novembro 25, 2008

Cladem defende constitucionalidade da LMP

Foto: Rogelio Casado - Maria da Penha - Manaus-AM, nov/2008
Mulheres de Olho

Cladem defende constitucionalidade da LMP

Posted: 24 Nov 2008 06:48 AM CST

Com dois anos de vigência, está apenas começando o processo de implementação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340 de 2006), que cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra as mulheres. Há avanços importantes, mas são inúmeros os obstáculos que as mulheres enfrentam para obter a aplicação da lei, quando se encontram em situação de violência ou doméstica ou familiar.

Esta lei retirou os crimes de violência doméstica e familiar da alçada dos Juizados Especiais Criminais (Jecrims), criados pela Lei 9099 de 1995, para cuidar dos casos com menor potencial ofensivo, e cuja pena nunca é maior do que dois anos. A Lei Maria da Penha (LMP) prevê a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, responsáveis por medidas de assistência e proteção às que se encontram nesta situação. Ela determina também que, enquanto esses Juizados não estejam estruturados e funcionando, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para cuidar dos casos classificados como violência doméstica e familiar contra a mulher, garantindo preferência para o processo e julgamento dessas causas (artigos 1º, 33 e 41 da LMP).

Instalou-se no país uma controvérsia judicial em torno desses três artigos, considerados inconstitucionais por vários juízes. São apontadas especialmente três violações: descumprimento do princípio da igualdade entre homens e mulheres garantido no inciso I do 5º da Constituição Federal; subversão da competência atribuída aos Estados para fixar a organização judiciária local (artigo 96 d e parágrafo 1º do art. 125) e da competência dos juizados especiais (inciso I do art. 98). Na prática, as decisões judiciais ora afirmam a inconstitucionalidade da LMP, ora sua constitucionalidade.

Para garantir a permanência dos três artigos, em dezembro de 2007 o Presidente da República ingressou com uma Ação Declaratória de Constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (ADC 19).

Amanhã é 25 de novembro, Dia Internacional da Não-Violência contra a Mulher. Há vários anos, nesse período acontece a Campanha 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres. Este ano, o Cladem/Brasil (Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher), juntamente com as organizações que o integram, aproveitará o ensejo para ingressar, nos autos dessa ação, com um instrumento conhecido como Amici Curiae (”Amigas da Corte), em defesa da constitucionalidade da Lei Maria da Penha. O documento é assinado por Themis, Ipê, Instituto Antígona e Cladem/ Brasil.

Mulheres de Olho entrevistou a advogada da equipe de Cladem Brasil, Valéria Pandjiarjian, sobre o significado e alcance dessa iniciativa.

Mulheres de Olho – O que é um Amici Curiae e qual o objetivo de sua apresentação ao STF?

VP – Amicus curiae é o termo de origem latina que, no singular, significa “Amigo/a da Corte” (no plural, “amici”) e se refere a uma pessoa, entidade ou órgão com profundo interesse em uma questão jurídica levada a discussão junto ao Poder Judiciário. No caso, o nosso Amici Curiae consiste na manifestação de terceiros - que não são parte do processo - com legitimidade e interesse para intervir no sistema de controle de constitucionalidade de uma lei. A possibilidade desta manifestação está prevista no parágrafo 2º do artigo 7º da Lei nº 9.868 de 1999, que pluraliza e democratiza o debate constitucional. Ela pode ser ou não aceita pelo relator da ação que discute a constitucionalidade da lei. Formalmente trata-se de um memorial, um parecer, como se queira chamar, apresentado com a finalidade de chamar a atenção para fatos, elementos, direitos ou argumentos eventualmente não percebidos, desconhecidos ou inacessíveis aos juízes e juízas responsáveis pelo julgamento. Seu papel é servir como fonte de conhecimento em assuntos controversos, ampliando a discussão antes da decisão da Corte. É um instrumento que auxilia o Tribunal a proferir uma decisão acertada, sustentando determinada tese jurídica em defesa de interesses públicos que podem ser afetados pelo resultado do julgamento.

O Ministro Marco Aurélio de Mello, relator da ADC/19, já deferiu o pedido de ingresso como Amicus Curiae feito pelo Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), nesta mesma ação que discute a constitucionalidade da Lei Maria da Penha. A legitimidade nesses casos se baseia no fato de serem organizações representativas de interesses gerais da coletividade ou que expressem os valores essenciais e relevantes de grupos, classes ou estratos sociais.

Cladem/Brasil, Themis, Ipê e Antígona são organizações que defendem os direitos humanos das mulheres. Nosso objetivo com este Amici Curiae é defender a constitucionalidade da Lei Maria da Penha, estabelecendo e ampliando os marcos interpretativos dessa normativa à luz da Constituição e dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil. Queremos que seja buscada uma decisão favorável às mulheres, e que o STF estabeleça uma jurisprudência sensível às questões de gênero. Consideramos a Lei Maria da Penha um instrumento jurídico importante que reconhece e efetiva o legítimo direito constitucional das mulheres à igualdade, à não-discriminação e a viver livre de violência. Nesse sentido o STF deve interpretá-la, declarando a sua constitucionalidade, e assim, garantindo às mulheres o acesso, sem exceção ou restrição, a todos os mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar nela previstos.

Mulheres de Olho – E como se justifica a eventual discriminação dos homens, contida no argumento de inconstitucionalidade em relação a essa Lei?

VP – O inciso IV do artigo 1º da Constituição brasileira, de fato, afirma que entre os objetivos fundamentais da República está o de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Perante a Lei, homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Entretanto, para além dessa “igualdade formal”, a Constituição impõe a exigência ética da “igualdade material”, como um processo em construção e uma busca constitucionalmente demandada.

Uma coisa é a concepção formal de igualdade, em que a própria igualdade é tomada como um ponto de partida abstrato. Outra coisa é a concepção material de igualdade, em que o ponto de partida é o reconhecimento de que há diferenças. Assim, a igualdade é um resultado ao qual se pretende chegar. E aqui é preciso fazer a distinção entre ‘diferença’ e ‘desigualdade’, já que a ótica material tem o objetivo de construir e afirmar a igualdade com respeito à ‘diversidade’, a qual deve contemplar a diferença. Entendemos que o reconhecimento de identidades e o direito à diferença nos conduzirão a uma plataforma emancipatória e igualitária. Como afirma Boaventura de Souza Santos:


“temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos
o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a
necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que
não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”.
A Lei Maria da Penha enfrenta uma violência que, de forma desproporcional, atinge muitas mulheres. Neste sentido, ela é um instrumento de concretização da igualdade material entre homens e mulheres, conferindo efetividade à vontade constitucional. Lembramos aqui o artigo 4º da Lei Maria da Penha, que é bem explícito ao dizer que…


“na interpretação da lei, deve-se considerar os fins sociais aos quais se
destina e as condições peculiares das mulheres, dando ênfase à ótica específica
que tanto se requer para o tema”.
Outro ponto a destacar é que a Constituição Federal afirma, como dever do Estado, criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares (artigo 226, parágrafo 8º), sem cogitar qualquer ofensa ao princípio da igualdade. Pelo contrário, nosso entendimento é de que o silêncio do legislador, que antes imperava, é que poderia ser caracterizado como afronta à igualdade materialmente pretendida. É constitucional o artigo 1º da Lei Maria da Penha!

Mulheres de Olho – Que outros pontos são levantados no documento?

VP – O STF é o órgão máximo da Justiça brasileira. No atual contexto, uma decisão do STF declarando a constitucionalidade da Lei Maria da Penha tem o valor imperioso de dar um basta à violência institucional que, por ação ou omissão, tolera e perpetua a violência doméstica e familiar contra as mulheres, numa sistemática violação dos direitos humanos no país. Queremos resgatar os antecedentes da Lei Maria Penha, destacando a relevância do próprio caso Maria da Penha, que traduz de forma veemente essa violação.

O caso Maria da Penha foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA). Este processo resultou em recomendações, ao Brasil, que foram fundamentais para que se avançasse na elaboração e aprovação da Lei Maria da Penha. Além desses aspectos, o documento destaca os marcos jurídicos internacionais e nacionais de direitos humanos sobre os quais a lei se fundamenta. E também o contexto e o legítimo processo de criação da Lei em âmbito nacional. Este processo é um exemplo de boa prática democrática com colaboração entre Estado e sociedade civil. É preciso lembrar que a proposta de lei representa o acúmulo do movimento de mulheres em décadas de experiência e militância no tema. Sua elaboração envolveu a atuação de um Consórcio de ONGS (Advocaci, Agende, Cepia, Cfemea, Cladem/Ipê, Themis), feministas, juristas e especialistas de várias áreas e foi levada com grande determinação pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, que instituiu um Grupo de Trabalho Interministerial para dar continuidade aos trabalhos. No Parlamento, contou com a relevante atuação da relatora do projeto na Câmara dos Deputados – a então deputada federal Jandira Feghali – que levou a cabo, com o apoio da SPM, ONGs e Assembléias Legislativas Estaduais, um seminário nacional e nove audiências públicas nas cinco regiões do país, com a participação de organizações locais de direitos humanos e direitos das mulheres, além de consultas a juristas de distintos ramos. O texto foi aprimorado a partir do resultado dessas audiências, com a aprovação do que hoje conhecemos como Lei Maria da Penha.

Outro ponto são os avanços introduzidos pela Lei, que são analisados dentro do conjunto de obrigações internacionais e constitucionais assumidas pelo Estado brasileiro. Esta lei traz uma mudança de paradigma no enfrentamento da violência contra a mulher que precisa ser explicada. Ela incorpora a perspectiva de gênero, a ótica preventiva integrada e multidisciplinar, e fortalece a ótica repressiva numa medida necessária para tratar de um tema cuja complexidade é desafiadora. Ela consolida um conceito ampliado de família, dá visibilidade ao direito à livre orientação sexual, e estimula a criação de bancos de dados e estatísticas. Tudo isto é muito inovador, e bem vindo.

No item específico sobre a constitucionalidade da Lei, o documento alega não apenas a inexistência de violação do princípio da igualdade, mas também a ausência de qualquer descumprimento às regras constitucionais em relação às competências da organização judiciária local e dos Juizados Especiais para realizar o que a lei prevê.

Mulheres de Olho – Que argumentos são usados para justificar os artigos 33 e 41, cuja constitucionalidade também está sendo questionada?

VP - O que se questiona com relação ao artigo 33 é que ele viola a competência para fixação da organização judiciária local. O artigo 22 da Constituição de 1988 define que é da competência privativa da União legislar sobre direito processual, civil e penal. O parágrafo único desse artigo afirma que cabe aos Estados legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas no artigo 22, quando autorizados por lei complementar. Sendo assim, a redação do artigo 33 é constitucional.

O artigo 41 é questionado por eventual violação da competência dos Juizados Especiais (Jecrims/ Lei 9099/95). Entretanto, um dos avanços introduzidos pela Lei Maria da Penha foi não apenas endossar a ótica preventiva no enfrentamento da violência contra a mulher, mas fortalecer a ótica repressiva. A Lei Maria da Penha rompe em definitivo com a sistemática anterior, baseada na Lei 9099, que tratava da violência contra a mulher como uma infração de menor potencial ofensivo, sujeita à pena de multa e pagamento de cesta básica. Esta mudança é reflexo do novo paradigma incorporado por esta lei, que reconhece ser a violência contra a mulher uma violação aos direitos humanos e não mais um crime de menor gravidade. Portanto, aplica-se à violência contra a mulher o regime jurídico aplicável às violações aos direitos humanos, o que assegura a constitucionalidade do artigo 41 da Lei.

Angela Freitas/ Instituto Patrícia Galvão
Colaboração: Equipe Cladem/ Brasil

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