"Coluna do Edmar"
ANOTAÇÃO INSTIGANTE DE LIMA BARRETO NO DIÁRIO DO HOSPÍCIO
Jurandir Freire Costa, psicanalista, escritor e intelectual de nossas letras, num antigo trabalho de pesquisa, disseca a "Liga Brasileira de Higiene Mental", movimento eugênico da psiquiatria brasileira atrelado ao nazismo europeu antes da Segunda Guerra (ver "História da Psiquiatria no Brasil" Ed. Documentário, RJ, l976). Nesse trabalho desenterra um texto significativo do psiquiatra Henrique Roxo (1877-1969). O alienista dos anos vinte e trinta do século passado, preocupado em disseminar as idéias eugênicas entre nós, faz uma afronta, mesmo ao conhecimento científico de então, apenas para afirmar sua tese em que pregava a inferioridade racial dos negros. Dizia o texto de Henrique Roxo, garimpado por Jurandir: "Não é a constituição física do preto, a sua cor escura que lhe marcam o ferrete da inferioridade. É a evolução que não se deu. Ficaram retardatários. Ao passo que os brancos iam transmitindo um cérebro em que as dobras de passagem mais se aprimoravam, em que os neurônios tinham uma atividade mais apurada, os negros que indolentemente se furtaram à emigração, em que a concorrência psíquica era nula, levam a seus dependentes um cérebro pouco afeito ao trabalho, um órgão que de grandes esforços não era capaz".
Meu Deus! Quanta deturpação da ciência em nome da política. O que estava por trás era o racismo desavergonhado de então. Releia o texto para realçar a deformidade que o racismo impunha ao que se chamava de ciência. Atenção para afirmações inteiramente falsas sobre anatomia para afirmar o racismo. E tem mais, vocifera Henrique Roxo, pregando abertamente a aculturação e subordinação racial: "Suponhamos(...) que um negro com esta má tara hereditária se transportasse para um centro adiantado e que com sua congênere viesse a ter descendência. Imaginemos (...) que esta fosse pouco a pouco progredindo e que de pai a filho se fosse legando cada vez mais um cérebro exercitado, ativo. Dentro de um certo número de descendentes chegaria, finalmente, um cérebro tão evoluído quanto de um branco. Seria tão inteligente quanto este". Mas porque fui buscar tal despautério de um psiquiatra do começo do século passado, hoje sabidamente ultrapassado nos seus conhecimentos? (Apesar de um auditório do Instituto de Psiquiatria da antiga Universidade do Brasil – atual UFRJ –, berço do conhecimento acadêmico, levar seu nome. E vários hospitais psiquiátricos pelo Brasil).
Primeiro, porque é muito bom que saibamos que o fascismo, o nazismo e o racismo estiveram entre nós e sempre tentam um retorno, mesmo por linhas tortas. Nos deixa vigilantes contra um pseudo-saber que, vez por outra, nos apresentam. Com a certeza do Henrique Roxo nos falam agora da droga da felicidade, de mapeamentos cerebrais e outras bobagens. Mas não é disso aqui que falo hoje.
Vou buscar uma instigante anotação do velho Lima Barreto no Diário do Hospício. Internado como maluco Lima Barreto guardava a análise do seu tempo muito intacta. E se é um absurdo tomarmos conhecimento das declarações estapafúrdias do Henrique Roxo, é com um enorme prazer escutar Lima Barreto afirmar nas anotações do seu Diário do Hospício: "Tinha que ser examinado pelo Henrique Roxo. Há quatro anos, nós nos conhecemos. É bem curioso esse Roxo. Ele parece estudioso, inteligente, honesto; mas não sei porque não simpatizo com ele. Ele me parece desses médicos brasileiros imbuídos de um ar de certeza de sua arte, desdenhando inteiramente toda a outra atividade intelectual que não a sua e pouco capaz de examinar o fato em si. Acho-o muito livresco e pouco interessado em descobrir, em levantar um pouco o véu de mistério – e que mistério! – que há na especialidade que professa. Lê os livros da Europa, dos Estados Unidos, talvez; mas não lê a natureza. Não tenho por ele antipatia; mas nada me atrai a ele".
Acertou de novo o mulato! E que acerto! Botando na insignificância um baluarte da ciência da época, que no futuro seria descoberto como equivocado, senão mal-intencionado. Sem fazer qualquer concessão aos poderosos de sua época da laia do Dr. Henrique Roxo. Por pura convicção e não por ressentimento. O Henrique Roxo era o psiquiatra. Lima Barreto, o maluco. Naquela época. Mas observem a lucidez e o acerto do Lima quando escrevia, senão para sua época, para o futuro! Se a época não queria ouvir os acertos de Lima, seus escritos seriam reconhecidos no futuro. Um pequeno comentário que, se transformado em romance, não seria reconhecido àquele tempo, hoje é um acerto monumental a um pensamento anacrônico no futuro. E Lima estava já tão certo que não cabia em seu tempo...
Edmar Oliveira - 25/11/2008
Fonte: Casa Lima Barreto
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