novembro 21, 2008

Arthur Bispo do Rosário, Rei dos Reis

Arthur Bispo do Rosário
Terça-feira, 11/11/2008

Arthur Bispo do Rosário, Rei dos Reis

Jardel Dias Cavalcanti


Arthur Bispo do Rosário dirigia-se a Altamiro, guarda do hospício Colônia Juliano Moreira, e dizia: "Me prende porque eu estou me transformando".

― Em que? Perguntava Altamiro.
― Em Rei. Me prende que eu vou entrar em guerra. Eu sou o Rei dos Reis.

Preso dentro de um cubículo, onde se refugiava das torturas psiquiátricas, dos remédios e dos choques elétricos, trancafiado a cadeado durante meses, passando fome (jejuns que se impunha ― "vou secar para virar santo", dizia) e absorvido por suas alucinações, Bispo hibernava tomado por uma estranha obsessão: reger a reconstrução do mundo. Isso de dentro de um minúsculo quarto de hospício onde mal conseguia mover seu esquelético corpo e sua alma atormentada.

Era nesse momento que sua arte começava a aparecer, fazendo uso, por exemplo, de fios de sua própria roupa de prisioneiro manicomial, que desfiava para tecer aquilo que se transformaria na mais importante experiência artística do século XX e, conseqüentemente, vedete na Bienal de Veneza, na Itália, sendo requisitado ainda para exposições no Centro Geoges Pompidou, de Paris e no Whitney Museum, de Nova York.

A sucata da Colônia Juliano Moreira, organizada pelas mãos de um homem internado por cinqüenta anos num hospício do subúrbio carioca, representaria na Bienal de Veneza, na Itália, em 1995, o que há de mais significativo em termos de arte brasileira do século XX.

Arthur Bispo do Rosário nasceu em 1909, em Japaratuba (Sergipe), filho de negros católicos. Entrou para a Marinha brasileira aos 15 anos. Além de marinheiro foi lutador de boxe, empregado doméstico, vigia e biscateiro.

Aproximadamente aos 27 anos, em 1938, uma revoada de anjos lhe anunciaram que ele era um enviado de Deus, cuja missão era julgar os homens e recriar o mundo para o Dia do Juízo Final. Esse fato lhe custou um internamento que duraria 50 anos, sendo Bispo diagnosticado como esquizofrênico-paranóide. O resultado do internamento foi a produção de mais de 100 objetos (que nós, por falta de outro termo, chamamos de obras de arte).

O artista dizia-se possuído por "vozes sagradas" que lhe ordenavam a criação e ordenação do novo cosmos. O Rei criava o mundo a partir de sua mitologia particular.

Segundo a historiadora da arte Marta Dantas, no seu trabalho Arthur Bispo do Rosário: a estética do delírio, o imprescindível e mais sofisticado estudo já feito sobre Bispo do Rosário, "sua obra é de uma contemporaneidade incontestável: ela alude ao que há de mais radical e criativo em algumas das vanguardas da segunda metade do século XX".

Eu iria mais longe, dizendo que Bispo realiza de fato o que apenas foi desejo teórico das vanguardas. Nesse sentido, ele ultrapassa o projeto da vanguarda. O desejo de fusão entre arte e vida e a destruição absoluta da noção de realidade, cuja maternidade é o romantismo, e a idéia da arte como um espaço fora da linguagem coercitiva dos símbolos sociais e a idéia da arte como uma simbologia particular e única, encontra-se nos objetos criados por este prisioneiro do poder psiquiátrico-sádico-fascista brasileiro.

Como afirma Marta Dantas, a experiência artística de Bispo é a "experiência limite da 'morte' do sujeito que se abre em direção ao ilimitado e cria a obra recriando a si mesmo".

A idéia proustiana de que toda vez que um artista nasce o mundo é recriado tem ressonância direta e peremptória nos objetos criados por Bispo do Rosário.

O "artista" recria sua mitologia particular dentro de uma instituição psiquiátrica que, além dele, aprisionou outras nobres figuras como o escritor carioca Lima Barreto, encontrado bêbado, falando sozinho e andando sem documento pelas ruas do Rio de Janeiro; também o músico Ernesto Nazareth, perturbado por uma surdez que não o permitia ouvir as próprias composições.

O lugar onde Bispo passou sua vida era uma instituição que tinha como projeto controlar e isolar da sociedade "os tarados e desvalidos de fortuna, do espírito ou do caráter, os ébrios, loucos ou menores retardados, ou delinqüentes e abandonados, assim como os indesejáveis inimigos da ordem e do bem público, alucinados pelo delírio vermelho e fanático das sanguinárias e perigosíssimas doutrinas anarquistas ou comunistas", segundo discurso de seu insano, desumano, racista e perigoso diretor Rodrigues Caldas.

A psiquiatria nazista foi importada por médicos brasileiros que pregavam, inclusive, a esterilização "dos pacientes, especialmente não brancos, dotados sabe-se lá de que diabólicas tendências psíquicas, supostamente lesivas a uma idealizada raça brasileira", conforme informa a biógrafa de Bispo do Rosário, Luciana Hidalgo. Esterilização cuja técnica simples consiste em ressecar um centímetro do cordão espermático, de cada lado, como ensinava o médico Juliano Moreira, cujo nome batizou a Colônia na qual Bispo esteve aprisionado.

O objeto mais espetacular de Bispo é o seu Manto de Apresentação, "espécie de mortalha sagrada que bordaria durante toda a vida para vestir no dia da apresentação, no Juízo Final, na data de sua passagem. Bordados neste manto estariam todos os nomes das pessoas que ele julgava merecedores de subir, de carona, rumo ao além." No além, julgaria os vivos e os mortos e regeria seu próprio reino, Rei que era. Por isso, a idéia de reproduzir tudo o que existe, organizado segundo uma "lógica" particular, pois o que escapar ao Rei será exterminado no Juízo Final.

Seu universo particular, a invenção de objetos, era criado a partir de sucatas do hospício, objetos abandonados por pacientes que comiam com as mãos e desprezavam as colheres, congas velhas sem serventia, garrafas, plásticos, sabonetes, linhas, vidros de desodorantes, bolsas, Havaianas, pentes, fivelas, chapéus, bolas, panos, latas etc.

Qual a razão dessa necessidade de juntar objetos utilitários numa forma que as transforma em objetos com um novo sentido, agora, sim, inútil? Responder a esta pergunta é responder à pergunta sobre o que gera a necessidade do animal humano em fabricar mundos paralelos ao mundo "real" ou mundos mais reais para si que o mundo "real" que o cerca.

Bispo não produziu inúmeros objetos, miniaturas, assemblages e bordados como terapia ocupacional, mas como a única solução para se manter vivo, como diz Marta Dantas. Sua obra é o enfrentamento radical de uma consciência adversa à prisão a qual foi confinado pelos poderes que não conseguem conviver com os "sem razão".

Como Bispo resistiu ao inferno de sua internação? A resposta talvez seja a de que foi salvo pela arte, pelo exercício vital da invenção de um mundo para além do bem e do mal, de um lugar onde a independência total do Ser pôde ser exercida, como constata Marta Dantas, nos termos do filófoso Nietzsche: "Salva-o a arte, e pela arte salva-o para si... a vida".

Bispo sofreu nas seções de eletrochoque, que tinham como objetivo impossibilitar o interno de se irritar, pensar e sentir. Foi em razão dessa necessidade médico-terapêutica que o eletrochoque, invenção de Ugo Cerletti datada de 1938, chegou rapidamente ao Brasil. Após visitar um matadouro de porcos, cujo abate era precedido por choques elétricos que provocavam crises convulsivas nos animais, o italiano concluiu que também seria possível provocar, no homem, uma convulsão por corrente transcerebral sem matá-lo.

A solução encontrada por Bispo para se salvar dessa violência, segundo Marta Dantas, era se preservando, se isolando quando sentia o momento da "transformação" chegar e, nesse isolamento, entregando-se às suas invenções.Bispo poderia ser considerado "louco" ou artista, o que no fundo é a mesma coisa, e sua própria definição poético-metafórica do louco serve para a do artista: "os loucos são como beija-flores: nunca pousam, ficam a dois metros do chão". Bispo chegou a questionar o status da psiquiatria. Na avaliação de Marta Dantas, "ele não precisou ler Michel Foucault, Ronald Laing ou Nise da Silveira para emitir sua crítica sobre a psiquiatria. Empiricamente, ele descobriu que essa ciência (ao menos durante os quase 50 anos de sua internação) não estava preocupada com o bem-estar do paciente, tampouco com a sua cura, mas sim com a exclusão do diferente e com a fabricação, em série, de dementes orgânicos". Se destruindo enquanto sujeito, como analisa Dantas, Bispo deixa a condição de objeto, para desvencilhar-se do mundo objetivado e acabar com a farsa tornando-se rival do manipulador de bonecos, o próprio Criador. Tornou-se ele também Deus, criador, inventor do seu próprio mundo, ordenador do caos à sua volta, regente máximo das potências da vida.

Segundo Marta Dantas, "de simples mortal, Bispo se transformou, na solidão de sua "caverna", num demiurgo, numa criatura intermediária entre a natureza divina e a humana; afinal, não é esse o significado de seu nome? Bispo é aquele que faz a ponte, o elo de ligação (sic) entre o mundo dos homens e o mundo celeste".

O interno de Juliano Moreira construiu um mundo próprio em oposição ao outro mundo, supostamente real, no qual o cabresto da razão é o próprio lugar do poder que historicamente construiu a civilização, dominou a natureza e num gesto suicida caminha numa nau sem rumo em direção a uma já aguardada catástrofe planetária.

Bispo recebeu uma vez, dentro do seu claustro, Altamira, o citado funcionário da Colônia Juliano Moreira, dizendo ao enfermeiro-carcereiro: "agora você vai beber do café feito pelo Rei". Altamira... aceitou a bebida.

Os participantes da Bienal de Veneza, em 1995, também aceitaram o café, segundo Nelson Aguilar, curador da mostra brasileira em Veneza, que assistiu a sala de Arthur Bispo do Rosário se transformar num local de romaria, um oásis numa Bienal quase patética.

Bispo do Rosário reinava. Rei dos Reis.

Mas isso, talvez, não significasse nada para Arthur Bispo do Rosário. Seu reino não é deste mundo. Como definiu Luciana Hidalgo: "Bispo, o soberano da criação era dono de um mundo lúdico à margem das trevas".

Este mundo, com certeza, não é o mundo das instituições artísticas, colocadas em questão por Duchamp e levadas à bancarrota por Arthur Bispo do Rosário.

Fonte: Digestivo Cultural
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