PICICA: "O ano é de 1981. Consta que na inauguração da exposição Arte
Incomum, dentro da 16a Bienal de São Paulo, a psiquiatra Nise da
Silveira reclamava aos jornalistas: “Nunca ninguém faz a pergunta que eu
gostaria de ouvir: onde estão esses homens e essas mulheres que fizeram
os trabalhos que nós estamos agora admirando?”.
Mais de 30 anos depois, um conjunto de novas exposições, o lançamento
de um livro e a produção de obras provocam o retorno da questão. Num
momento em que a arte contemporânea parece sofrer ora de um excesso
discursivo, ora de uma homogeneização formal pautada pelo mercado, a
sequência de eventos aparentemente díspares propõe uma revisão das
noções de distúrbio, tratamento, instituição, transtorno, normalidade e
criação.
“Vivemos em um mundo ávido pela normatização de tudo. As pessoas cada
vez menos conseguem lidar com a subjetividade, com o imprevisível, com o
tempo e com a brevidade das coisas”, sugere o curador Ricardo Resende, à
frente do Museu do Bispo do Rosário."
Os anos loucos
Brasileiros
O ano é de 1981. Consta que na inauguração da exposição Arte Incomum, dentro da 16a Bienal de São Paulo, a psiquiatra Nise da Silveira reclamava aos jornalistas: “Nunca ninguém faz a pergunta que eu gostaria de ouvir: onde estão esses homens e essas mulheres que fizeram os trabalhos que nós estamos agora admirando?”.
Mais de 30 anos depois, um conjunto de novas exposições, o lançamento de um livro e a produção de obras provocam o retorno da questão. Num momento em que a arte contemporânea parece sofrer ora de um excesso discursivo, ora de uma homogeneização formal pautada pelo mercado, a sequência de eventos aparentemente díspares propõe uma revisão das noções de distúrbio, tratamento, instituição, transtorno, normalidade e criação.
“Vivemos em um mundo ávido pela normatização de tudo. As pessoas cada vez menos conseguem lidar com a subjetividade, com o imprevisível, com o tempo e com a brevidade das coisas”, sugere o curador Ricardo Resende, à frente do Museu do Bispo do Rosário.
Se na primeira metade do século XX, a arte dos loucos, assim como a das crianças e dos “povos primitivos” (não europeus) apresentou-se como grande inspiração para o modernismo – cubistas,fauves, surrealistas e expressionistas –, a espontaneidade, a pureza e a liberdade supostamente contidas nesse tipo de obra parecem recobrar o interesse, reconfigurado agora por outro contexto estético e institucional da arte.
“Os homens são tão necessariamente loucos, que não ser louco seria uma outra forma de loucura.” A frase de Blaise Pascal abre sintomaticamente a exposição Histórias da Loucura, em cartaz no Masp até 11 de outubro. Doados ao acervo do museu em 1974, os 102 desenhos expostos foram feitos por pacientes do Hospital Psiquiátrico do Juquery, em Franco da Rocha (SP), e reunidos pelo dr. Osório César (1895-1979), um dos pioneiros das práticas artísticas em hospitais psiquiátricos no Brasil.
Porém, mais que olhar para a história, a mostra, com curadoria de Adriano Pedrosa e Luisa -Proença, procura, em certos termos, reescrevê-la. Catalogados dentro do acervo do museu como “arte alienada”, categorização corrente nos anos 1970, os trabalhos foram agora realocados para a categoria “arte brasileira”, numa revisão conceitual reveladora.
“É importante pensá-los de um modo integrado, sem perder a referência do contexto em que foram produzidos. Queremos olhar para essa produção feita longe dos circuitos oficiais da arte e da academia”, explica Proença em entrevista à ARTE!Brasileiros, antecipando que a loucura será uma das grandes frentes de trabalho e interesse do novo time de curadores da instituição – nada mais pertinente para um museu que tem obras de Van Gogh na coleção. Atormentado por desequilíbrios emocionais, o pintor holandês passou os anos de 1889 e 1890 internado num hospital psiquiátrico em Saint-Rémy, momento especialmente fértil de sua produção.
Arte alienada. Arte virgem. Arte incomum. Art Brut. Arte degenerada. Arte do inconsciente. A nomenclatura ajuda a retraçar uma “história da loucura” ao estilo daquela proposta por Foucault. Poucas décadas atrás, a violência – via choque elétrico, injeções de insulina, lobotomia – era o traço comum dos tratamentos para esquizofrenia, e não era raro encontrar artigos defendendo o sistema “colônia de internação” para excluir e eliminar os indesejados da sociedade.
“Não é casual a associação do manicômio com os regimes totalitários. Em 1964, ano do golpe civil-militar, o Brasil possuía 74 manicômios, número que ao final do regime, em 1985, chegava a 395”, descreve Adriano Pedrosa em texto para o catálogo.
Vozes dissonantes, no entanto, faziam-se ouvir. Enquanto dr. Osório se correspondia com Freud e atuava no Juquery, dra. Nise da Silveira baseava-se no hospital do Engenho de Dentro, no Rio, e seria uma das grandes introdutoras da psicologia junguiana no Brasil. Depois de criar a Seção de Terapêutica Ocupacional, dedicada à arte, à encadernação, à música e ao artesanato, ela fundou em 1952 o Museu de Imagens do Inconsciente, instituição até hoje central nas pesquisas de arteterapia no País.
“Nise tinha o que chamava de ‘mania de liberdade’”, lembra Luis Carlos Mello, autor do recém-lançado Nise da Silveira: Caminhos de uma Psiquiatra Rebelde (Ed. Automática). “Ela não conseguia aceitar o fato de que pessoas estivessem trancafiadas sem terem cometido crime nenhum e teria uma importância crucial para a reforma psiquiátrica no Brasil.”
Herdeiro do arquivo pessoal da médica e do cargo de direção do museu, Mello lida hoje com um acervo de 360 mil obras, 127 mil delas tombadas pelo Iphan. No momento, seus esforços são para conseguir levar adiante o projeto de uma nova sede e para manter sempre ativos os ateliês. “Nise nos deixou a ideia de um museu vivo. De uma reflexão afetiva com esses criadores.”
Um bispo para o Rio
Revisitar in loco a história de um antigo manicômio está na pauta do Museu Bispo do Rosário, em Jacarepaguá. Em cartaz até 3 de outubro, a mostra Um Canto, Dois Sertões estabelece ligações, fios de bordado, entre Japaratuba, cidade natal de Bispo, e a colônia Juliano Moreira, onde viveu 50 anos de confinamento, entre idas e vindas.
“O manicômio não curava. Não tinha o que curar. Pelo contrário, pelos relatos dos ex-internos, eles adoeciam. Agravava-se o estado fragilizado dos que eram internados (…) A Colônia Juliano Moreira completou 90 anos. Dizem que no seu auge chegou a abrigar cerca de cinco mil pessoas. Comemorar o quê, então?”, pergunta o curador Ricardo Resende.
Ao contrário dos artistas expostos no Masp ou no Museu de Imagens do Inconsciente, o sergipano diagnosticado com esquizofrenia paranoide não participava de nenhum ateliê de arteterapia, mas dedicou todos os dias, horas e horas, a construir obstinadamente os mais de 800 objetos que hoje compõem a coleção do museu – estandartes, vestimentas ou o grande Manto que fez para falar com Deus no Juízo Final. Misturando vida e obra de maneira ímpar, o conjunto tem uma força que faz arrebatar o público por onde passa – da Bienal de Veneza ao Victoria&Albert.
“Temos muito que aprender com essa obra que ‘inconscientemente’ nos propõe olhar para o caos do mundo quando tenta reorganizá-lo. O que fez Bispo do Rosário, induzido pelas ‘vozes’ que só ele ouvia, foi catalogar e organizar o caos ao seu redor”, explica Resende, que trabalha em meio à precariedade de equipe e recursos procurando garantir a desinfecção, higienização e restauração do acervo, além de uma estrutura institucional mínima para o museu, com exposições e horários de visitação estabelecidos.
Segundo ele, a exposição no Masp teria perdido a chance de romper uma barreira maior. “As obras são exibidas isoladamente, fechadas dentro de um cubo de vidro, e não misturadas, como poderiam estar, a um Rêgo Monteiro, a um Di Cavalcanti”, critica o curador. Por outro lado, ele diz, a retrospectiva de Abraham Palatnik, em cartaz até 4 de outubro na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre (RS), apresenta desenhos de internos do Engenho de Dentro, deixando manifesta a influência que exerceram sobre o pioneiro da arte cinética.
Novos ares
Em meio à multidão de criadores em diferentes ateliês de arte e terapia pelo Brasil, existe um debate sobre como reconhecer os “verdadeiros” artistas – debate tão amplo e sem resposta quanto o do reconhecimento de um “verdadeiro” artista fora do contexto psiquiátrico.
Em novembro, a galeria paulistana Estação exibirá a obra de Clóvis, um ex-interno da colônia Juliano Moreira e há 15 anos participante do Atelier Gaia, no Rio. Produzidas com papelão, restos de madeira, jornais e velhas molduras, suas esculturas têm impressionado críticos pela originalidade e pelas “altas doses de verdade” contidas. Numa outra vertente, a Casa Daros, no Rio, exibe desde 22 de agosto a videoinstalação Nada Absolutamente Nada, resultante de uma série de oficinas realizadas pela dupla de artistas Dias & Riedweg com pacientes psiquiátricos do Instituto de Psiquiatria da UFRJ (IPUB).
“Mais que um retrato sobre a condição psiquiá-trica, o trabalho constrói um ensaio poético e filosófico que questiona a definição e o lugar da loucura na vida contemporânea”, explica a dupla. Trabalhando juntos a partir de contos do escritor Robert Walser (1878-1956, ele próprio interno de uma instituição psiquiátrica na Suíça), os participantes escreveram e documentaram em vídeo suas impressões sobre a vida, a beleza e o cotidiano de cada um. “São vozes dissonantes, mas reais, ainda que desconectadas da realidade arbitrária e descaradamente simplista”, sintetizam os artistas.
Contra um mundo de aparência e puro simulacro, a loucura guardaria, quiçá, alguma sensatez. À arte contemporânea, tateando como lhe é de costume, só resta tirar a prova.
Fonte: Caros Amigos
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