setembro 06, 2015

“A emancipação deve passar por construções coletivas”. Entrevista com Ticio Escobar IHU)

PICICA: "Ticio Escobar (foto) assinala que após o golpe contra Fernando Lugo, lentamente vão se reconstruindo formas de participação popular, ao mesmo tempo que se mantêm conquistas alcançadas, como a Lei de Línguas, que institucionalizou o uso do guarani."

“A emancipação deve passar por construções coletivas”. Entrevista com Ticio Escobar

Ticio Escobar (foto) assinala que após o golpe contra Fernando Lugo, lentamente vão se reconstruindo formas de participação popular, ao mesmo tempo que se mantêm conquistas alcançadas, como a Lei de Línguas, que institucionalizou o uso do guarani.

Fonte: http://bit.ly/1DPkkJf
Ticio Escobar é pesquisador e ex-secretário de Cultura no Governo de Fernando Lugo.

A entrevista é de Natalia Aruguete e Bárbara Schijman e publicada por Página/12, 13-04-2015. A tradução é de André Langer.

Eis a entrevista.

Qual é a contribuição da cultura para a mudança política e a integração regional?

Uma das questões que definem a contemporaneidade é justamente sua capacidade de rever criticamente conceitos que já foram abandonados no final do século passado. Refiro-me a conceitos que estavam formatados em chave metafísica e, além disso, substanciados: liberdade, Estado, emancipação. Essa versão metafísica fundamentava-os e dava-lhes um apoio maior, livre das incertezas que têm hoje, mas, por outro lado, tornava-os pouco adaptáveis. De repente, estes conceitos retornam com formatos mais reduzidos, mas com possibilidade de servir às realidades das pessoas e das conjunturas políticas que os condicionam. “Emancipação”, por exemplo, foi um destes termos que, num determinado momento, estava fora da agenda política; era considerado terminado.

Por quê?

Porque discutir sobre emancipação era concebido como anacrônico. Uma coisa interessante da cultura contemporânea é, justamente, o fato de que volta a rever conceitos passados, de momentos históricos diferentes. A cultura contemporânea retrocede e busca em experiências paralelas e passadas o modo de recompor termos. Não é estranho, então, que voltemos a uma quantidade de conceitos que agora estão desprovidos de suas perspectivas substancialistas.

Que tipo de conceito, por exemplo?

Conceitos como “povo”, “nação”, “Estado” e “identidade” foram revistos. Neste momento, o próprio Estado deve ser reinventado e repensado. Isso implica também uma atitude crítica e alimenta a ideia de transformação. Quase todos estes conceitos estão vinculados a um pensamento de esquerda ou, ao menos, não são relacionados com um pensamento não substancialista, individualista, racionalista, não neoliberal. Isto permite que possam ser usados como marcos reflexivos, teóricos e analíticos para processos de transformação.

Como é possível repensar o Estado na conjuntura de globalização e regionalização atual?

O grande desafio reside justamente na possibilidade de criar tensões entre o particular e o global, entre o particular e o universal. Ambas são realidades que não estão terminadas nem fixas, mas são definíveis, estão sempre em construção, mas devem ser pensadas para sua conjuntura concreta. Devemos pensar um Estado que seja independente da região, com limites locais e soberania nacional, mas que possa ser integrado em entidades particulares em termos de uma região pensada como uma supranação capaz de dissolver essas particularidades. Reinventar o Estado refere-se a isso: como fazer para que possa assumir uma perspectiva em conjunto e uma plataforma de desenvolvimento, mas entendendo suas particularidades locais e sua economia soberana? Isso é o fundamental, embora sempre existam tensões cruzadas por interesses divergentes. Pensar na Pátria Grande não ajuda a enfrentar as tensões que existem e que permanecem mais ou menos escondidas por hipocrisia.

Que tipo de interesses divergentes tem os países da região?

São problemas comerciais, mais que políticos e culturais. Problemas entre o Brasil e a Argentina, também com o Uruguai. Algumas de suas diferenças têm a ver com a expansão do Brasil, sendo os demais países menores, com economias pequenas e em situação de vulnerabilidade. Isto cria uma tensão que deve ser trabalhada e negociada pela via do diálogo.

Que papel exercem as resoluções regionais neste contexto?

No Mercosul, por exemplo, vemos uma assimetria que não pode ser ignorada. É interessante que se tomem medidas compensatórias para compensar as grandes desigualdades e assimetrias que há entre os países, e dentro dos países também. Um Estado federado, como é o caso da Argentina ou do Brasil, tem uma série de situações assimétricas na qualidade de subdependências internas, de choques entre o metropolitano e o provincial. O campo é profundamente conflitivo e político. Pensemos em uma utopia, mas, na hora de trabalhar, nomeemos e pensemos em conflitos. Há regiões que se configuram: o Paraguai compartilha uma região com o norte argentino e outra com Misiones, junto ao Paraná, no Brasil. São regiões geopolíticas que cruzam as linhas dos Estados e criam situações interessantes de conflito. Refiro-me a tensões, e não apenas a discrepâncias.

Você acredita que existe uma “cultura latino-americana”?

Creio que a cultura tem uma grande vantagem sobre outras áreas, por exemplo, sobre o campo econômico e, inclusive, sobre o político. O ofício da cultura é encontrar esse jogo de diferenças, alteridades, esse momento em que um e outro podem articular-se e enfrentar-se. Esse é o terreno cultural: a possibilidade de construir efêmera ou mais permanentemente alianças, articulações e compreensões de imaginários do Mercosul. Ao mesmo tempo, há imaginários de cada um dos países, assim como os há também dentro de cada um deles, em seus bairros ou suas etnias. Cada vez há mais similitudes entre Assunção e Buenos Aires do que entre Assunção e os povos indígenas. Isso vale para todos os países da região. Acontece que a cultura se especializa em trabalhar essas diferenças e em tornar conjunto o pensamento entre o heterogêneo e o desigual. Com outras palavras, é possível falar de uma “cultura latino-americanicista” toda vez que se conceber que se trata de uma construção histórica, política, mas que não traduz uma realidade substancial compacta, uma identidade homogênea. A cultura erudita da capital de qualquer país latino-americano encontra-se mais próxima da cultura do mainstream euronorte-americano do que da cultura indígena desse país. Não existe uma cultura latino-americana, equipada de notas essenciais que são anteriores à sua própria constituição histórica.

Como se relaciona este último com sua proposta de recuperar a utopia ilustrada?

Não falaria em termos de recuperação, mas de construção e revisão da cultura ilustrada, por fora de seus marcos liberais, para entender a emancipação em outro sentido. Embora em princípio a utopia tenha os mesmos estímulos e impulsos, a leitura deve ser diferente da liberal. A emancipação deve passar por construções coletivas que não sejam ideias caídas do céu, sem formas fixas e sem garantias de que vão se cumprir. A utopia depende de subjetividades, do processo político, de situações conflitivas, frustradas e sem garantias. É como o conceito moderno de utopia, tanto a liberal como a marxista asseguram que o desenvolvimento da história levará a um ponto de redenção e conciliação. A cultura ou a utopia ilustrada costuma aniquilar com as diferenças.

Como se compatibiliza a proposta de recolher diferenças com uma cultura ilustrada que se desprenda de sua concepção liberal?

Como sustenta Jacques Rancière, o momento utópico começa quando se inicia uma desordem dentro de um campo de visibilidade de sujeitos políticos e os sujeitos omitidos exigem sua presença nesse lugar. Rompe com a exclusão, há uma exigência de presença. Isso supõe processos concretos e específicos. Há uma vontade emancipatória, um impulso que nunca se realizou, nem estará garantido e que pode ser abortado, mas também obter avanços emancipatórios que depois podem se perder. Foi justamente o que aconteceu no Paraguai depois do golpe de Estado (contra o ex-presidente Fernando Lugo). Foram iniciados uma série de processos muito interessantes que logo se viram abortados. Isso lhe dá um caráter mais malogrado. A coincidência que poderíamos encontrar com a emancipação ilustrada é que ambas vêm para universalizar por diferença o global. O global é o que homogeneíza as diferenças – ou procura fazê-lo – e as mantém quando convém. Creio que a utopia ilustrada, moderna, entrou em colapso. Seria preciso reformulá-la. Não propô-la como um conceito universal e transcendente, mas em termos de uma pretensão menor, adequada a cada circunstância, carente de componentes salvíficos e messiânicos.

Você acabou de mencionar o golpe de Estado contra o governo de Lugo. Que retrocessos o Paraguai experimentou depois disso?

Depois do golpe de Estado, a institucionalidade cultural ficou absolutamente destroçada. Neste momento, com o governo neoliberal e empresarial, a institucionalidade cultural – na sua forma orgânica do aparelho cultural, por assim dizer – está se recuperando. Embora não existam as mesmas perspectivas que no tempo do governo de Lugo, pode-se trabalhar no ordenamento de um campo de conquistas públicas, encontrando espaços em meio a essas contradições dos governos neoliberais atuais que permitem resquícios nos quais é possível tomar decisões.

Concretamente, como se dá essa possibilidade?

Durante o governo golpista houve uma desmontagem absoluta da institucionalidade em matéria cultural, que agora começa a se recuperar. Lentamente, começa-se a recobrar todo o sistema de instâncias participativas: a descentralização, os planos mestres. Talvez chegue um momento em que um enfoque de direitos baseado em um olhar de esquerda num sentido amplo, um modelo cultural não depredatório, um modelo não baseado na rentabilidade, entre em conflito com o atual modelo de desenvolvimento. É possível que este enfoque de direitos não mude questões fundamentais, estruturais, que são as que poderiam melhorar a situação indígena e camponesa. Isso supõe reformas profundas: propriedade da terra, presença, respeito às terras, sistemas representativos e políticos fortes. Estas são medidas e ações que o governo não vai tomar. Mas em termos estruturais, seria possível recuperar a institucionalidade e a participação, enquanto não afetarem determinados modelos de desenvolvimento.

Essa ampliação de direitos foi o marco no qual se propôs a Lei de Línguas. Que efeitos concretos houve em nível social a partir de sua implementação?

As línguas ocupam um lugar fundamental na cultura. Constituem o apoio da ordem simbólica, articulam os códigos de significação e, portanto, são as grandes processadoras do sentido coletivo. Os países que têm a sorte de possuir várias línguas estão equipados de uma textura cultural mais diversa e enriquecedora. No Paraguai, a Lei de Línguas constitui um avanço em relação ao qual não se pode retroceder; a cidadania alcança conquistas e desenvolvimentos que são irreversíveis. A norma permitiu um sentido de pertença muito forte dos de fala guarani. 85% da população fala guarani, comunica-se, expressa-se dessa maneira e vive nele. Isso se respira como uma conquista. Há alguns anos, o guarani era quase clandestino, era considerado uma língua bárbara, inferior, pouco educada. Há uma conquista muito forte e a possibilidade de que as pessoas possam fazer seus trâmites em guarani, apresentar-se na Justiça, exercer todo tipo de direitos cidadãos em guarani. Isso ampliou a língua.

Em que sentido a ampliou?

Se uma pessoa quer fazer um exame oral em guarani pode fazê-lo. Claro que é todo um processo. O sistema escolar tem uma tradição de ensino do guarani muito ruim, porque é ensinado como um idioma estrangeiro. Isso não tem a ver tanto com uma política pública, mas com uma realidade de estratégia pedagógica. Tem a ver com a cultura, com o que se aprende nas ruas. O guarani tem uma lógica diferente do espanhol, não há tradução. É mais poético, afetivo; como qualquer idioma é racional, mas as metáforas são mais intensas e nelas se joga muito mais. Não é que um seja melhor ou pior que o outro, mas têm economias de linguagem diferentes.

Há quem sustente que a cultura deveria ser mais vanguardista. Qual é a sua posição sobre isso?

Não sei se a cultura deve ser mais vanguardista; a cultura contemporânea é antivanguardista no sentido de que não está pensando que existe um grupo de iluminados que vão levar sua verdade aos outros, que sempre avança por rupturas. Creio que há momentos em que a cultura se situa no âmbito da arte em um lugar de discussão dos limites da ordem simbólica. É transgressora nesse sentido. Está-se colocando em xeque a estabilidade da ordem simbólica e social. Mas não creio que deva ser necessariamente vanguardista em termos da organização formal, como se pretendia na arte moderna, que se devia estar a par de tudo, abrindo caminho, e isso supunha um olhar elitista. Penso que a vanguarda tem dois momentos: um de assinalar caminhos – estar na frente – e outro de antecipação. A arte mantém este último: o momento antecipatório. A arte sonha com o impossível, com coisas que poderiam ser, e deste modo ajuda a política a imaginar outros modelos.

O que significa que a cultura esteja obcecada pelo significante?

A modernidade cultural reivindica a autonomia da linguagem. A cultura contemporânea recupera a preocupação com os efeitos sociais do sinal, pelo emprego que dele fazem diferentes usuários. A cultura moderna está obcecada pelo significante, pela linguagem, pela forma, pela ordem. Na cultura contemporânea há um retorno muito forte do significado, dos conteúdos sociais, das narrativas, das literaturas. Justamente essa obsessão pelo significante entra em crise. Essa obsessão fica velada diante da uma irrupção de forças que reivindicam significação, as pragmáticas sociais dentro da arte. É um processo longo que começa com uma crítica à modernidade e ao conceito de autonomia da arte, que implicava uma separação da arte de todo o resto. Porque tem suas próprias regras, sua própria sintaxe, e privilegia a ordem da linguagem do significante acima de suas significações sociais e sua pragmática. A crítica mais demolidora e brutal é quando Walter Benjamin fala da morte da aura.

A que se refere com isso?

Refere-se, justamente, à crítica de um formalismo que mantém a arte separada. Claro que é impensável uma arte sem significante; não se poderia pensar somente em puro conteúdo porque então desapareceria a cultura, desapareceria tudo. É questão de ênfase: hoje, o significante já não é o único parâmetro, entra em conflito com o significado e talvez o incindível seja o que confere dinâmica à arte contemporânea, que o torna ao mesmo tempo contingente e malogrado. Em um determinado momento, essa mesma diversidade dá uma proliferação tão grande de signos que torna impossível ver as coisas, como se a significação estivesse tapada por camadas de significantes. Em certo tempo a arte tornou-se muito visceral e orgânica; necessitava lançar um cabo à terra e abrir passagem no excesso de significante.

Fonte: IHU

Nenhum comentário: