PICICA: "Em algum momento da história humana
Eros cindiu-se em dois: de um lado o amor romântico, de outro o amor
carnal ou, mais sucintamente, o sexo. Na Idade Média cristã essa cisão
aprofundou-se, virou dilaceramento. A carne precisava ser negada em prol
do “espírito”. Love, de Gaspar Noé, busca de algum modo
reaproximar as metades separadas. Não é o primeiro nem será o último
nessa tentativa, que parece fadada ao fracasso, mas nem por isso deixa
de produzir frutos interessantes e, eventualmente, belos."
Love, ponto de atrito entre amor e sexo
POR José Geraldo Couto José Geraldo Couto: no cinema | 18.09.2015
Em algum momento da história humana
Eros cindiu-se em dois: de um lado o amor romântico, de outro o amor
carnal ou, mais sucintamente, o sexo. Na Idade Média cristã essa cisão
aprofundou-se, virou dilaceramento. A carne precisava ser negada em prol
do “espírito”. Love, de Gaspar Noé, busca de algum modo
reaproximar as metades separadas. Não é o primeiro nem será o último
nessa tentativa, que parece fadada ao fracasso, mas nem por isso deixa
de produzir frutos interessantes e, eventualmente, belos.
Desde a primeira imagem – um homem e uma mulher nus na cama, masturbando-se mutuamente, vistos do alto – é de corpos que se trata aqui. Da presença e da ausência deles. Mais importante que o recurso ao 3-D, a meu ver, é a maneira como Noé articula essa dialética.
O presente narrativo do filme resume-se a um dia na vida do protagonista, o norte-americano aspirante a cineasta Murphy (Karl Glusman), que vive em Paris com sua jovem mulher, Omi (Klara Kistin), e o filho de colo dos dois. Ele recebe no celular, de madrugada, um recado da mãe de uma ex-namorada sua, Electra (Aomi Muyock), preocupada com o desaparecimento desta. A ligação desencadeia em Murphy lembranças de sua história de amor com Electra e passamos então a acompanhar flashbacks dessa história entremeados com as tentativas do protagonista de localizar a ex-namorada enquanto toca sua vidinha de casado.
Intercâmbio de corpos
Uma estrutura simples e bastante manjada, portanto. O que me parece original e estimulante é a maneira como o filme concatena passado e presente, real e imaginário, ausência e presença.
Um procedimento recorrente da montagem é cortar de uma imagem para o mesmo enquadramento, só que em outro momento e com (ou sem) outra personagem além do protagonista, de tal maneira que uma pessoa – em geral a ex-namorada, mas não sempre – “aparece” ou “some” da cena abruptamente, como que convocada pelo desejo ou pela memória de Murphy. Em grande medida, o filme se passa na cabeça dele.
É com esse dispositivo que a narrativa se constitui: Murphy, não por acaso um cineasta, “projeta” no espaço real (em 3-D ainda por cima) o produto de sua memória afetiva. No intercâmbio de personagens, ou melhor de corpos, que contracenam com Murphy há toda uma discussão silenciosa sobre a duração do amor, sua transmutação em outros sentimentos, sua migração de um ser a outro. Um exemplo: numa cena crucial, ao mesmo tempo dramática e autoirônica, o protagonista abraça o filho na banheira, ambos aos prantos, e sentimos que o que se dá ali é uma transferência de afeto, com o menino servindo como receptáculo do amor destinado a outra pessoa.
Reação crítica
Falou-se muito sobre a suposta superficialidade dos diálogos, como se a densidade de uma obra cinematográfica devesse ser buscada na “profundidade” das falas. (Um filme que se passasse numa sala de pós-graduação em filosofia na Sorbonne seria, assim, o suprassumo do “profundo”.) Com isso esqueceu-se de atentar para as imagens e sua organização.
Aliás, tão interessantes quanto o filme propriamente dito talvez sejam as reações a ele. Boa parte dos críticos e dos espectadores vem se dividindo entre duas respostas, ambas negativas. Uns, dizendo que Love não consegue escandalizar; outros, queixando-se de que ele não causa excitação, “não dá tesão”, para usar a expressão mais corrente e chula.
Depreende-se dessas reações que existe uma ideia arraigada, ainda que não explicitada, de que filmar o sexo é algo que tem necessariamente intenção de escândalo e/ou que deve excitar a libido. Pelo menos desde O último tango em Paris, passando por O império dos sentidos, é possível observar, quase com as mesmas palavras, reações semelhantes.Repressão e voyeurismo, duas faces da mesma moeda.
Tudo somado, Love levanta ou atualiza algumas questões: é possível falar de amor nos dias de hoje sem cair na pieguice ou na autoajuda? É possível filmar o sexo sem resvalar na crueza vulgar ou, no extremo oposto, na estetização publicitária dos “cinquenta tons de cinza”? Gaspar Noé resolveu pegar esses dois touros à unha, ao mesmo tempo. Mas seu filme acaba por suscitar uma outra pergunta: é possível ver nos dias de hoje um filme de amor e sexo sem tentar enquadrá-lo nos parâmetros estreitos e desfocados de meio século atrás?
Desde a primeira imagem – um homem e uma mulher nus na cama, masturbando-se mutuamente, vistos do alto – é de corpos que se trata aqui. Da presença e da ausência deles. Mais importante que o recurso ao 3-D, a meu ver, é a maneira como Noé articula essa dialética.
O presente narrativo do filme resume-se a um dia na vida do protagonista, o norte-americano aspirante a cineasta Murphy (Karl Glusman), que vive em Paris com sua jovem mulher, Omi (Klara Kistin), e o filho de colo dos dois. Ele recebe no celular, de madrugada, um recado da mãe de uma ex-namorada sua, Electra (Aomi Muyock), preocupada com o desaparecimento desta. A ligação desencadeia em Murphy lembranças de sua história de amor com Electra e passamos então a acompanhar flashbacks dessa história entremeados com as tentativas do protagonista de localizar a ex-namorada enquanto toca sua vidinha de casado.
Intercâmbio de corpos
Uma estrutura simples e bastante manjada, portanto. O que me parece original e estimulante é a maneira como o filme concatena passado e presente, real e imaginário, ausência e presença.
Um procedimento recorrente da montagem é cortar de uma imagem para o mesmo enquadramento, só que em outro momento e com (ou sem) outra personagem além do protagonista, de tal maneira que uma pessoa – em geral a ex-namorada, mas não sempre – “aparece” ou “some” da cena abruptamente, como que convocada pelo desejo ou pela memória de Murphy. Em grande medida, o filme se passa na cabeça dele.
É com esse dispositivo que a narrativa se constitui: Murphy, não por acaso um cineasta, “projeta” no espaço real (em 3-D ainda por cima) o produto de sua memória afetiva. No intercâmbio de personagens, ou melhor de corpos, que contracenam com Murphy há toda uma discussão silenciosa sobre a duração do amor, sua transmutação em outros sentimentos, sua migração de um ser a outro. Um exemplo: numa cena crucial, ao mesmo tempo dramática e autoirônica, o protagonista abraça o filho na banheira, ambos aos prantos, e sentimos que o que se dá ali é uma transferência de afeto, com o menino servindo como receptáculo do amor destinado a outra pessoa.
Cena de Love (2015), de Gaspar Noé
A fronteira entre erotismo e pornografia, às vezes tão tênue e embaçada, é explorada argutamente, a meu ver, na sequência em que Murphy e Electra vão a um clube de orgias. Eles flertam com a pornografia, isto é, o lugar em que os corpos não têm nome, nem rosto, nem “dono”, mas não conseguem imergir totalmente nela. Murphy, em especial, vê suas limitações, contradições e fragilidades aflorarem com ainda mais força.Reação crítica
Falou-se muito sobre a suposta superficialidade dos diálogos, como se a densidade de uma obra cinematográfica devesse ser buscada na “profundidade” das falas. (Um filme que se passasse numa sala de pós-graduação em filosofia na Sorbonne seria, assim, o suprassumo do “profundo”.) Com isso esqueceu-se de atentar para as imagens e sua organização.
Aliás, tão interessantes quanto o filme propriamente dito talvez sejam as reações a ele. Boa parte dos críticos e dos espectadores vem se dividindo entre duas respostas, ambas negativas. Uns, dizendo que Love não consegue escandalizar; outros, queixando-se de que ele não causa excitação, “não dá tesão”, para usar a expressão mais corrente e chula.
Depreende-se dessas reações que existe uma ideia arraigada, ainda que não explicitada, de que filmar o sexo é algo que tem necessariamente intenção de escândalo e/ou que deve excitar a libido. Pelo menos desde O último tango em Paris, passando por O império dos sentidos, é possível observar, quase com as mesmas palavras, reações semelhantes.Repressão e voyeurismo, duas faces da mesma moeda.
Tudo somado, Love levanta ou atualiza algumas questões: é possível falar de amor nos dias de hoje sem cair na pieguice ou na autoajuda? É possível filmar o sexo sem resvalar na crueza vulgar ou, no extremo oposto, na estetização publicitária dos “cinquenta tons de cinza”? Gaspar Noé resolveu pegar esses dois touros à unha, ao mesmo tempo. Mas seu filme acaba por suscitar uma outra pergunta: é possível ver nos dias de hoje um filme de amor e sexo sem tentar enquadrá-lo nos parâmetros estreitos e desfocados de meio século atrás?
José Geraldo Couto
José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Trabalhou durante mais de vinte anos na Folha de S. Paulo e três na revista Set. Publicou, entre outros livros, André Breton (Brasiliense), Brasil: Anos 60 (Ática) e Futebol brasileiro hoje (Publifolha). Participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80 (Brasiliense), Folha conta 100 anos de cinema (Imago) e Os filmes que sonhamos (Lume), entre outros. Escreve regularmente sobre cinema para a revista Carta Capital.
Fonte: BLOG DO IMS
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