veio ao altar, pegou o microfone,
chorou e disse: “Dom Erwin, eu sei o que o senhor está passando. Mas,
olhe, não entregue os pontos, pelo amor de Deus. Nós estamos ao seu
lado! Nós te amamos…”. E a quarta e última razão, que pode até ser a
gota d’água, o que fez a coisa transbordar, foram os abusos sexuais de
meninas. Outro capítulo terrível que vivi. Nós já lutamos naquele tempo
dos emasculados (uma série de meninos castrados e assassinados na região
de Altamira), não sei se já ouviu falar…
– Sim.
Dom Erwin – Aconteceu
de 1989 a 1993. A prelazia assumiu a defesa dessas famílias e até hoje
nós movemos os processos. Ninguém fez nada, até que a prelazia assumiu a
causa. E fomos gritar pelo Brasil e pelo mundo afora. E, de repente, em
março de 2006, vieram as mães e as professoras dizendo: “Bispo, a coisa
está ruim mesmo. Tem uns absurdos acontecendo aqui. O pessoal foi na
delegacia dar parte, mas chamaram as nossas filhas de ‘putinhas’”.
Pegavam as meninas aqui no colégio, na sexta-feira à tarde. Meninas de
12, 13 anos, bonitinhas, em um carrão, dizendo: “Vamos dar uma volta!”.
Levaram-nas para uma chácara e fizeram sexo com elas. Rolou álcool e
drogas. Verdadeiras orgias. E, como se isso não bastasse, filmaram tudo.
Podia pegar um DVD aqui, em qualquer canto, com as mocinhas do colégio
daquele jeito. Aí vieram falar comigo. Aí assumi essa causa. Fiz logo
uma carta para o secretário Paulo Vannuchi (secretário nacional de
Direitos Humanos no governo Lula), e depois para o ministro da Justiça,
para o secretário de Estado de Segurança Pública, e para tudo quanto era
gente grande. E, de fato, houve uma repercussão. Mandaram uma delegada,
e ela me pediu que falasse o que sabia. Convidou-me para um encontro na
Delegacia da Mulher. Aí contei tudo. Mas disse: “Olhe, a única coisa
que não vou lhe dizer são os nomes, porque as pessoas que me
confidenciaram isso podem correr riscos”. Ela concordou. Então assinei o
depoimento. E quando eu saí daquele gabinete já vi um daqueles caras
sentado. Ele me reconheceu, e eu também o reconheci. E aí logo correu a
notícia pelas ruas da cidade de que o bispo tinha denunciado aquela
quadrilha. Depois os canais de TV vieram entrevistar-me e eu,
naturalmente, não tive mais papas na língua. Na hora da entrevista eu
disse, diante da televisão: “Esses caras são todos uns monstros, que têm
de ser presos e trancafiados. Eles não merecem viver no meio da
sociedade!”. Aí houve uma virulenta, uma forte campanha contra mim,
inclusive com faixas.
– Como o senhor lida com a
impotência, no sentido de que, apesar de todos os seus esforços, são
muitas as derrotas e, como o senhor contou, muitas as traições?
Dom Erwin – Precisamos
entender que nem tudo é derrota ou fracasso. Se eu comparar a época de
1965 e o tempo atual, vejo que o povo também se tornou mais maduro. O
povo não engole mais qualquer sapo. Antigamente, o político vinha aqui,
comprava uma grade de cachaça, embriagava todo mundo, mandava matar um
porco e saía eleito. Hoje, não. O pessoal simples do povo ganhou
maturidade política. E nós formamos as comunidades desde a construção da
Transamazônica, lideranças que estão na frente até hoje. Quando vejo,
também, os direitos indígenas na Constituição, os artigos 231 e 232, sei
que fiz a minha parte. Eu não posso dizer que sou um frustrado, de
jeito nenhum.
– Me chama atenção o número de
mulheres à frente da luta contra Belo Monte. Fora um ou outro homem, são
as mulheres que estão liderando a resistência. Como o senhor vê esse
fenômeno?
Dom Erwin – Para mim se
trata de uma predisposição psicológica que as mulheres tem. Os homens
são imediatistas. A gente escuta isso: “Vai ter dinheiro na praça!”.
Digo até que os homens são ingênuos. Havia comerciante que pensou que
iria “enricar” por conta de Belo Monte. Mas uns já começaram a ficar com
o pé atrás, porque estão notando que o dinheiro não chegou até agora.
Mas a mulher está ligada, pelo seu ser, por seu coração e por sua psique
à geração que vem. A mulher coloca gente no mundo, dá à luz, e está
quase que instintivamente preocupada com o futuro da prole. Essa tese se
sustenta pela antropologia e pela psicologia. Eu tenho percebido nesses
anos todos que as mulheres sempre têm muito mais visão para o futuro
porque se trata do filho, da filha, do neto, da neta, cujas vidas estão
em jogo. E o homem pensa no dinheiro, no imediato. Não digo todos os
homens, mas uma grande parte. Políticos também. Políticos falam na
salvação e redenção do oeste do Pará. Com raras exceções não têm visão
que ultrapassa a ambição de ganhar votos e manter-se no cargo. E mais
uma vez eu volto para o índio. Em 2007, no final de uma reunião, um
índio subiu na carroceria do caminhão, pegou o microfone e disse: “Olhem
para o Xingu e pensem o que será de nossas crianças. Nós não vamos
permitir que a cultura dos nossos antepassados vá para o fundo do rio”.
Ele fez a ponte entre o futuro e o passado.
– Mas há notícias de que a maior
parte das etnias indígenas abriu mão da resistência em troca de
“benefícios”, de cestas básicas a voadeiras e televisões. Qual é a sua
percepção?
Dom Erwin – Há uma nova
maneira de acabar com os povos indígenas, o “auricídio”, além do
genocídio e do etnocídio. Mata-se a cultura e a organização comunitária
indígena com o dinheiro. E esta agressão talvez seja pior e mais sutil e
desavergonhada, pois mata a cultura e as organizações sociais dos povos
indígenas sob a aparência de solidariedade – e sob o manto da
indenização para mitigar impactos e efeitos negativos de Belo Monte.
Nunca digo que o índio está a favor de Belo Monte. Depois de viver
séculos à margem da sociedade, passando necessidades e rejeitado pela
sociedade majoritária, de repente está na berlinda e é brindado com todo
o tipo de presente e benefício. Quem vai aconselhá-lo a não receber
tais benefícios? Só que atrás desses presentes existe um sistema, uma
estratégia de quebrar a resistência dos povos indígenas.
– Quando o senhor fala da
liderança das mulheres, na luta contra Belo Monte, atribui sua motivação
à preocupação com as gerações futuras. Como o senhor enquadraria a
presidente Dilma Rousseff nessa visão?
Dom Erwin – É, a Dilma, não sei o que dizer…
– Ela é a primeira mulher na presidência do país…
Dom Erwin – Eu gosto de
uma mulher na presidência, mas eu pensei que, como mulher, ela ficaria
mais sensível à nossa situação. Mas foi a Dilma quem pariu o PAC
(Programa de Aceleração do Crescimento). Então, politicamente, ela nunca
vai se afastar disso. A gente pode fazer a manifestação que fizer. Mas
ela corta qualquer diálogo, já na raiz. Belo Monte não é tema para
discutir. Ela é muito dura, intransigente, não aceita opinião
divergente. Parece estar obcecada pela ideia de ser a construtora da
terceira maior hidrelétrica do mundo e, talvez, ser a presidente que
fará funcionar as primeiras turbinas. Meio ambiente, índio, ribeirinho,
povo de Altamira, para a Dilma nada disso importa. Construir Belo Monte
não foi uma decisão técnica, mas sim política, tomada contra as
advertências de cientistas e professores de nossas melhores
universidades. A história da Amazônia, do Brasil e da Terra julgarão
logo mais o Lula e a Dilma, de modo muito severo, como depredadores
inescrupulosos e causadores de impactos que alteraram irreversivelmente o
clima do planeta. Todos nós sabemos da função reguladora do clima que a
Amazônia exerce. Belo Monte surtirá um efeito dominó. Com Belo Monte se
dá luz verde a dezenas de outras hidrelétricas já projetadas para a
Amazônia. Belo Monte é o punhal empunhado por Lula e Dilma et caterva
para ferir mortalmente o coração da Amazônia.
– Como é o seu Xingu hoje? O
senhor teve o Xingu mítico da sua infância e depois o Xingu de quando
chegou aqui… Mas como é o Xingu de quem está com quase 73 anos de idade e
47 anos de Xingu?
Dom Erwin – Para mim, o
Xingu simboliza a resistência desse povo e dos povos que estão aqui.
Antigamente nem sonhei que precisava resistir, era óbvio. Mas, hoje, o
Xingu conta a história dos povos daqui e também dos massacres dos
séculos passados. E massacres que não estão tão distantes assim, no
tempo, quando arrasaram aldeias inteiras. O Xingu tem história de sangue
derramado, mas hoje tem também a história da resistência de um povo.
Por isso a gente fala do Xingu Vivo para Sempre (movimento contra Belo
Monte que reúne várias organizações sociais). Porque não podemos
acreditar que será dado o ultimato para o Xingu, que esse rio grandioso
vai virar simplesmente uma cloaca.
– Qual é o tamanho dessa perda, para o senhor?
Dom Erwin – Para mim é
sempre o último pedaço do paraíso que Deus criou. Esse impacto… Não
posso concordar com isso. Não é por sentimentalismo. Mas o Xingu não é
só o rio, a água, as praias, é também os povos daqui, que viviam desde
tempos que se perdem na História, e depois os ribeirinhos que vieram nos
séculos 18, 19, início do século 20. E depois os imigrantes que também
vieram nos anos 70. Eles hoje já se identificaram com o Xingu, já
pertencem ao Xingu. Têm olhos azuis e cabelo loiro, mas são daqui. Esse
povo todo, misturado, para mim é o Xingu.
– O senhor lutou tantas décadas
contra Belo Monte. O senhor acha que há alguma chance de vencer essa
luta, com a construção já em andamento e com tanta gente desistindo
dela? Qual é o cenário hoje e quais são as suas expectativas?
Dom Erwin – Posso ser
considerado ingênuo, mas eu ainda não acredito que estejamos na “casa do
sem jeito”. Tenho até a sensação de que o próprio rio Xingu não vai
ficar “quieto” enquanto querem matá-lo. Os geólogos e gente que entende
do assunto falam no Xingu como rio que ainda está “in statu fieri”. Quer
dizer: ainda não está pronto, ainda se constitui, se constrói, se mexe,
se impõe. O Xingu é um rio “vivo”. Não confio, em absoluto, nos estudos
dos que defendem Belo Monte. Os estudos foram feitos simplesmente para
corroborar uma decisão política já tomada – e estudos desse tipo para
mim carecem de seriedade. O Xingu é enigmático e imprevisível em sua
maneira de reagir. Mas penso também que os homens e mulheres que até
agora defenderam Belo Monte um dia vão cair na real. Espero apenas que,
quando caiam na real, o estrago já não seja total.
– O Brasil vai sediar, nos
próximos dias, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento
Sustentável, a Rio + 20, duas décadas depois da Rio 92. O senhor tem
alguma esperança nessa conferência?
Dom Erwin – Sim, tenho
esperança. Não tanto nas discussões oficiais, mas sim naquilo que
acontecerá na margem ou ao redor da Rio + 20. Eu sei que gente de toda
parte vai aproveitar os espaços e não vai se calar. E também o Xingu e
Belo Monte e a Amazônia serão temas discutidos por pessoas de ponta,
tanto em nível do Brasil como do mundo todo. E tem mais. Enquanto
acontece a Rio + 20, no Xingu acontecerá a Xingu + 23, lembrando nossa
luta contra Belo Monte, que já dura 23 anos e seguramente não será uma
luta perdida.
Reportagem publicada na Revista Época
Fonte: ELIANE BRUM Desacontecimentos
Nenhum comentário:
Postar um comentário